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Capítulo 24 – Expulsa do Exército

Não conseguia respirar.

O abafamento era insuportável, e o chiado de sua respiração parecia sair de seu nariz e boca e entrar diretamente em seus ouvidos. Era alto, arranhado, muito agudo. Tirou a pesada peça metálica e jogou-a no chão, produzindo um barulho que ecoou junto com o seu grito frustrado. Era a terceira vez que tentava, sem sucesso. Por algum motivo, não estava conseguindo ficar com o elmo na cabeça.

Ora, que se dane!

Soltou as tiras de couro, retirou as partes de sua armadura, uma a uma, e jogou-as no chão com força. Se alguém estivesse por perto, acharia que uma prateleira cheia de panelas estava sendo atacada por um guaxinim raivoso. Sem todo aquele metal preso ao seu corpo, enfim respirou fundo e começou a se acalmar.

Ficou parada por alguns segundos, olhando para o amontoado de peças de armadura no canto da sala. O que faria a seguir? Olhou para o próprio corpo e avaliou sua vestimenta. Usava suas calças e blusa brancas de costume. Sem a armadura por cima, não poderia usá-las em público, pois eram demasiadamente justas, e o tecido era fino demais. Tirou toda a roupa e começou a procurar no armário por vestes mais apropriadas. Encontrou um par de calças marrons de pano, simples. Eram justas também, mas seu tecido era mais grosso. Vestiu uma camisa de mangas curtas, branca, e por cima colocou um vestido cinza curto e sem mangas. Estava um pouco apertado na cintura. Foi até o espelho e virou-se de lado para avaliar sua silhueta. Para seu alívio, sua barriga não parecia estar maior do que se lembrava. Provavelmente estava apertado porque fazia vários anos que não o usava. Satisfeita com o visual, sentou-se na cama e calçou a bota em seu único pé.

Levantou-se e olhou-se mais uma vez no espelho. Era estranho sair sem sua armadura pela primeira vez depois do baile, mas naquele momento sentiu como se nada fosse mais natural. A única coisa estranha era o aspecto deplorável de seu rosto. Suas pálpebras estavam avermelhadas e seus olhos, afundados, frutos da sequência de noites mal dormidas.

Foi até a sua mesa e sentou-se no banco à sua frente. Abriu uma caixa, retirou um pequeno espelho e colocou-o na mesa de forma a poder enxergar seu rosto. Também pegou um cilindro de papel. Desembrulhando-o, revelou um bastão de cera vermelho, que passou levemente nos lábios. Da mesma caixa, retirou um vidro com um pó dourado e um pequeno pincel. Passou o pincel no pó e espalhou-o nas pálpebras, o que ocultou um pouco a vermelhidão. Abriu um segundo vidro, que tinha uma tintura escura. Com um outro pincel, menor, desenhou uma fina linha em suas pálpebras, acompanhando a base dos cílios.

Levantou-se e foi até o espelho maior, e ficou satisfeita com o resultado. A maquiagem ficou bastante discreta, mas suficiente para melhorar o aspecto de seu rosto. Retornou à mesa, e pegou um pequeno vidro que continha a sua essência perfumada, feita com uma mistura de lavanda e sândalo. Abriu-o e espalhou um pouco em suas mãos, braços e pescoço. Fechou o vidro, olhou-se mais uma vez no espelho. Seu reflexo disse:

Muito bem, só nos resta sair, agora. Coragem, Maria!

Abriu a porta e saiu do quarto.


O caminho até seu escritório foi bem pior do que esperava. Achou que, depois do baile, conseguiria andar pelo castelo sem se sentir incomodada, mas era uma situação bem diferente agora. Durante a festa, estavam todos embriagados, distraídos com toda aquela comida e bebida, e não prestaram muita atenção em mais uma mulher com um vestido enorme andando e dançando pelo saguão. Agora, a sensação de ser observada era intensa, palpável. Todos sabiam quem ela era. Sabiam seu nome. Sabiam que era a capitã.

Todos a odiavam.

Ao encontrar soldados pelo caminho, muitos fizeram questão de desviar o olhar sem disfarçar, exagerando no movimento da cabeça. Outros cumprimentaram-na com um sorriso de desdém, sem dizer nada. Mas algumas vezes, ela pôde ouvi-los murmurando assim que lhe davam as costas:

— Vaca!

— Capeta!

— Maluca!

— Bruxa!

Maria tentava manter sua postura confiante, com o rosto impassível e o rosto erguido, mas por dentro estava em frangalhos. Nem mesmo as mulheres, sempre tão simpáticas e amigáveis, olhavam para ela. 

Soltou um suspiro aliviado quando viu Bárbara vindo na direção contrária. Mas ao se aproximar da amiga, Maria assustou-se com o sorriso falso em seu rosto.

— Oi, Bárbara. Está tudo bem? — perguntou, preocupada.

— Olá, capitã. Está tudo ótimo. Em que posso ajudá-la?

— Por que está tão estranha?

— Oh, você não sabe mesmo? — Bárbara tinha um sorriso irônico nos lábios.

— O que está acontecendo, Bárbara?

— Por que não pergunta ao pobre do Martim? — Virou-se de costas, começando a se afastar.

— Bárbara! — Segurou o braço da amiga. — O que aconteceu com o Martim?

— NÃO LHE INTERESSA! — ela gritou, enquanto se desvencilhava de Maria. — Não depois do jeito como você o tratou.

Bárbara afastou-se depressa, a passos largos, e Maria sentiu os olhos se enchendo de lágrimas. Naquele exato momento, dois soldados apareceram à sua frente. Eles pararam imediatamente de andar e ficaram olhando para ela, com as caras assustadas. Um deles cutucou o outro e falou:

— Ih, olha lá, ela está chorando. Ganhei a aposta.

O outro respondeu:

— Nada disso. Você disse que ela iria quebrar no mês passado. Eu é que apostei neste mês.

Maria saiu correndo.

Quando finalmente chegou ao seu escritório, fechou a porta e foi até a sua cadeira para se sentar. Passou a mão nos cabelos, tentando se recompor. Concentrou-se em respirar e acalmar as batidas no seu coração. Mas a respiração não vinha, e ela achou que ia desmaiar.

De repente, a porta se abriu. Dois soldados que ela não conhecia entraram correndo e a agarraram pelos braços. Logo atrás deles, entrou a rainha, dizendo:

— Podem levá-la! Maria conspira contra mim.

— Majestade? — perguntou, assustada. — O que…

— Não adianta falar! Você é dissimulada, mente para todo mundo. Vai negar que mandou abrir os portões do castelo para que meus inimigos invadissem e me atacassem durante o baile?

— Não, Majestade! Por favor… me escute…

— Bem que desconfiei — a rainha a interrompeu. — Quando ficamos trancados na sala do trono, não foi um mero descuido, não é? Você nos trancou de propósito!

— N-não…

— Chega! Levem-na imediatamente!

Ela gritava e esperneava, mas não conseguia se desvencilhar. Só podia esperar enquanto era levada à força pelos soldados através dos corredores do castelo. No caminho, dezenas de rostos a encaravam. A maioria era de soldados que ostentavam uma expressão incrédula, com os olhos esbugalhados e a boca aberta em espanto. Mas havia alguns que sorriam e apontavam, divertindo-se com a humilhação sofrida por sua capitã.

Os soldados carregaram-na pelo saguão, depois pelo pátio interno, que ainda tinha o tapete decorativo estendido no chão. Saíram pelo portão e foram até a arena, que ainda estava montada ali. No centro da arena havia uma grande pilha de lenha recém-cortada. E no centro da pilha, havia uma grossa estaca de madeira, com dois grilhões de ferro pendendo do topo. Era para lá que eles a levavam.

— N-não! N-não, por favor. NÃO! — Sua voz saiu trêmula e desesperada.

Na arquibancada, a multidão gritava, emitindo uma sonora vaia. Os soldados arrastaram-na pelos últimos metros até chegar perto da estaca. Eles viraram-na de frente para a plateia, ergueram seus braços para cima e prenderam seus pulsos nos grilhões. Os soldados se afastaram. Em seguida, ela viu a figura de um homem se aproximando, com uma tocha acesa na mão. Era Martim. Ele disse:

— Eu não queria que terminasse assim, Maria.

E jogou a tocha, acendendo o fogo imediatamente.

Maria sentiu o calor em sua pele, depois uma dor intensa no peito quando inalou o fogo. Uma luz muito forte tomou conta de sua visão. Apenas os olhos azuis de Martim, tristes, ainda se faziam visíveis em meio às chamas.

E Maria despertou.

Demorou para conseguir se situar. As imagens do pesadelo ardiam nítidas em sua mente. Se fechasse os olhos, ainda podia ver as labaredas em suas retinas. Podia até jurar que havia uma multidão vaiando ali perto. Mas um a um, seus sentidos foram se desligando da realidade paralela de onde tinha escapado. Estava em seu quarto. Era noite. A janela estava aberta, e a luz azulada da Lua iluminava tudo.

Maria estava sentada em sua cama. Apesar do vento gelado que soprava no quarto, seu corpo estava molhado de suor. Sua respiração era ofegante, mas ela agradeceu pelo fato de que enchia seus pulmões com ar fresco e não com o fogo que lhe queimava segundos atrás. Fechou os olhos e deitou-se novamente, grata por estar viva.


Quando acordou no dia seguinte, sentia-se estranhamente descansada. O pesadelo durante a madrugada aliviou um pouco das tensões e preocupações que lhe ocupavam a mente.

Mas a realidade do dia que nascia não prometia ser nem um pouco tranquila. Claro que seria uma experiência bem menos horripilante do que ser queimada viva, mas ainda teria que lidar com a ansiedade ao retomar sua rotina após o turbilhão de acontecimentos recentes. Teria que encontrar a rainha e ser obrigada a aturar seu comportamento tóxico e cada vez mais desvairado. Teria que encarar os soldados, depois de toda a comoção do torneio. Teria também que confrontar André, seu amigo, seu irmão, que traiu sua confiança e tramou contra ela, ajudando Martim a derrotá-la.

Martim!

Teria que encará-lo também, cedo ou tarde. De todos os confrontos que estavam por vir, este era o que mais a aterrorizava.

Ela tinha um plano para aquele dia. Ainda era cedo, e ela começaria a colocá-lo em prática naquele exato momento. Levantou-se da cama, vestiu uma camisa curta e calças leves, e colocou sua bota mais confortável. Fez duas tranças nos cabelos, uma de cada lado da cabeça. Sem se preocupar em olhar no espelho, saiu do quarto.

Primeiro ela foi até a cozinha. Cumprimentou os cozinheiros e cozinheiras, que já preparavam as porções de café da manhã dos soldados. Pegou uma porção para si e foi até o salão da guarda, que ainda estava vazio. Enquanto comia, alguns soldados foram chegando, sonolentos. Antes que eles pudessem se sentir constrangidos ou estranhassem a sua presença ali, Maria se apresentava:

— Bom dia. Meu nome é Maria, sou a capitã da guarda. Como vocês se chamam?

Eles invariavelmente sorriam, meio envergonhados, mas entravam na brincadeira. Diziam seus nomes ao cumprimentá-la. Maria às vezes tentava adivinhar como eles se chamavam. Quase sempre errava, mas isso não parecia deixá-los chateados. Pelo contrário, divertiam-se com a nova postura da capitã.

Muitos soldados começaram a chegar, e ela achou melhor sair dali, para evitar muita atenção em torno de si. Também ficou com medo que Martim chegasse. Fugir dele a todo custo fazia parte do plano, pelo menos naquele momento. Ela se levantou e foi até a área de treinamentos fora do castelo. O local ainda estava vazio. Depois de um breve alongamento, começou a correr ao redor das muralhas.

Imediatamente, seus músculos enferrujados começaram a reclamar, minados pela falta de exercício recente, por isso começou devagar. Não demorou para que a corrida ficasse menos desconfortável e a respiração assumisse um ritmo controlado. Enquanto corria, mais soldados chegavam para seus treinos. Ela cumprimentava-os com um aceno simples de cabeça.

Para sua surpresa, conseguiu completar cinco voltas no castelo, o que era mais do que os soldados vinham fazendo. Logo em seguida, foi praticar com os pesos. Ela não conseguia carregar pedras muito grandes e demorou bastante para concluir sua sequência, de modo que quando foi para a prática com as armas já havia soldados ali treinando. André também já tinha chegado e gritava orientações para os soldados.

Para seu alívio, ele a olhou mas não disse nada. A imagem do amigo em meio à multidão que vaiava voltou à sua mente, acompanhada de todo sentimento de traição e mágoa que sentiu naquele momento. Foi até a área de treino, pegou uma espada e começou a praticar seus movimentos básicos.

Depois de alguns minutos, percebeu alguém ao seu lado, observando-a. Era André. Não querendo conversar, Maria imediatamente guardou sua arma e foi embora, irritada.

Foi até o banheiro para se lavar e depois voltou ao seu dormitório para trocar de roupa. Escolheu uma combinação simples — calças marrons, camisa branca, um vestido curto por cima e uma bota comprida. Enquanto se maquiava, perguntava-se se estava de fato acordada ou sonhando.

Mas não era nenhum pesadelo, e o restante do dia transcorreu normalmente. Naquela noite, Maria estava se sentindo bem melhor do que pela manhã. Penteava os cabelos, depois de ter tomado um demorado banho quente. Tinha conseguido sobreviver a seu primeiro dia no castelo sem usar sua armadura. Não recebeu nenhum tipo de olhar hostil, nem provocação ou reclamação. Exceto pelo fato de que as pessoas gastavam um tempo maior encarando-a, a sua rotina parecia que poderia enfim voltar ao normal. Foi dormir e não teve nenhum pesadelo.


Nos dias que se seguiram, a melhor parte era, sem dúvida, a retomada dos treinamentos e exercícios. Estava sentindo falta do cansaço, dos músculos doloridos, que depois se transformavam em um relaxamento físico e mental que perdurava ao longo do dia. A única coisa ruim era que não estava conseguindo praticar com as armas como gostaria, pois André não a deixava em paz. Ele insistia em tentar conversar com ela sempre que sentia uma chance de se aproximar. Maria o dispensava, afastando-se ou simplesmente ignorando-o.

Tinha também encontrado Bárbara. Apesar de estar consciente de que seu último encontro foi somente um sonho, ficou aliviada ao vê-la tratando-a como uma amiga, como sempre tinha sido.

— Você parece ótima, Maria.

— Obrigada, eu me sinto melhor. Você também parece muito feliz. Eu te vi no baile, sabia? Quem era aquele, hein?

— Amiga, que homem lindo que eu conheci. Eu nunca tinha visto ele aqui no castelo.

— Me falaram que os portões foram abertos e um monte de gente acabou invadindo a festa. Aliás, eu preciso ter uma conversa séria com os soldados que estavam de guarda naquela noite. 

— Ah, é? Isso explica muita coisa. Ele me disse que é carpinteiro, eu sabia que não tinha carpinteiro aqui.

— Mas e aí? Rolou alguma coisa? Como ele é?

— Ele é lindo, carinhoso e gentil. Eu ia te apresentar, mas você estava esquisita na festa.

— É, eu não estava muito legal, mas eu não quero falar disso. Fale de vocês. E aí? Ele sabe usar bem o martelo ou não?

— Maria!

Elas riram e conversaram bastante naquele dia, e também outros dias da semana depois disso. Era ótimo ter alguém para bater um papo leve, sem compromisso, limpar a mente das preocupações.

Certo dia, cerca de uma semana depois de iniciar a nova rotina de treinamentos, Maria praticava com a lança. Estava tensa, pois André estava ali perto, como sempre. Sua presença era cada vez mais incômoda, e a cada dia que se passava crescia a certeza de que precisaria confrontá-lo. Naquele dia, ela não conseguiu evitá-lo. Começou quando ela ouviu a voz dele às suas costas:

— Lembra-se da batalha em Xerez?

Maria arregalou os olhos.

Claro que me lembro. Como poderia esquecer?

Ela concentrou-se em sua lança, em repetir os movimentos com precisão, um após o outro. Sem olhar para trás, lutou para permanecer no presente. André continuou:

— Você quebrou a formação, seu escudo caiu e abriu uma brecha na defesa.

O episódio era triste, e trazia à tona coisas que Maria lutava para esquecer. Ele sabia disso, mas naquele momento parecia disposto a mexer na ferida.

— Perdi alguns irmãos naquele dia — ele disse.

Eram MEUS irmãos também!

Maria não estava disposta a ceder às provocações e continuou concentrada em seu treino. André estava definitivamente procurando uma briga ou um confronto. Talvez quisesse jogar na cara dela a culpa passada, para de alguma forma se redimir pelo seu erro. Ou talvez quisesse apenas forçar uma conversa.

— Pedro… Manoel… César… 

— Cale a boca! — ela disse, ainda sem olhar para ele.

— José… — ele continuava — e Moisés… Ai!

Maria se virou e acertou com o cabo da lança em seu peito, jogando-o para trás. Ele caiu sentado no chão, com a mão no local da pancada. Olhou-a, com um sorriso no rosto. Ela disse:

— O que está fazendo?

— Revivendo os velhos tempos. Não é isso que os amigos fazem?

— Você não é meu amigo — ela disse, com um nó subindo pela garganta.

Ele se levantou, ainda sorrindo. Aproximou-se dela e disse:

— Eu nunca te contei isso, mas era para você ter sido expulsa do exército naquela noite. O general deu a ordem assim que soube o que aconteceu. Você tinha sumido nessa hora, aposto que nem sabia disso, não é?

Era verdade. Ela foi até a beira do rio. Lavava seu rosto, tentando limpar o sangue. Seus cabelos, que na época eram bem mais longos, estavam duros, cobertos por camadas de sangue ressecado. Não saía de jeito nenhum. Depois desse dia passou a manter os cabelos mais curtos. Ficou a noite toda lá e acabou adormecendo longe do acampamento. Ela se lembra de ter sonhado com aquele momento. Foi a primeira de muitas vezes em que foi obrigada a reviver seu erro enquanto dormia. Levou meses até que conseguisse dormir melhor.

— Ele não queria te expulsar, na verdade, mas tinha ficado claro que você não tinha força nos braços para fazer parte da parede de escudos. Era um ponto fraco.

Essas palavras já tinham passado pela sua cabeça inúmeras vezes. Ela tinha consciência disso. Ela era fraca. Mas nunca tinha ouvido alguém falando isso em voz alta antes. Nem André, nem ninguém.

— Eu… — ela começou, mas não conseguiu completar a frase. O nó na garganta estava entalado.

— Você não foi expulsa, mas acabou se afastando. Isolou-se de todo mundo, não falava com mais ninguém.

— Todos me odiavam.

— É mesmo? — Ele se aproximou dela. Estavam bem próximos agora, e Maria abaixou os olhos. Não queria encará-lo. Ele continuou:

— Você nunca ficou sabendo, mas naquela noite, todos nós imploramos para que o general deixasse-a ficar.

Ela levantou os olhos, encarando-o. O olhar de André era carinhoso, paterno. Ele disse:

— Nós queríamos você ao nosso lado. Foi uma fraqueza, e daí? Todos cometemos erros.

— Mas meu erro custou muitas vidas.

— Sim, infelizmente, mas você salvou vidas também. Lembra de Ávila? E Cerveira?

— É, mas… você não entende, comigo é diferente.

— Diferente, como?

Ela se afastou dele e virou de costas. Não queria falar. André disse:

— Você às vezes se afasta, fica reclusa. Você se esconde atrás dessa ira, dessa raiva toda. Você não está sozinha, Maria.

Imagens do torneio voltaram à sua mente: a arena toda vaiando; a rainha usando-a como prêmio; André ajudando-a a ser derrotada. Ainda doía muito. Ela disse:

— Você sabe como está sendo difícil para mim aqui, André. Quando eu te chamei para me ajudar, eu achei que podia contar com você. Eu confiei em você. E você me traiu.

— Eu sei, eu sei. Eu não percebi antes, me desculpe. Quando eu e Martim…

— Não me fale de Martim! — ela disse, ríspida, virando-se de frente para André, desafiadora. A simples menção àquele nome trouxe de volta todos os sentimentos de mágoa, ódio e rancor que cresceram nos últimos dias.

— Está bem, me desculpe. O que eu ia dizer é que, quando a gente começou a treinar, era para ser um torneio como qualquer outro. Eu só quis ajudar o rapaz.

— Hunf — ela resmungou.

— Eu não tinha ideia que esse torneio estava sendo um tormento tão grande para você. Eu sinto muito, Maria, você não merecia passar por isso. E eu me sinto péssimo por não ter percebido, por ter piorado tudo.

Ela não disse nada. Ainda estava muito magoada. Ele disse:

— Você não precisa me perdoar. Eu vou entender. Eu não vou mais importuná-la. Só queria que você soubesse que você não está sozinha. Nunca esteve.

Maria olhou para baixo, arrastando o pé no chão. Depois olhou para ele. Ali estava um homem que ficou ao seu lado por muitos anos. Passaram juntos pelas situações mais terríveis que um ser humano podia suportar. Ele foi seu amigo, confidente, irmão, e até mesmo seu pai, algumas vezes. A ligação entre eles era forte demais, e era isso o que mais doía. Mas também não deixava dúvidas sobre o que disse a seguir:

— É claro que eu vou perdoar você. Algum dia. Ainda vou te odiar por um tempo.

Ele deu um largo sorriso e abriu os braços em direção a ela. Relutante, ela se aproximou, encaixou-se em seu peito e se deixou abraçar. Depois de um tempo, passou seus braços ao redor do enorme corpo do amigo enquanto soltava um suspiro aliviado.

Passados mais alguns segundos, ela se livrou do abraço e se afastou. Sem se despedir nem olhar para trás, começou a andar de volta para o castelo.


Naquela noite, enquanto penteava os cabelos e se preparava para dormir, Maria estava meio tonta. Tinha bebido uma taça a mais de vinho no jantar, e sua cabeça girava um pouco, mas a sensação era boa. Estava relaxando pela primeira vez depois de várias semanas, o que de certa forma era verdade.

A vida estava quase normal de novo. Em alguns aspectos, era melhor. Não usar a armadura o tempo todo era bem mais agradável, física e mentalmente. Podia conversar mais livremente, e recebia muito mais sorrisos do que antes.

Também aprendeu os nomes de vários soldados. Ela sorriu enquanto os repetia em sua cabeça, associando cada um a um rosto diferente. Eram muitos, mas ela tinha certeza que logo conseguiria identificá-los corretamente.

A melhor parte, no entanto, foi que não tinha encontrado a rainha desde o baile. Catarina não a convocou em nenhum momento, e ela não fez questão de procurá-la. Isso foi uma coisa boa, pois Maria não sabia o que faria se ficassem sozinhas na mesma sala. Tinha um medo concreto de que saísse do encontro diretamente para a prisão após ter cravado um punhal em seu pescoço.

Seu estado de espírito só não era melhor porque flagrava-se constantemente pensando em Martim. Maria desconfiava que, assim como ela, ele também tentava evitá-la a todo custo. Neste quesito, tinham sido extremamente bem sucedidos.

Acontecia sempre que estava ociosa ou exercitando-se. Pensava em como ele permaneceu ao lado dela quando estava quase morrendo, em como era gentil, simpático e generoso. E também em como ele era engraçado, às vezes atrevido, dizendo o que se passava em sua mente. Maria adorava isso. Eles não tinham nenhum compromisso, afinal estavam apenas começando a se aproximar, mas ela estava genuinamente gostando dele, e disso tinha certeza. E achava que ele sentia o mesmo.

E aí ele a enganou. Tentou manipulá-la, fazendo-a pensar que se preocupava com ela, só para conseguir um favor pessoal junto à rainha. Além disso, participou da traição de André, corrompendo sua amizade mais antiga de forma egoísta e perversa, justamente quando ela estava sofrendo tanto por causa do maldito torneio.

Por que os homens têm essa obsessão em competir a todo custo? 

Ela também participava de competições, mas não gostava. Fazia-o por necessidade, como meio de se afirmar perante os homens. Certamente não jogaria seus relacionamentos para o alto apenas para conquistar uma vitória em um torneio esportivo.

E Martim a ofendeu. Chamou-a de cachorrinha da rainha. Doeu demais ouvir a boca doce de Martim dizendo essas palavras tão duras, tão contundentes… 

… tão cheias de razão!

Maria levantou-se e foi até a cama. Deitou-se de lado, puxou a coberta até o pescoço e ficou olhando para o vão entre dois tijolos de pedra da parede, enquanto lutava para trazer um pouco de paz à sua mente perturbada.

A conversa com André se repetiu em sua mente. Ele estava certo numa coisa. Ela tinha mesmo essa tendência de se esconder atrás da ira. Ela provocou Martim, afinal de contas. E ele só reagiu à altura. Depois, durante o baile, continuou pisando nele, literalmente. Talvez tenha mesmo exagerado.

Se fosse somente isso, haveria ainda uma pequena chama acesa, uma esperança de que, quando a poeira baixasse, ela conseguisse se acalmar, pedir perdão a ele por sua raiva incontida. E também perdoar a si mesma. Mas ao vê-lo de braços dados com Marina, no final do baile, indo para o dormitório, teve a certeza de que essa chama nunca se acenderia.

Sim, foi ela própria, com seu temperamento quente, sua raiva e seu ódio, quem o afastou. Mas a rapidez e a facilidade com que ele escolheu deitar-se com outra mulher a fez se sentir como uma adolescente iludida que se entrega ao primeiro rapaz bonito a jogar seu charme, para depois descobrir que não passa de uma conquista pessoal para ele. Assim como a rainha, Martim a considerava um troféu e nada mais. Um troféu que não representa nada, nem é digno de qualquer sinal de respeito.

Esse sentimento não era novidade. Em sua arrogância, julgava já ser madura o suficiente para prever e evitar esse tipo de decepção. Mas caiu na armadilha mais uma vez, e a dor retornava da mesma forma.

Sempre que se lembrava da cena, Maria imaginava os dois abraçando-se. Marina acariciava os cabelos de Martim, passava as mãos em seu peito, em seus ombros. Ele a segurava pela cintura e puxava-a para perto, antes de beijá-la e deixá-la completamente sem ar. Embaixo dos dois corpos nus que se entrelaçavam, havia uma montanha de moedas de ouro, o tão sonhado prêmio do grande campeão. O tilintar do metal lhe conferia razão. Lhe dava forças para penetrar Marina e curtir seu merecido momento de vitória sem pensar em mais nada, em mais ninguém, apenas em seu sucesso pessoal.

E sem pensar em Maria, que mais uma vez em sua vida se via completamente abandonada e sozinha.

As lágrimas escorriam silenciosas, molhando seu rosto, bochechas, nariz e queixo, chegando até o travesseiro. Só pararam quando adormeceu, horas depois.

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Olá, eu sou Daniel.Lucredio!

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