A garota sorriu para mim depois de engolir o último pedaço de carne, ignorando seu rosto sujo de gordura.
Claro, para mim, etiqueta e educação eram o mesmo que pedras na estrada, completamente insignificantes, então não me importei. Pelo contrário, sua satisfação me inspirou a comer o meu pedaço.
Bandos de pássaros voaram pelo céu acima de nós, enquanto o sol dourado descia no horizonte e escurecia o mundo em sua ausência.
Logo a lua iluminou a floresta com sua luz branca e imaculada, nos mostrando que já era hora de ir embora.
A noite não me assustava, mas Stella me pediu para ir com ela.
“Lívia falou que as montanhas são perigosas à noite… Eu não deveria estar aqui.” Reclamou, olhando para os lados com medo enquanto atravessávamos as árvores iluminadas por uma bola de fogo que criei.
Tentei pensar em algo para confortá-la, mas dizer que provavelmente eu era o ser mais perigoso ali com certeza iria piorar a situação.
Minha única opção era lutar contra meus instintos caso algo acontecesse, pois eu sabia que se algo muito forte aparecesse, meus instintos iriam me obrigar a abandonar Stella e fugir.
Não existia nada mais importante que a minha própria vida para meus instintos bestiais, e eles não iriam hesitar em sacrificar Stella para que eu conseguisse fugir.
E eu não queria isso, se tornar amigo com a garota iria estreitar meus laços com Hark, e isso seria bom.
“Ahh!” Ela gritou, caindo aos meus pés e se agarrando em minhas pernas, enquanto apontava para nossa frente.
Apenas uma escuridão noturna se revelou, essa que fugia das chamas de nossa magia. Mas isso não me impediu, graças à minha visão melhorada.
Um rosto deformado se mostrou, nos observando por trás de uma árvore. Sua cabeça estava deitada, e um sorriso medonho sem qualquer dente ou carne nos encarou.
Sua pele era branca e ferida, não tinha nenhum globo ocular ou nariz, parecia um humano incompleto.
Senti cheiro do medo de Stella quando a criatura saiu de trás da árvore e revelou um corpo esguio, fino e alto, sem nenhum tipo de músculo.
Não consegui entender o que aquilo era ou tentava ser, mas minha guarda se aguçou. ‘Um demônio?’
Já matei alguns demônios com aparências parecidas, seus ataques consistiam em usar seu corpo esguio e flexível para agarrar a presa.
E sua boca sem dente era uma mentira, pois ele tem a capacidade de expandir sua garganta e revelar um buraco que estraçalha qualquer carne.
Mesmo sabendo de seus possíveis truques e capacidades, não tinha confiança de conseguir matá-lo. É necessário muito vigor e energia para desviar de seus ataques rápidos e frequentes, e não sabia se meu corpo infantil conseguiria fazer isso.
Além disso, a energia do abismo rodeava sua figura angustiante. Talvez só fosse possível matá-lo com magia.
Nós dois ficamos em silêncio, ela por medo, e eu por outro motivo. Existia a chance de ele permanecer em uma posição passiva que nem o morcego, pelo menos enquanto não houvesse sangue em nós.
“Fique parada.” Ordenei para a garota, que parecia se afundar mais no desespero a cada segundo que se passava.
Acho que a angústia e temor eram tantas que ela não me escutou, e infelizmente se levantou de maneira desajeitada e tentou correr. Tentei impedi-la, mas seu braço deslizou em meu aperto.
O monstro continuou parado, até que a garota tropeçou em uma raiz de árvore e caiu no chão.
A mesma se virou para cima, retirando o manto preto de sua perna e revelando um corte pequeno em seu joelho.
No mesmo segundo a criatura rugiu para o céu, emitindo um som agudo e frenético. Então seus membros finos cravaram no chão e o impulsionaram até Stella.
Tive que lutar contra meus instintos em uma minúscula fração de segundos. Usei toda minha concentração para impedir meu corpo de fugir e aproveitar o fato de que o monstro iria ficar ocupado devorando a garota.
Meus instintos eram profundos, tiveram um espaço de quinhentos anos para florescerem e se aguçarem, mas o corpo era meu.
A mente que o regia era mais forte, e meus músculos doeram quando os forcei a avançar até o monstro.
Óbvio, não estava disposto a me sacrificar, mas isso não era necessário.
Criei um emaranhado vermelho com os melhores fios que consegui encontrar naquele curto espaço de tempo, e o separei em dois antes de formá-los em ataques.
O primeiro colidiu contra o torso da criatura, que caiu para o lado e desceu pela montanha, falhando em alcançar suas garras na garota desesperada.
O segundo subiu ao céu, criando uma explosão que ecoou por toda a montanha.
Meu plano se concluiu, agora só restava rezar que Hark ou outro mago tivesse visto a explosão e viesse nos ajudar.
Peguei Stella no colo e a fiz agarrar meu pescoço para que não caísse. Então usei toda a força do meu corpo para fugir.
Preparei alguns pequenos emaranhados amarelos para caso algo acontecesse, e desviei das árvores que apareciam em meu caminho.
O mesmo rugido agudo marcou a posição do monstro, que parecia se aproximar a cada segundo.
‘Merda, ele é mais rápido.’
Tivemos que subir na montanha, pois a criatura estava entre nós e a cidade, então minha velocidade estava prejudicada, ainda mais carregando uma pessoa do meu tamanho.
Além de usar meu raciocínio para desviar dos obstáculos, tive que o usar para ignorar meus instintos e não deixar a garota para trás.
O som agudo se aproximava, e cada árvore ou raiz me custava instantes preciosos.
Então, uma parede natural de rochas se mostrou na minha frente. Em meu lado direito parecia haver um penhasco, portanto corri para o lado esquerdo.
Infelizmente várias árvores e uma mata fechada me atrapalharam, o que me deixou sem saída.
Sem hesitar usei toda minha força para atirar Stella para cima da parede, e o som se aproximou o máximo possível quando fiz isso.
Olhei para trás, e me encontrei com um rosto branco saindo da escuridão e me encarando com um sorriso.
Empunhei minha espada na mão esquerda e a adaga na direita, e as envolvi em emaranhados elétricos.
O monstro ficou parado, olhando para mim, até que ergueu sua cabeça em direção à Stella acima de mim.
Então, a criatura cravou seus braços no chão e pulou, mas não permiti. Seu torso novamente se encontrou com uma bola de fogo depois que transformei os fios vermelhos em um ataque.
O monstro caiu em cima de mim, e teve seu torso perfurado pela minha espada e dilacerado pela adaga.
Infelizmente sua resistência era alta o suficiente para sobreviver e envolver meu corpo em seu braço esguio, antes de me atirar contra uma árvore.
Tossi sangue no impacto, mas isso não me impediu. Instantaneamente me levantei e avancei até o monstro, criando emaranhados amarelos, um por um, e os lançando.
Subi no pescoço do monstro e dilacerei sua pele com minhas armas, garras e dentes. Os últimos dois não serviram de nada, mas meus instintos me fizeram atacar com tudo que tinha.
Outro membro me envolveu, mas dessa vez fui levado para cima e lentamente colocado na garganta da criatura.
Um abismo de dentes decorou suas profundezas, mas isso não me assustou. Usei todos os fios de meu núcleo para criar emaranhados e os lançar dentro do monstro.
Uma fumaça subiu em meu rosto, e fui jogado contra a parede de rochas.
Então, um fio brilhante laranja e horizontal envolveu o monstro e terminou em minha frente, revelando Hark Levit.
“Mas que merda é essa?” Questionou o homem com espanto na voz.
“… Um demônio.” Revelei, me levantando e tirando a poeira de meus ombros.
“Demônio? Eles não sumiram quinhentos anos atrás?!”