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Capítulo 6 – Crime e Punição

Ficava mais cansado a cada dia que passava. Irritado com a nova rotina, Martim experimentou acordar mais cedo. Conseguiu recuperar um pouco da solidão e tranquilidade, mas seu corpo ainda não estava acostumado com os novos horários, e ele sofreu com isso. Na última semana, quase não conseguia correr as quatro voltas ao redor do castelo. Os sacos de areia e pedras pareciam mais pesados do que nunca.

Além disso, suas habilidades com a lança não pareciam melhorar. Ainda não a sentia como parte constituinte de seu braço, o que sempre acontecia quando empunhava uma espada. E convivia com os problemas causados pela madeira que escorregava em suas mãos e deixava farpas afiadas sob sua pele. André, que insistia em ajudá-lo sempre que podia, vivia derrotando-o em duelos simulados, batendo dolorosamente em seus braços e pernas com o cabo de madeira para mostrar o que fazia de errado.

Um dia, André, sem saber dos conflitos que Martim enfrentava, colocou-o para treinar com Silas, que era um dos soldados mais habilidosos, e um dos que menos gostava de Martim. Ambos seguravam suas lanças e escudos enquanto André dava instruções para Martim. Silas, sempre sorrindo maldosamente, golpeava com muita força e derrubava seu oponente várias vezes.

— Não, não, Martim! — disse André. — Você está se concentrando na ponta da lança! Olhe para os braços do inimigo, para a origem do movimento!

— Isso, Martim! Olhe para meus braços, para as minhas mãos! — disse Silas, enquanto fazia um gesto obsceno com os dedos.

— Sim, treinador! — disse Martim.

— Lutem!

Martim tentou golpear, mas Silas travou sua lança entre o corpo e escudo. Puxou-o para frente e prendeu-o pelo braço. Na posição em que ficou, não conseguiu evitar um forte golpe de joelho em seu estômago. Sentindo muita dor, caiu no chão, sem ar. Ouviu Silas dizendo em seu ouvido:

— Por que você não vai embora, seu fracote de merda? Ninguém mais quer você aqui!

— Está bem, está bem, chega por hoje! — disse André, ao interromper a luta.

Silas deu um sorriso. Deixou cair sua lança e escudo e se afastou. André se aproximou e ajudou Martim a se levantar. Ainda sentindo muita dor, Martim se esforçou para permanecer em pé e conseguir respirar.

— Tudo bem, Martim? — disse André, com pena no olhar.

— Estou!

— Escute… Eu ouvi umas histórias por aí. Dizem que o capitão Augusto…

— Eu não quero conversar!

Martim se afastou rapidamente. Naquele momento, sentia muita raiva de André, por tê-lo obrigado a lutar com a lança, por fazê-lo passar por aquela humilhação, e por sentir pena dele. Não queria ser obrigado a reviver toda a culpa que sentia em relação a Augusto. Sentiu também raiva de Maria, a verdadeira causadora daquilo tudo.

Mas os acontecimentos ruins do dia não tinham acabado. Pouco tempo depois recebeu a notícia que tanto temia. Foi dada por Marcel, um dos cinco novos soldados que se juntaram à guarda nos últimos dias para recompor a contagem original do batalhão. Martim gostava dele, principalmente porque, por ser novo, não conheceu Augusto e portanto ainda não tinha se juntado à maioria para odiá-lo por sua morte.

Martim estava em seu horário de descanso quando Marcel o abordou:

— Martim! A capitã está chamando você. Quer que você a encontre no escritório dela.

Olhou para o jovem e imaginou do que se tratava.

— Certo, obrigado! Hã, ela parecia brava?

— Brava? — respondeu Marcel. — Não sei dizer, com o elmo cobrindo a cara dela, né? Se bem que…

— O que?

— Parece que ela passou os últimos três dias andando pela cidade. O pessoal comentou que ela parecia meio nervosa mesmo.

Martim assentiu com a cabeça, já conformando-se com seu destino.

— E ela chamou mais alguém, além de mim?

— Para falar a verdade, sim. Ela mandou procurar Carlos, Tomás e Ricardo.

Martim fez uma cara de espanto. Perguntou:

— Não chamou Bento também?

— Não. Pelo menos não me disse nada.

— Tá bom, obrigado. — Deu um tapa no ombro de Marcel, com um sorriso triste, antes de atender ao chamado da capitã.

O escritório dela ficava em um local mais alto no castelo. Conhecia-o bem, pois era o mesmo utilizado pelo antigo capitão, a quem visitou algumas vezes para ter longas conversas e, principalmente, para ouvir seus conselhos. Depois de passar por diversos corredores e subir dois lances de escadas, aproximou-se da porta entreaberta. Espiou pelo vão, tentando ser o mais silencioso que conseguia.

A capitã estava em pé, de costas, próxima a uma mesa de madeira. Estava sem o elmo na cabeça, e pela primeira vez ele pôde ver seus cabelos. Eram levemente ondulados e bem escuros, quase negros. Desciam até um pouco acima da altura dos ombros, e as pontas faziam uma suave curva para os lados de fora da cabeça. Com medo de ser notado espiando, ele se afastou, bateu na madeira e chamou-a:

— Capitã?

— Sim? — ela respondeu.

— Com licença, é que recebi um chamado para procurá-la aqui.

— Aguarde um momento, por favor.

Martim virou-se de costas e ficou esperando. Em pouco tempo, chegaram também Carlos, Tomás e, por último, Ricardo. Os amigos olhavam um para o outro consternados, sem dizer uma palavra. Martim estava particularmente revoltado por Bento não estar ali para receber a reprimenda junto com eles.

Depois de alguns angustiantes minutos, ouviram a voz da capitã:

— Entrem!

Martim olhou uma última vez para os amigos. Ricardo levantou as sobrancelhas e apertou os lábios, em um gesto resignado, e abriu a porta.

Maria tinha colocado seu elmo e estava sentada em sua cadeira, atrás da mesa. Assim que os quatro entraram, ela já começou a falar:

— Boa tarde, rapazes.

Martim achou estranho a cordialidade na voz dela, e o fato de que ela não os chamou de soldados, como sempre fazia. Eles responderam com um “boa tarde” em voz baixa e tímida. Ela continuou:

— Acho que já sabem por que estão aqui, não é? — Seu tom de voz era calmo. — Passei os últimos dias procurando fivelas para vocês não ficarem com as calças na mão. De fato, descobri que elas tinham sido encomendadas, mas ninguém conseguia achá-las. Então encomendei novamente. Trezentas argolas de ferro! Sabem quanto custou?

Ela não esperava uma resposta. Parou apenas para respirar e logo retomou a fala. Sua voz se elevou e começou a ficar irritantemente estridente:

— Mas hoje cedo eu resolvi conferir as entregas feitas nos últimos dias, e olhem o que eu descobri!

Entregou um grosso livro a Ricardo, que estava mais próximo.

— Por favor, veja o que está registrado no dia quinze deste mês! Oh, desculpe-me, você sabe ler? — A pergunta parecia sincera e arrogante ao mesmo tempo.

— Sei sim, senhora — respondeu Ricardo, envergonhado. — Hã, tem aqui algumas entregas… roupas, corda, couro… 

— Tem uma entrega feita por um tal de Armando? Ferreiro Armando? Procure bem!

Martim olhou para Carlos, que fazia uma cara de choro. Ricardo confirmou:

— Tem sim!

— E quem assinou essa entrega?

— Foi Carlos, capitã!

— E quem mais estava recebendo entregas nesse dia?

Ricardo leu, com pesar, os nomes dos outros amigos:

— Ricardo, Tomás e Martim, capitã!

— Exato! — Pegou o livro de volta das mãos de Ricardo. — Vocês sabiam que eu estava procurando essas malditas argolas e esqueceram que elas já tinham chegado?

Martim olhava para baixo, com medo de encarar a capitã. Ela continuou, agora mais calma:

— Sei que vocês provavelmente vão dizer que não sabiam o que tinha na caixa, mas eu não sou estúpida, percebo as pessoas rindo às minhas costas. E eu sei quando estou sendo feita de idiota!

Ficou em silêncio por uns instantes, à espera de algum tipo de pedido de desculpas. Ninguém teve coragem de dizer nada. Ela disse, em um pouco o tom de voz um pouco mais baixo:

— Olhem, eu não acho ruim que façam uma brincadeira de vez em quando. Já servi na infantaria, convivi com centenas de homens, e havia muitas risadas entre nós. Eu mesma já preguei uma peça aqui e outra ali.

Fez mais uma pausa, e continuou:

— Não estou disposta a castigá-los por uma bobagem. Mas se de fato essas argolas estão aqui, eu preciso encontrá-las e cancelar a nova compra. E é aí que vocês entram!

Martim levantou o rosto e contemplou a capitã. Ela começou a mexer em uma caixa que estava sobre a mesa. Pegou um molho de chaves e o entregou nas mãos de Ricardo, dizendo:

— Tem cinco depósitos no castelo. Vocês têm até o final do dia para encontrar essas malditas fivelas e trazerem para mim.

— Sim, capitã! — respondeu Ricardo, esticando o corpo e parecendo satisfeito com a punição simples que receberam.

— E para evitar que esse tipo de problema se repita no futuro, vocês deverão aproveitar e catalogar todas as caixas que estiverem sem etiqueta ou marcação nos depósitos. Levem esses registros — entregou um livro para Carlos —, e marquem aqui o que encontrarem. Nome e quantidade de tudo o que estiver por lá!

Carlos fez uma cara triste ao sentir o enorme peso do livro.

— E usem isso aqui — entregou um monte de papel e um vidro de tinta para Tomás — para fazer novas etiquetas para as caixas que não estiverem identificadas. Acabei de voltar dos depósitos e reparei que muitas das etiquetas desapareceram misteriosamente.

Martim não pode ver, mas ela certamente ostentava um sorriso sarcástico por baixo do elmo.

— Alguma dúvida? — A voz falsamente amigável retornou.

Ricardo não se conteve e perguntou o que todos queriam saber:

— Capitã, desculpe perguntar, mas… — Olhou para os colegas. — A senhora…

— Senhorita!

— Desculpe-me… a senhorita não pensou em chamar… o soldado Bento, também?

Ela fez uma pausa e respondeu:

— Eu já conversei com ele, não se preocupem com isso. Eu tenho orgulho em saber julgar muito bem o caráter das pessoas.

— Sim, capitã! — respondeu Ricardo, abaixando os olhos.

Antes que todos saíssem da sala, ela acrescentou:

— Esqueceram que eu consigo farejar traidores?

Eles assentiram e saíram, fechando a porta atrás de si.


— Nem chegue perto, Bento! — disse Tomás.

Carlos, Ricardo, Tomás e Martim estavam do lado de fora do castelo, preparando-se para a corrida matinal, e olhavam feio para o amigo que se aproximava.

— Calma, amigos! Por que estão tão bravos? — Deu uma risada e um tapa forte nas costas de Carlos.

— Passamos um dia e uma tarde inteiros organizando um milhão de caixas naqueles depósitos empoeirados, por culpa sua! — respondeu Carlos.

— É, você se achou muito esperto por assinar o nome de outro para fazer a sua travessura, não é? — perguntou Tomás.

— Desculpem, mas valeu a pena. A capitã ficou uma fera, não ficou?

— Poupe-nos desse papo besta! — disse Martim. — O que foi que você falou para ela? Por que não estava lá junto com a gente, organizando as caixas e engolindo poeira?

Ele fez uma cara séria e disse, parecendo muito orgulhoso:

— Aparentemente, eu sou muito mais charmoso do que vocês.

— Corta essa! — disse Ricardo.

— E ela é uma idiota, é claro! — Bento completou. — Não saberia diferenciar uma freira de uma puta. — Ele se aproximou dos colegas. — Acreditam que ela acha que eu não tive culpa?

Incrédulo, Martim perguntou:

— Como assim? Foi você que começou essa história toda!

— Mas eu disse antes qual era a genialidade do meu plano, não disse? Eu só falei verdades para ela, e ela acreditou em mim. — Levantou o queixo ao dizer isso.

— É, mas você assinou meu nome no registro! — disse Carlos. — Foi uma grande sacanagem comigo!

— Desculpe, cara! Eu realmente te devo uma. — Deu um tapa no ombro do colega. — É sério, você pode me pedir qualquer favor, e eu te faço. Para vocês todos, na verdade, ouçam isso…

Eles se aproximaram para ouvir.

— Ela até me pediu um conselho. Disse que achava que essa brincadeira não era coisa de uma pessoa só. Disse também que viu os nomes de vocês na lista daquele dia. Me perguntou se vocês eram muito amigos e se falavam mal dela pelas costas.

— E o que você disse, seu paspalho?

— Eu pensei o seguinte: vocês já estavam encrencados, de qualquer forma. Tentei ganhar a confiança dela, e acho que consegui.

— Como assim? O que você falou? — perguntou Martim.

— Eu disse que sim, que vocês ficam falando mal dela… calma, já disse, eu devo um favor a todos vocês! — acrescentou, ao ver a reação brava de Carlos. — E eu dei conselhos a ela, sobre como conversar com vocês para parecer mais simpática, tipo, chamar os soldados de “homens” ou “rapazes”, ao invés de ser mandona o tempo todo. Porque homem é assim mesmo, não gosta de receber ordem de mulher, então não custa ser um pouco mais amigável… esse tipo de coisa.

Bento sorria enquanto falava. Martim sentiu muita raiva. Não apenas por ter sido castigado por algo que não fez, mas também por ver que a capitã era tão influenciável e estava se deixando enganar tão facilmente.

— Mas fiquem sossegados, pois a coisa não termina aqui. E dessa vez não vai ser uma simples travessura.

— Poupe-nos, Bento! Chega de confusão! — disse Martim.

— Não, não precisam mais se preocupar. Não vou dizer nada, apenas o seguinte: quando a hora chegar, vejam bem do lado de quem escolherão ficar. — Levantou as sobrancelhas, com um ar misterioso no rosto, e começou a sua corrida.

Os quatro amigos se entreolharam, sem saber o que pensar. Martim balançou a cabeça negativamente e começou a correr também, dizendo:

— Vamos, esqueçam essa história toda!

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Olá, eu sou Daniel.Lucredio!

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