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Capítulo 5 – Preciso de um Homem

Mal acordou e teve um mau pressentimento. Devido às novas exigências de treinamento diário, Martim não foi o primeiro a acordar. A julgar pela quantidade de camas vazias, pelo menos um terço dos colegas já tinha levantado, o que significava que seus temores por filas e salas lotadas se concretizaram.
No banheiro, no café da manhã e no treinamento, teve que dividir espaço com outros colegas e esperar para ser servido. E também teve que aguentar mais olhares tortos e comentários jocosos do que de costume. Em um desses, quase entrou em uma briga:
— Martim! Você está por aqui com a gente, hoje? Achamos que tinha desertado! — disse um soldado, rindo maldosamente.
— Ele não pode desertar. — Era outro soldado agora. — Quem sabe ele não consegue fazer a capitã maluca morrer também, assim como fez com Augusto?
Martim teve que juntar toda a sua força de vontade para não responder.
Além das constantes provocações, a perspectiva de que essa seria sua nova realidade dali em diante deixou-o extremamente mal-humorado. Talvez pudesse acordar ainda mais cedo, mas essa ideia não lhe agradava.
Como esperado, a primeira atividade do dia — a corrida — foi bastante penosa. Para qualquer lugar que olhava, via rostos muito mais ofegantes e cansados do que o normal. O martírio se estendeu pelo treinamento de peso. Já cansado pela corrida longa, Martim podia jurar que os sacos de areia estavam com o dobro de seu conteúdo, e as pedras tinham sido revestidas com chumbo. Antes do início da prática com as armas, ele sentia a visão escurecida e pontadas de dor no lado do corpo. Teve que respirar por alguns minutos antes de pegar sua espada curta — a arma do dia — e encontrar um local vazio para começar. Pelo menos iria treinar com sua arma favorita.
Ao chegar na área designada, Martim percebeu uma outra novidade. Um homem observava os soldados enquanto eles praticavam. Era alto e forte. Tinha a pele negra, bem escura, num tom de ébano. Vestia uma túnica azul amarrada na cintura e calças cinzas. Seus cabelos eram crespos e pretos, exceto por mechas grisalhas nos dois lados da cabeça. Tinha um rosto amigável, mas uma cicatriz na bochecha esquerda lhe conferia um aspecto mais rude. Não usava barba nem bigode, deixando assim visíveis algumas rugas ao lado da boca e na testa. Martim calculou que devia ter entre quarenta e cinquenta anos.
Com a cara séria, ele se apresentou como André, especialista em armas. Ele disse que era companheiro de exército de Maria, tendo servido com ela por muitos anos. Foi convidado pela capitã para ajudá-los a aprimorar suas técnicas de combate, e por isso iria observar os treinamentos durante as próximas semanas. Trazia um pequeno livro nas mãos, no qual anotava o nome de todos e fazia marcações à medida que perambulava entre os soldados.
Exceto por essa parte da rotina, a vida dos soldados pouco mudou nos dias seguintes. A capitã fazia poucas aparições, aparentemente preocupando-se em aprender os detalhes do ofício e os nomes das pessoas. E os soldados continuavam reclamando da carga extra de exercícios.
Quando todos estavam se acostumando um pouco, veio uma nova ordem. Certa manhã, antes do treinamento com armas, André distribuiu pedaços de papel entre os soldados. Martim pegou o seu e, antes que conseguisse entender do que se tratava, ouviu a explicação do treinador:
— Essas são suas novas ordens de treinamento com armas. Eu anotei com que tipo de arma vocês vão praticar a cada dia do mês. Cada ordem é individual, e vocês deverão segui-las cuidadosamente.
Martim correu os olhos por sua agenda e viu que havia apenas treinamento com arco e flecha, lança e maça. Os treinamentos com as espadas — longa e curta — haviam desaparecido. Ele procurou o treinador:
— André, por favor, uma palavra?
— Sim? — respondeu, prontamente.
— Acho que tem algum erro com o meu papel. Não tenho treino com espadas?
— Deixe-me ver… — Pegou o papel das mãos de Martim. — Martim, Martim… — disse, enquanto folheava seu caderno. — Ah, sim. Soldado Martim, eu aferi que você é muito habilidoso com as espadas, mas sua técnica com as demais armas está aquém do seu potencial. Por isso eu programei mais treino com essas armas, especialmente a lança. Precisa melhorar muito seus golpes e empunhadura. Mas não se preocupe, eu vou ajudá-lo com isso.
Martim sentiu uma pontada de raiva de André, mas também de Maria, a verdadeira responsável pela mudança. Protestou:
— Mas… se eu deixar de praticar com a espada eu vou acabar perdendo minha técnica!
André sorriu, devolveu-lhe o papel e disse:
— Sinto muito. As ordens da capitã são para que todos tenham um mínimo de experiência com cada tipo de arma diferente. Até melhorar com as outras, nada de treino com espadas para você! Use seu tempo livre, se quiser. Agora vá pegar sua arma, vou te dar umas dicas iniciais. — Deu uma piscadela.
Martim sorriu apenas para segurar o palavrão dentro da boca. Treinar com espadas era uma das coisas que mais gostava de fazer. A cada dia sentia seu braço mais forte e preciso. Orgulhava-se de não perder quase nenhum duelo. Certamente perderia a destreza em pouco tempo se insistisse com o planejamento de André.
Enquanto se aproximava da estante de armas, sentiu um empurrão em suas costas e caiu de quatro no chão.
— Cuidado aí, Martim! — Tenório, um soldado que adorava provocar Martim, foi o autor da agressão. Ao seu lado, Silas e Percival riram maldosamente.
Levantou-se e retomou seu caminho até a estante de armas, mas percebeu que tinha perdido o papel com suas instruções. Voltou ao local de sua queda, abaixou-se e procurou por alguns instantes em meio à terra e poeira até encontrar o papel amassado. Desdobrou-o e descobriu que era dia de treinar com a lança — assim como nos dois dias seguintes. Era, de fato, o treino de que menos gostava. Resignado, tornou a guardar o papel e pegou uma lança com as mãos antes de se dirigir à área de treino.
André o esperava. Ele tinha uma lança nas mãos também, e girava-a pelos lados do corpo com extrema habilidade. Martim percebeu que era o mesmo gesto que Maria fez antes da luta contra Caim. André disse:
— Vamos lá Martim, segure a lança e aponte-a para mim!
Martim segurou o bastão de madeira com as duas mãos e apontou a lâmina para André. Este sorriu e disse:
— Tudo errado, Soldado! Vamos começar pelos fundamentos. As pernas devem ficar assim, olhe…


— Aquela vaca! — Era Bento. Segurava o ombro direito com a mão esquerda enquanto o girava para frente e para trás. — Acho que desloquei o ombro.
— Qual foi seu treino hoje? — perguntou Tomás. Alguns dias se passaram desde o início dos novos treinos com André. Era noite, e todos estavam no salão comum, na fila, preparando-se para pegar suas refeições.
— André me colocou para treinar com a maça hoje. Meu braço não aguenta, eu disse isso a ele, mas ele não ouviu. Acho que machucou.
— Pare de choramingar, Bento! — disse Ricardo. — Você só está reclamando porque nunca treina com a maça. Prefere o arco e flecha.
— É claro! Consigo acertar uma mosca a um campo de distância. Não tem ninguém com a mira melhor do que a minha neste batalhão! — retrucou Bento. — Mas agora meu ombro ficou dolorido, e graças àquela vadia acho que vai demorar até eu conseguir esticar a corda de um arco novamente. Vou ficar ruim, igual a você.
— Bah! Ninguém desaprende assim, de uma hora para outra — disse Ricardo. — Eu estou gostando, para falar a verdade. A gente saiu um pouco da rotina e está se aprimorando em outras coisas, e daí? Isso é ruim?
Martim, mesmo a contragosto, tendia a concordar com Bento. Resolveu falar:
— Mais ou menos. Ninguém consegue ser bom em tudo. Eu preferiria continuar focando nas espadas.
Ricardo, que nesse momento recebia sua porção de comida, sorriu e disse:
— Ah, Martim, você está é preocupado porque agora a gente vai conseguir melhorar com a espada e você vai começar a perder. O André é muito bom espadachim, hoje mesmo ele me ensinou um golpe novo, aposto que você não conhece.
— No dia em que eu perder na espada para você, Ricardo, eu troco de nome — disse Martim, sorrindo.
Após receber suas porções de comida e bebida, o grupo ficou um tempo em pé, procurando por uma mesa vazia. Em todo lugar que tentavam, os soldados olhavam feio para Martim, esticavam seus braços e se afastavam um do outro para ocupar os espaços livres e impedir que eles se sentassem. Ele disse:
— Acho melhor eu ir comer na cozinha, assim vocês conseguem um lugar para vocês, pelo menos.
— Deixa disso, Martim — disse Carlos. — A gente vai achar um lugar. Ah, olha uma livre ali!
Carlos apontou para uma mesa vazia no meio do salão e eles se sentaram. A conversa continuou por um tempo. Martim reparou que Bento estava com um sorriso estranho. Conhecendo muito bem o histórico do colega, ficou desconfiado e perguntou:
— O que é, Bento?
Bento levantou o rosto e olhou para os colegas. Olhou para os lados, certificou-se de que ninguém ouvia, e disse:
— Não vou estragar a surpresa, mas eu estou pensando em um contragolpe, para deixar a capitã mais… esperta.
— O que é? — perguntou Tomás.
— Calma, amanhã vocês vão ver. — Colocou um pedaço de coxa de galinha na boca e tirou um naco com uma mordida enquanto sorria.
— Bento! Você vai nos colocar em confusão, não vai?
— Calma, não é nada de mais. É só uma brincadeira.
Os soldados entreolharam-se, preocupados. Bento encerrou o assunto:
— Vocês também não estão com raiva dessa mulher? Martim, agora há pouco você estava reclamando dela também! Se der certo, talvez você consiga até aumentar um pouco sua popularidade, que anda muito baixa. Então sosseguem e façam de conta que não ouviram nada — disse, enquanto apontava o osso de galinha para o rosto dos demais.


— Capitã, uma palavra, por favor? — disse Bento.
— Um momento, soldado! — ela respondeu sem se virar. Conversava com outros homens enquanto olhava uns papéis que um deles segurava nas mãos.
Martim estava perto dali, carregando uma caixa que tinha acabado de pegar de uma carruagem. Estavam no pátio do castelo, ocupados em movimentar um carregamento recém-chegado. Junto com eles estava o grupo de amigos de sempre, Tomás, Carlos e Ricardo.
Assim que terminou o que fazia, Maria aproximou-se do grupo. Todos pararam e começaram a prestar atenção.
Martim nunca tinha ficado tão perto da capitã. Sempre a via de longe, em um palanque, ou em um local mais alto, de destaque. Assim, frente a frente, reparou que ela era mais baixa do que todos eles, e que sua figura era pequena e esbelta. Ela parou com as mãos para trás e correu os olhos pelo grupo, encarando-os por um breve momento por trás de seu já conhecido elmo negro.
— Seja breve, soldado! — ela disse.
Bento pigarreou e respondeu:
— Capitã, eu e meus amigos estávamos nos lembrando que estamos com uma falta de fivelas redondas.
— Fivelas? — ela perguntou.
— Sim, tipo essas aqui. — Apontou uma pequena argola metálica que ajudava a segurar uma das pontas de seu cinto. — A gente usa para prender sacolas, aldravas, esse tipo de coisa. O capitão Augusto, parece, já tinha encomendado, mas a gente não está encontrando.
Martim ficou encucado com a conversa. Onde Bento queria chegar com essa história de fivelas? Maria olhou-os por uns instantes e disse:
— Tudo bem, eu vou averiguar. Vocês sabem mais detalhes sobre quando e onde seu ex-capitão fez a encomenda?
Bento respondeu:
— Eu não tenho certeza… mas acho que ele encomendou com o ferreiro Normano.
— Normano? — perguntou a capitã. — Onde fica a loja dele?
— Não sei dizer exatamente, capitã — disse Bento. — Acho que fica perto da área do porto.
— Muito bem! Obrigada, soldados, irei averiguar agora mesmo — disse Maria, acenando com a cabeça antes de se virar nos calcanhares e se afastar.
Bento segurou um sorriso e olhou para os amigos, que estavam encucados. Mas antes que pudesse dizer algo, foi surpreendido pela capitã, que tinha voltado:
— Soldado! Você sabe dizer de quantas fivelas nós precisamos?
— Hã, acho que são cinco para cada homem, capitã — disse Bento, em um claro esforço para conter o sorriso.
— Obrigada, mais uma vez. De volta ao trabalho, todos vocês! — Dizendo isso, ela foi embora de fato.
Após certificar-se de que ela estava longe, Bento irrompeu em uma risada irônica. Martim perguntou:
— O que foi isso, Bento?
— Como eu disse, é só uma brincadeira. As fivelas chegaram ontem, eu mesmo as recebi. Só que eu assinei o nome errado e joguei fora a etiqueta que tinha na caixa.
Os demais deram risadas tímidas. Martim não ficou satisfeito:
— Que nome você assinou?
— O do Carlos! — disse, enquanto apontava para o colega e ria.
— O quê? — protestou o colega. — Você quer me foder, seu desgraçado? Quando ela descobrir…
— Calma, ela vai ficar atrás desse negócio por uns dias, e só! E se vier perguntar de novo, a gente diz que não tinha certeza, que foi o capitão quem organizou a coisa toda, sem falar os detalhes para nós. E a gente só quis ajudar, só isso! Não temos culpa.
Carlos se acalmou, mas não pareceu totalmente satisfeito, pois não acompanhou o riso de Tomás, Ricardo e Bento. Martim também não achou graça. Permaneceu sério e preocupado o tempo todo. Voltou a carregar caixas, como vinha fazendo. Bento emendou:
— Além do mais, ela não vai descobrir. Eu escondi a caixa no depósito junto com umas coisas que estão cheias de poeira e teias de aranha, ninguém mexe lá faz anos. Na melhor das hipóteses, vai chegar à conclusão que o capitão não encomendou nada e pronto. E a gente vai ganhar uns dias longe dela e dar umas risadas.
Ainda desconfiado, Martim balançou a cabeça em repreensão ao colega. Definitivamente, precisava afastar-se de Bento.


— Soldado? — Maria chamou Bento, que tomava café junto com Ricardo. Martim sentava-se na mesa ao lado, de costas para a cena.
Ele levantou-se rapidamente e ficou em pé para encarar a capitã.
— Pode ficar sentado, soldado!
— Obrigado, capitã! — Voltou a se sentar.
— Eu não consegui achar a loja do ferreiro Normano na zona portuária. Fiquei andando por lá ontem a tarde toda. Depois de muito tempo, descobri que existe um ferreiro chamado Armando, mas que fica nos arredores do bairro dos ofícios, mais ao norte.
— Ah, é verdade! Acho que era Armando, mesmo! Peço desculpas, capitã, eu não tinha certeza… foi o capitão Augusto quem organizou…
— Depois eu fui até o bairro dos ofícios — interrompeu-o — e achei o tal Armando.
— Achou, é? — disse Bento, parecendo suprimir uma risada.
— Sim, mas ele… recusou-se a falar comigo!
— Por quê? — perguntou Bento. Claramente forçava uma preocupação genuína.
— Ele disse que de fato fez negócio com Augusto, mas que só poderia falar com ele ou com um outro representante da guarda real.
Martim ficou curioso. Bento leu sua mente, pois expressou a mesma pergunta que formulou:
— Ué? Mas a senhora não é a capitã?
Maria moveu seu corpo de um jeito impaciente e disse:
— Olhe só, pelo que percebi, esse Armando é um velho bastante teimoso. Ele deixou bem claro que só falaria com outrO — enfatizou a letra “o” — representante da guarda real. Eu não quero criar confusão por um assunto tão simples. Então, estou precisando de um homem. Poderia ir lá comigo, depois do café?
Ela olhou para Bento, que parecia maravilhado com aquela cena. Depois de alguns segundos, ele disse, fingindo pena:
— Oh, eu… é que hoje é minha folga… eu já ia sair depois do café, visitar minha família, mas posso sim ir com a senhora, só me dê alguns minutos.
A capitã respondeu:
— Não, não, pode deixar! Vá visitar sua família! Mas obrigada por se dispor.
Bento sorriu e voltou a comer seu café da manhã. A capitã virou-se e começou a se afastar. Olhava para os lados, parecendo procurar alguém, mas ninguém se atrevia a olhar para ela. Todos concentravam-se em comer e manter a cabeça abaixada. Ela enfim saiu do salão.
— Ah! Ah! Ah! Ah! — Bento soltou uma gargalhada. — Estou precisando de um homem! Ah! Ah! Ah! Vocês ouviram isso? — disse, enquanto levantava os braços e gesticulava para todos ao seu redor.
Muitas risadas ecoaram pelo salão. Martim, que estava de costas, virou-se para Bento e perguntou:
— Então existe um ferreiro Armando?
— Sim, é claro! Acha que eu ia inventar a história toda? — disse Bento.
— E você o conhece?
— Claro que o conheço! Essa é a genialidade do meu plano. Tudo o que eu disse era verdade. Eu sabia que o capitão fez encomenda com ele, só confundi um pouquinho os nomes e a localização da loja. E eu sabia que ele não iria decepcionar. O velho é mesmo uma figura! Ah! Ah! Ah! — Ele sorria muito satisfeito. — Estou precisando de um homem… essa foi muito boa!
A partir daquele momento, as conversas giraram ao redor do trote que Bento passou na capitã. Considerando que o sentimento generalizado era de revolta contra Maria, o humor dos soldados melhorou bastante depois do episódio. Apenas Martim se preocupava. Certamente nutria sentimentos ruins contra a capitã e sentia muita falta de Augusto, mas ainda sentia medo dela. Ela era muito esperta e ousada. E já tinha cortado a garganta de soldados antes. O que iria acontecer quando descobrisse a verdade a respeito da “brincadeira”?

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Olá, eu sou Daniel.Lucredio!

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