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Capítulo 20 – Derrota

Estava em pé, do lado de fora da arena. Sua armadura, firmemente amarrada a todo o seu corpo, estava pesada e quente. Também cheirava um pouco mal, depois de vários dias sendo usada a todo momento.

Podia ouvir, de dentro da arena, o crescente barulho das pessoas que iam chegando. Imaginou-se ali também, apenas um mero espectador, sem responsabilidades nem pressão. E sem precisar lutar contra Maria.

Ela estava do seu lado, a poucos metros de distância. Sua armadura escura parecia elegante e bonita, como sempre. Foi reforçada por tiras de couro grosso nas áreas mais expostas, para evitar um ferimento grave. Isso diminuiria sua mobilidade, pensou Martim.

Ambos olhavam para o portão que dava acesso à arena. Estavam esperando pela chamada do arauto, que anunciaria o início do combate final em alguns minutos. Mas o tempo não passava. Além da ansiedade pelo combate, da expectativa de vencer o torneio, e do fato de que estava prestes a lutar contra Maria, que era uma excelente guerreira, havia a enorme tensão que pairava entre os dois.

Martim queria dizer alguma coisa, mas não tinha coragem. Depois de sua última tentativa de ser amigável, na qual tinha fracassado, ele perdeu sua confiança habitual. Maria foi hostil naquela ocasião, e agora, prestes a lutar, parecia ainda mais feroz. Suas pernas se moviam constantemente, e ela mudava de posição a cada cinco segundos, impaciente. Ele temia que se dissesse um mísero “oi”, levaria um coice de proporções monumentais. Então decidiu ficar em silêncio. Maria não parecia disposta a fazer o mesmo. Ela disse, sem olhar para ele:

— Você lutou bem com a lança. Andou treinando?

— Obrigado. Sim, treinei.

— Engraçado, lembro que você disse antes… como era mesmo? Melhor ser bom em uma coisa do que mediano em várias. Foi isso?

Martim não respondeu. Sentiu suas bochechas ficando quentes. Maria não parava de cutucar:

— Na época eu te admirei, sabia? Defendendo seus princípios… Mas acho que quando entra um prêmio na jogada, os princípios vão para as cucuias.

A irritação continuou a crescer no peito de Martim. Maria continuou provocando-o:

— Qual prêmio te motiva mais? O dinheiro? Ou a garota?

Martim não resistiu e retrucou:

— No momento? O dinheiro, sem dúvida nenhuma.

Ela soltou o ar em um suspiro rápido e demorou um pouco para responder:

— Tanto faz. Você não vai ganhar nenhum dos dois.

Martim achou que não conseguiria mais se controlar. Lutou muito para chegar até ali. E fez por merecer. Treinou com afinco e sacrificou todos os seus horários de folga para aprender a lutar melhor. Vencer o torneio significava uma mudança muito importante em sua vida, uma mudança da qual ele precisava e que passou muito tempo fugindo.

E, é claro, Maria estava sendo injusta com ele. Em momento algum ele foi mal-intencionado. Muito pelo contrário. Ele estava genuinamente preocupado com ela. Se ela não fosse tão irascível, poderia ter tido a paciência de pelo menos ouvir suas explicações e perceber como julgava-o de maneira completamente equivocada. Sem ligar para as consequências, ele disse, com os dentes cerrados:

— É, eu acho que vou perder. E a rainha vai ficar muito feliz com a cachorrinha dela, toda obediente.

Maria não respondeu, mas sua respiração ficou claramente pesada, trêmula. Ele achou que ela fosse explodir e voar até sua garganta, mas ela apenas respirou fundo e ficou quieta. Não falou mais com ele até que o arauto fizesse o anúncio, chamando-os à batalha:

— Recebam com aplausos o grande vencedor até o momento, Martim, e a capitã da guarda real, Maria!

Ela saiu antes, caminhando a passos rápidos pelo gramado esburacado. Ele a seguiu, sendo recebido por um forte barulho de aplausos e vivas. A multidão começou a gritar seu nome:

— Martim! Martim! Martim!

Sentiu um misto de júbilo e tristeza. Por um lado, vivia seu sonho, sendo ovacionado, reconhecido como um guerreiro, um herói. Era respeitado. Por outro lado, ele imaginava como ela devia estar se sentindo mal, com todos torcendo contra ela.

Ela te odeia! Não pense nisso agora. Você fez por merecer. Você precisa disto. Odeie-a também!

Continuou caminhando até parar ao lado de Maria. Ambos olhavam para a arquibancada, em direção à rainha. Catarina tinha um sorriso orgulhoso, e Martim se lembrou dos duelos com Aires e Caim, quando Maria — e sua rainha — saíram vitoriosas de uma situação parecida. Só que dessa vez era ele, Martim, quem provavelmente estaria caído no chão ao término da luta. Pelo menos era apenas um torneio e não um combate até a morte.

O arauto ergueu sua voz, fazendo-se ouvir em meio ao barulho:

— O combate final está prestes a começar! — O barulho diminuiu. — Se o soldado Martim vencer a capitã Maria em combate, será digno da premiação maior do torneio, duzentos dobrões. Se perder, não ganhará nada!

— Não é emocionante? — disse a rainha, batendo palmas.

O arauto hesitou um pouco ante a interrupção, mas logo continuou:

— O combate seguirá as mesmas regras do torneio. Cada golpe que encontrar seu alvo vale um ponto. O primeiro a conseguir dez pontos, vence.

Dez golpes, dez pontos. Vai acabar rápido.

— Conforme as regras do torneio deste ano, a capitã é quem escolhe as armas, suas e de seu adversário.

Maria se dirigiu até uma estante próxima à parede da arena. Sem hesitar nem por um segundo, retirou duas lanças. Voltou ao seu lugar e jogou uma para Martim, que a pegou no ar. Ele percebeu que ela acariciava a madeira de sua arma com os dedos.

— Pois bem, pois bem — disse a rainha, levantando os braços. — Posicionem-se, combatentes!

Martim e Maria afastaram-se, sem olhar um para o outro. Ele ouviu seus amigos gritando frases de apoio. Procurou fechar sua mente, concentrar-se nas aulas de André e nas recém-aprendidas técnicas de manuseio da lança: a posição dos pés; o aperto firme; o ângulo correto em relação ao chão.

Foi justamente nessa hora que encontrou o treinador na arquibancada, sorrindo para ele amigavelmente. Lembrou-se do acordo que fizeram. Lembrou-se de todas as dicas que André lhe passou, sobre possíveis fraquezas de Maria, e imaginou se conseguiria colocá-las em prática. Naquele dia, que agora parecia décadas atrás, a hipótese era improvável, distante. Além disso, quando fez a proposta a André, não imaginou que as coisas pudessem estar tão tensas como agora.

Martim virou-se e fitou Maria, parada em pé do outro lado da arena. Ela parecia pequena e frágil, mas era um engano. Ele sabia que ela era rápida e mortal. Mais uma vez agradeceu a Deus por estarem em um torneio amigável e não em um campo de batalha, ainda que, na verdade, não houvesse nada de amigável na postura feroz da mulher à sua frente.

— Que vença o melhor homem, ou mulher, no caso — disse a rainha, com um sorriso confiante. — Comecem!

Maria parecia um touro enjaulado à espera da liberdade. Tão logo ouviu o comando da rainha, saiu em disparada e correu em direção a Martim.

Ele sentiu uma grande onda de medo e segurou sua lança nervosamente ao posicionar os pés como André lhe ensinou. Tentou calcular o que ela faria. Ela mancava um pouco, por causa da perna que lhe faltava. Mas ao invés de fazê-la parecer fraca, a cadência descompassada de sua corrida e o barulho metálico intercalado com o som abafado de seu pé de carne e osso tornavam-na mais bestial, mais aterrorizante do que uma pessoa normal.

Paralisado pelo medo, Martim não conseguiu reagir a tempo quando Maria saltou em sua direção e projetou a lança diretamente em seus olhos. Sua cabeça foi jogada para trás, e ele precisou se equilibrar para não cair de costas.

— Ponto! Um a zero para a capitã.

Martim passou os dedos no local do impacto e percebeu que a lança acertou exatamente em uma fenda do seu elmo. 

Se fosse uma lança com ponta, eu já estaria morto!

O seu coração batia forte enquanto tentava virar o corpo para poder encarar Maria, mas ela corria ao seu redor sem parar. Ele só conseguiu encontrá-la quando outro golpe acertou-lhe a cabeça, perto da orelha, após mais um salto e um golpe veloz.

— Ponto! Dois a zero para a capitã.

A multidão vaiava agora, e Martim desejou que isso não tivesse acontecido. Maria pareceu se alimentar de toda a energia negativa vinda da torcida ao desferir um terceiro golpe, que atingiu-o no peito com tanta força que ele sentiu o ar escapando dos pulmões.

— Ponto! Três a zero para a capitã.

— Martim! Comece a lutar, caralho! — A voz parecia a de Tomás.

Ele chacoalhou a cabeça e finalmente conseguiu se posicionar de frente para Maria. Ela respirava forte, para recuperar um pouco do fôlego após três golpes em sucessão. Martim teve tempo para montar sua posição de defesa como André tinha lhe ensinado, com a lança em diagonal à sua frente, um pouco para baixo, esperando um golpe de estocada.

Foi exatamente o que Maria fez. Ela deu um passo à frente, diminuiu a distância e projetou a lança diretamente em seu rosto. Martim levantou a sua arma no momento exato e jogou a de Maria para cima. Imediatamente ele fez um movimento contrário e desceu a sua própria lança contra a cabeça dela.

— Ponto para Martim! Três a um.

Apesar de ter sido surpreendida, ela não diminuiu a intensidade. Sem parar de correr, Maria fez o mesmo movimento que antes, que foi repelido da mesma forma por Martim. Mas quando ele tentou o mesmo contra-ataque, ela desviou. Aproveitando que ele errou o golpe, ela girou sua lança e bateu com o lado oposto do cabo na cabeça de Martim.

— Ponto para a capitã! Quatro a um.

Ela é muito técnica.

A frase de André se materializou imediatamente na sua cabeça. De fato, Martim percebeu que não poderia repetir um mesmo ataque de maneira muito óbvia, ou seria uma presa fácil para Maria.

Qual outra dica ele deu mesmo?

Martim se afastou e concentrou-se em acertar seu posicionamento mais uma vez. Era muito difícil lutar com a lança. Se estivesse com sua espada, a história seria outra. De qualquer forma, não desistiria até que estivesse derrotado. Não depois de toda a sua trajetória até ali.

Maria fez mais um movimento frontal, e Martim achou que seria novamente atacado de maneira direta, em mais uma estocada no rosto. Quando ia abaixar sua lança para se defender, ouviu André gritando ao seu lado:

— Salto à direita!

Ele imediatamente percebeu e mudou sua posição segundos antes que Maria saltasse exatamente como André previu. Moveu seu corpo para frente, em direção a ela, e desviou de seu golpe. Martim ficou em uma posição de vantagem, de modo que quando ela caiu no chão conseguiu atingi-la duas vezes. Primeiro acertou suas costas com o cabo, e depois girou a arma na mão, batendo a ponta metálica no ombro dela.

— Dois pontos, Martim! Quatro a três para a capitã.

A multidão gritou em comemoração. Maria olhou para Martim, desconcertada, e depois para André, encontrando-o na multidão. Seus ombros caíram imediatamente e sua postura agressiva e atenta se desfez em uma prostração visível. O rosto de André ficou pálido imediatamente. Sua boca se abriu e seu olhar se desfez em uma expressão de culpa e arrependimento.

Ela percebeu!

— Martim! Martim! Martim! — A multidão continuava.

Ela olhou para André e disse:

— André? Você também está contra mim?

André não respondeu. Apenas fechou a boca, ainda ostentando no rosto a culpa que certamente sentia.

Maria virou-se para Martim e disse:

— Vamos acabar com isso.

Ela soltou um grito alto e saltou em direção a ele, movendo a lança de cima para baixo em um movimento parecido com o de um machado. Martim conseguiu desviar seu corpo do golpe e contra-atacou com uma estocada no lado esquerdo da capitã.

— Ponto, Martim! Quatro a quatro.

Maria passou a atacar ainda mais vigorosamente, e a luta ficou franca.

— Ponto para Maria! Cinco a quatro.

— Uuuuuuuuh! — A multidão vaiou.

— Dois pontos para Martim! Seis a cinco.

— Martim! Martim! Martim!

Martim estava finalmente entendendo-se com sua arma. Assim como na luta contra Silas, ele antevia todos os movimentos de sua adversária. Mas ela era rápida e conseguia surpreendê-lo, mudando de estratégia no último segundo e entregando golpes com força e precisão. A troca de pontos continuava. A torcida o aplaudia e vaiava Maria, impulsionando o combate até o clímax que se aproximava.

— Ponto para Martim! Sete a cinco.

— Martim! Martim! Martim!

— Ponto para a capitã! Sete a seis.

— Uuuuuuuuh!

— Dois pontos para a capitã! Oito a sete, Maria está na frente agora!

— Uuuuuuuuh!

— Ponto para Martim! Oito a oito. Ponto! Nove a oito para Martim.

— Martim! Martim! Martim!

O coração de Martim pulsava forte. Estava a um ponto da vitória, mas conteve seu impulso de atacar. Fez uma pausa e estudou-a por alguns instantes. Maria parecia muito cansada, mas ainda movia sua lança perigosamente. Qualquer descuido poderia significar a derrota.

— Por que parou? — ela perguntou, sua voz carregada de ódio. — Termine logo com isso! Reivindique seu prêmio, não era isso que você queria?

— Eu não quero prêmio nenhum! Se me ouvisse…

A multidão não deixava que eles conversassem. Havia muita gritaria e frases de apoio. “Falta só um ponto”, “Vai, Martim”, “Vai, campeão”.

De repente, um grito se fez ouvir:

— Acabe logo com essa bruxa!

Percebendo que ela também ouviu, Martim tentou acalmá-la:

— Maria… não ligue para isso… não…

Mas ela não ouvia. Começou a correr em direção a ele, gritando, com a lança embaixo do braço, em uma carreira feroz. Martim não estava preparado para esse ataque e recebeu o impacto no rosto sem conseguir se defender.

— Ponto! Nove a nove. O próximo a acertar será o campeão!

Maria não parou. Continuou golpeando, obrigando Martim a se afastar depressa e se esquivar para não perder a luta. Ele não conseguia contra-atacar, tamanha a velocidade e ferocidade da capitã.

Em um movimento errado, tropeçou e caiu sentado. Maria imediatamente avançou. Ao perceber que ela estava prestes a golpear, Martim se ajoelhou rapidamente e projetou a lança à sua frente de maneira desajeitada. Esperou pelo impacto e torceu para não ser golpeado.

Tudo aconteceu muito rápido, mas para Martim demorou vários segundos. A ponta da arma acertou o queixo de Maria. Ela tentou desviar na última hora e levantar seu rosto, mas isso só fez a ponta da lança entrar no espaço entre a sua bochecha e o metal por dentro do elmo. A tira de couro que prendia a peça de armadura se rompeu, e o capacete saiu voando para cima. Ela caiu de costas, produzindo um baque seco. Seu elmo continuou rolando pelo chão por alguns metros, até parar suavemente sobre a grama.

Martim ainda estava de joelhos. Olhou para baixo e viu mais uma vez o rosto de que tanto gostava. Aquele lindo rosto, capaz de se iluminar tão facilmente com um simples sorriso, estava agora amedrontado e assustado. Seus olhos estavam arregalados. A boca, aberta em um espasmo. Ela olhou para ele, sem entender o que tinha acontecido. Estavam bem próximos agora, e ficaram assim por alguns momentos, desatentos ao mundo ao seu redor.

— Ponto para Martim. Dez a nove. Fim de luta! Martim é o campeão do torneio!

Martim achou ter ficado surdo, pois não ouviu a multidão comemorando. Olhou ao redor e viu que, de fato, estavam todos quietos. De repente, um soldado gritou:

— Olhem! A capitã é aquela garota do arroto!

A multidão começou a gritar e a comemorar. Martim viu a expressão de assombro no rosto de vários de seus colegas. Uns apontavam para Martim, outros apontavam para Maria. Cutucavam-se, pulavam, endoidecidos, excitados por reconhecê-la. Outros, que não participaram do evento no dia da taverna, pareciam igualmente animados por conhecer o rosto de sua capitã pela primeira vez. E a plateia em geral comemorava o final dramático da luta que testemunharam.

Maria olhou uma última vez para Martim, ainda muito assustada. Levantou-se e saiu correndo em direção ao portão da arena. Martim sentiu uma vontade enorme de segui-la, mas logo se viu cercado por uma multidão. Todos queriam agarrá-lo. Uns o cumprimentavam pela vitória, outros perguntavam como ele conheciam a capitã. A confusão era enorme. Martim procurou por seus amigos, mas não viu ninguém, não reconheceu ninguém. Só queria sair dali e ir atrás de Maria. Queria falar com ela, explicar tudo a ela. Faria tudo o que fosse preciso para fazer as pazes, mas ele sabia que seria tudo em vão.

Ela nunca mais o perdoaria.

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Olá, eu sou Daniel.Lucredio!

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