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Capítulo 8 – Faíscas no Escuro

No caminho, cruzou com os dois soldados que tinha enviado antes. Estes voltavam acompanhados por alguns curandeiros que iam até a sala do trono. Martim desviou-se deles e continuou a subir pelo castelo. Quando finalmente chegou ao andar superior da torre, onde ficava a sala de cura, soltou um suspiro de alívio. Dois curandeiros já o esperavam do lado de fora. Ao vê-lo, um deles gritou:

— Rápido, coloque-a na mesa!

Entrou na sala, localizou a mesa e gentilmente deixou Maria escorregar de seus braços encharcados de sangue, colocando-a sobre a superfície lisa e tomando cuidado para não causar nenhum ferimento adicional. Afastou-se e olhou enquanto os curandeiros corriam de um lado para o outro. Um deles entregou uma garrafa nas mãos de Martim e disse:

— Vamos precisar de sua ajuda. Tome, dê de beber a ela. Tente fazer com que ela beba toda a garrafa.

— O que é isto?

— É uma mistura para que ela sinta menos dor.

Martim abriu a garrafa e sentiu um forte cheiro de álcool e outras substâncias desconhecidas. Em seguida aproximou-se da mesa e começou a procurar no pescoço da capitã a tira de couro que prendia o elmo. Soltou-a e tirou delicadamente a pesada peça metálica que escondia seu rosto.

Ele já tinha visto rapidamente os cabelos de Maria antes, quase negros e levemente ondulados, não muito compridos, caindo até a altura dos ombros. Agora contemplava seu rosto pela primeira vez. Era fino e proporcional, com um nariz que era reto, exceto por uma pequena protuberância em forma de bola, quase imperceptível, na ponta. Sua boca não era muito grande, mas os lábios eram carnudos, e exibiam um tom avermelhado intenso. As sobrancelhas, mais grossas no centro e afinando-se ao longo do arco arredondado de sua testa, destacavam os olhos, que estavam fechados, mas que ele sabia serem cor de amêndoa. Parecia jovem. Martim calculou que devia ter mais ou menos sua idade, que era de vinte e três anos. 

— Vamos, ela precisa beber, senão vai sofrer muito! — Um curandeiro tirou Martim de sua contemplação.

Martim levou a garrafa até os lábios da capitã, e o cheiro forte de álcool a despertou imediatamente, mas ela não abriu os olhos. Suas sobrancelhas se contraíram, as pálpebras se espremeram e a boca se distorceu em agonia, revelando uma dor intensa. Ela começou a gemer.

— Capitã! — chamou Martim. — Capitã, você precisa beber isto, vamos!

Ela entreabriu os olhos e, vendo a garrafa perto de seus lábios, pareceu entender do que se tratava. Abriu a boca e deixou que um pouco do líquido entrasse. Ela fez uma careta, mas engoliu. Martim posicionou melhor suas mãos, colocando uma embaixo de sua cabeça. Sentiu o toque macio e úmido de seus cabelos suados ao levantá-la gentilmente. Com a outra mão, continuou administrando a bebida em doses pequenas.

Entre um gole e outro, Maria fazia caretas de dor, e Martim logo entendeu o porquê. Os curandeiros estavam removendo as peças metálicas de sua armadura e cortando suas roupas para poder tratar seus ferimentos. Remover as placas da armadura era trabalhoso, pois estavam firmemente amarradas ao seu corpo. Apesar do cuidado, os movimentos faziam os ferimentos sangrarem bastante. Ao perceberem que Martim olhava para eles, os curandeiros apressaram-se em dizer:

— Não pare agora, continue, soldado!

Martim voltou sua atenção ao remédio. Depois de um longo esforço, pois a garrafa não era pequena, conseguiu fazer com que ela bebesse todo o líquido. A essa altura, ela já tinha fechado os olhos novamente, mas a dor ainda transparecia em seu rosto contorcido. Ele tentou acalmá-la. Segurou sua mão e disse:

— Pronto, agora a dor já vai melhorar.

Ela segurou sua mão de volta, apertando-a com força a cada espasmo de dor. Aos poucos a pressão foi diminuindo, e Martim percebeu que o remédio devia estar fazendo efeito. Ela parou de reagir de repente. Pareceu entrar em um sono profundo.

Martim respirou aliviado, achando que já estava tudo bem, mas um dos curandeiros logo o advertiu:

— Não deixe que ela durma! Ela precisa lutar, está perdendo muito sangue e o coração dela está quase parando. Acorde-a, fale com ela!

Ele não entendia nada daquilo, pois nunca tinha visto alguém morrer assim antes. Sempre que presenciou a morte, era alguém doente, ou muito velho, ou algum guerreiro gravemente ferido, que em poucos segundos ou minutos parava de respirar. Pensando nisso, ponderou se não era exatamente o que estava acontecendo com a capitã. Obedecendo às ordens do curandeiro, tentou chamá-la:

— Capitã? Capitã? — Ele apertava sua mão enquanto a chamava, mas não adiantava. — Capitã? — Começou a chamar mais alto. Não obtendo resposta, deu alguns tapas em seu rosto, na tentativa de acordá-la. Depois de algumas tentativas, ela finalmente abriu os olhos.

Ele suspirou e disse:

— Capitã, tente não dormir, está bem?

Ela estava com os olhos muito embaçados. Não conseguia focar em nada. Ao piscar, fazia-o uma pálpebra de cada vez. Com muito esforço, ela finalmente encontrou os olhos de Martim. Demorou um pouco até ela perceber isso, e sua reação deixou-o surpreso. Ela sorriu. Com a voz mole, disse:

— Ooolá, você! Nossa, que homem bonito! — Um sorriso bobo se abriu nos lábios dela.

Martim ficou ruborizado. Entre todas as reações estranhas que poderiam ter acontecido, essa ele nunca teria adivinhado. Maria continuou balbuciando, enquanto olhava para ele:

— M-muito b-bonito mesmo. Olha essas covinhas, que lindas!

— Ela está embriagada — explicou um curandeiro. — É efeito da bebida, é normal. Continue falando com ela.

Martim devia estar com o rosto muito vermelho. Tentou dizer algo, mas não fazia ideia do que falar:

— Er… o-obrigado!

— Soldado, por que está corado? Ei, espera aí! — Nesse momento ela levantou a mão que não segurava a de Martim e a colocou em sua barriga, apalpando-a. Subiu um pouco e apalpou seus seios. Ela perguntou, com um soluço bêbado e ficando muito séria de repente: — P-por acaso eu estou s-sem roupas?

Martim achava que era impossível, mas ele sentiu a pele do rosto ficar ainda mais quente após esse comentário. Maria não ligou, pois sorriu e continuou falando:

— Ora, ora, soldado, então está apreciando a vista, hein? Está gostando?

— E-eu… e-eu… — Olhou para o lado e viu que os curandeiros seguravam o riso.

— Ah, não, que b-bobagem a minha! Devo estar horrível, toda rasgada e furada, não é? — Ela fez uma cara de choro. — Diga-me, soldado, como estou? S-seja h-honesto!

Martim olhou para o corpo de Maria e achou que ela não podia ter sido mais precisa: horrível, rasgada e furada. Havia um furo feito pela primeira lança, em sua cintura, outro na perna, feito pela flechada de Bento, e um rasgo no ombro, que atravessava desde a frente até as costas. Sangue saía em profusão por todos esses locais. Um hematoma gigantesco deixava boa parte de seu tórax enegrecido. E a ainda visível cicatriz na perna, resultado da batalha contra Caim, tampouco ajudava a melhorar a imagem.

Martim achou que falar a verdade só iria piorar as coisas, então tentou outra abordagem:

— Bom, sinto lhe informar, capitã, mas parece que você perdeu seu pé direito!

Ela olhou para ele, no que parecia um enorme esforço para compreender o que ele falou. Depois de vários segundos, finalmente entendeu a piada, jogou o rosto para trás e soltou uma sonora gargalhada:

— Ah! Ah! Ah! Ah! Ai! Ai! Au! Aiaiaiai! — O riso terminou com gritos de dor.

— Não, assim não! Não deixe que ela se mexa muito! — alertou um dos curandeiros. — Só vai piorar os sangramentos.

Depois que a dor passou, ela continuou sorrindo e olhando para ele. Disse:

— Qual é o seu nome mesmo? Sou péssima com nomes, me desculpe. É Tomás? Ricardo?

— Eu sou o Martim, capitã! — ele respondeu, sorrindo.

— Martim, é mesmo! Obrigada, Martim. Por ficar aqui comigo, me fazendo sorrir assim. Segura minha mão?

Ele já estava segurando-a fazia tempo. A mão dela estava fria, e Martim achou que seu rosto estava cada vez mais pálido. Seus olhos, que até então estavam acesos, voltaram a se embaçar e perder o foco.

— Estamos perdendo, o sangue não para de sair! — disse um dos curandeiros, com a voz carregada de desespero.

O medo começou a tomar conta. Precisava mantê-la acordada, era só o que importava. Disse:

— Capitã, a luta foi um sucesso! Não perdemos nenhum homem, e a rainha está salva, você foi… 

— Martim… — ela interrompeu-o. Em seguida fez um enorme esforço para engolir. Seus lábios ressecados estavam bem mais brancos agora. — S-se esses vão ser os meus últimos minutos aqui na Terra, não quero falar sobre essas coisas. Quero ouvir uma conversa boa, quero dar risada, por favor…

Ela sabe que está morrendo!

Ele abriu a boca sem conseguir emitir som, engasgando com sua própria voz. Enfim disse:

— C-claro, é claro, capitã… 

— Maria… Me chame de Maria!

— Sim, Maria, é claro!

Ela respirou fundo. Sua mão estava gelada. Continuou falando, agora bem baixinho:

— Fale-me sobre você. De onde você é?

Ela tinha recuperado o brilho nos olhos. Sob a fraca luz das tochas que iluminavam a sala, eles ficavam quase negros, com faíscas alaranjadas que brilhavam no centro. 

Em breve esses belos olhos se fecharão para sempre!

O pensamento macabro fez seu sangue congelar, e um arrepio tomou conta de todo seu corpo. Para tentar se anestesiar contra aquilo que estava por vir, começou logo a falar:

— Minha família é daqui, eu cresci em um pequeno bairro de pescadores. Meu pai era pescador. Eu tenho três irmãs e dois irmãos. Os homens são mais velhos do que eu… 

Ela sorria, saboreando as palavras. Martim continuou falando. Contou um pouco de sua história de vida, passando pela infância e adolescência, sem de fato saber se Maria estava ouvindo ou não. Ela às vezes piscava, mas a sua expressão ia ficando mais serena, e o rosto cada vez mais pálido. Os curandeiros continuavam a fazer tudo o que podiam. Num dado momento, Martim ouviu um chiado alto e um forte cheiro de queimado. Um dos curandeiros tinha pressionado um grande pedaço de ferro quente contra um dos ferimentos, mas ela não teve nenhuma reação. Seus olhos ainda olhavam para Martim, mas perderam novamente o brilho. A boca, muito branca e ressecada, estava entreaberta. O sorriso tinha desaparecido.

Martim parou de falar. Olhou, encantado, para o rosto congelado de Maria, agora revestido por uma beleza etérea, inatingível. Olhou para os curandeiros, que continuavam a trabalhar. Um deles percebeu o silêncio repentino e encarou o rosto da capitã. Com uma expressão de pesar, colocou as mãos nos olhos dela e os fechou. Depois disse a Martim:

— Seu coração está quase parando. Nós vamos continuar tentando aqui, mas se você quiser, já pode ir embora. Não tem mais nada que possa fazer.

Ele assentiu com a cabeça. Afastou-se, deu uma última olhada para o corpo da capitã e saiu da sala.


Martim não foi embora. Decidiu ficar ali, do lado de fora, sentado próximo à porta. Passou as últimas semanas odiando a capitã, e se lhe perguntassem o que ele diria se soubesse que ela tinha morrido, ele daria de ombros e responderia que não se importava. Mas agora algo mudou. Ele simplesmente não conseguia ir embora sem saber se Maria estava viva ou morta.

Martim não viu quando um dos curandeiros finalmente abriu a porta, pois estava dormindo, sozinho e sentado no chão, com a cabeça apoiada nos braços. Apenas sentiu um cutucão leve em seu ombro, o que o fez levantar-se em um pulo:

— O que foi? O que?

— Calma — respondeu o homem. — Escute, nós terminamos aqui, não podemos mais fazer nada, exceto esperar.

— Hã? Ah, e como ela está? Ela… 

— Conseguimos parar os sangramentos, mas demorou demais, e ela perdeu muito, muito sangue — explicou o homem. — Por algum motivo inexplicável, ela ainda respira, mas temo que isso não vá durar muito tempo. Eu acho melhor você ir embora, filho, vá descansar um pouco!

Martim assentiu com a cabeça e despediu-se com um sorriso triste, antes de seguir o caminho de volta pelos frios corredores do castelo.

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Olá, eu sou Daniel.Lucredio!

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