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— Umas quinze, e você?

— Tudo isso? Eu só tenho sete, e você já conhece quatro delas.

— Deixa eu ver as outras então.

— Não, é a minha vez primeiro.

— Tá bom, por qual quer começar?

— Essa aqui.

— Essa é besta. Eu caí e bati o queixo na mesa quando era criança.

— Sério? Ah! Ah! Ah! Nada de batalha, uma luta na taverna, talvez? Você e outro cara disputando uma garota?

— Nada disso, foi idiotice mesmo. Agora minha vez… essa aqui, um pouco pra baixo da sua barriga?

— Ah! Ah! Ah! Pare, Martim! Faz cócegas. Não tem cicatriz aí, seu idiota.

— Certeza? Deixa eu ver melhor.

— Ah! Ah! Ah! Ah! Para! Ah! Ah! Ah! É minha vez ainda, a do queixo não valeu. Essa aqui, no antebraço?

— Foi um corte de faca. A história é meio engraçada, na verdade.

— Não consigo imaginar o que poderia ser engraçado em uma facada.

— Um amigo meu, Jeremias… um cara legal, você ia gostar. Ele estava dando em cima da prima de outro cara, o Marcão.

— Marcão. Deixa eu adivinhar. Um cara legal, também?

— Não, nem tanto. A gente falou pro Jeremias tomar cuidado, mas ele não escutou, acabou dando uma briga feia. E aí… 

Já tinha amanhecido fazia algum tempo. Martim e Maria ainda estavam na cama. Enquanto ele contava sua história, ela estava aconchegada em seu peito, e passava os dedos em sua barriga e seus ombros. Sentia cada pedaço de músculo rígido sob a pele, e só conseguia pensar que ele sabia muito bem como usar aqueles músculos. Podia ser carinhoso e delicado, como agora, quando acariciava seus cabelos. Mas também tinha pegada. Agarrou-a de todos os jeitos possíveis durante a noite, ora puxando-a pelos cabelos, ora colocando-a contra a parede e levantando-a com seus braços fortes. Foi gentil, mas firme, e ela apreciou o jeito como ele parecia insaciável. Isso a fez sentir-se desejada de um jeito doce e feroz ao mesmo tempo. Foi com grande satisfação que cedeu ao cansaço que finalmente os levou a darem uma pausa.

De vez em quando levantava o rosto, louca para ver o sorriso que aparecia em sua boca larga quando ele entrava em um trecho mais engraçado de sua história.

Que sorriso lindo!

Maria não se cansava de olhar para aquele sorriso. Sempre apreciou o jeito com que seus lábios terminavam em duas covinhas. E agora, da posição em que estava, podia vê-los muito de perto. Nunca reparou antes, mas Martim tinha o lábio inferior ligeiramente maior. Seu queixo também era um pouco mais quadrado do que imaginava. Sorriu com a sensação de novidade e descoberta que a proximidade despertava.

Estava tão absorta em seus pensamentos que nem percebeu quando Martim terminou a história. Ele ficou quieto, aparentemente esperando algum comentário. Quando percebeu que ela não falaria nada, disse:

— E aí? Gostou da história ou não?

— Er…

— Você estava ao menos me escutando?

— Sim, é claro que estava, mas eu me perdi um pouco no final, sabe? Fiquei lembrando da nossa noite. Você foi muito… bom.

— Você me deixa falando sozinho igual um idiota e agora pretende se safar me elogiando?

— Posso tentar.

— Ah é assim? Então sua vez agora. Vira de costas.

— Por que?

— Tem uma aqui atrás, eu vi. Vira.

— Ai, tá bom, calma.

— Cadê… Ah, achei, essa aqui. Como você conseguiu uma cicatriz na sua bunda?

— Foi uma mordida. Eu estava fugindo de uns homens, mas um deles conseguiu me abocanhar.

— Maria, fala sério!

— Tá bom, foi uma flechada. E antes que pense mal de mim, eu não estava fugindo…

Maria começou a contar sua história mas logo parou, pois Martim fez uma cara de idiota, fingindo não estar ouvindo uma palavra sequer. Ela deu um tapa em seu ombro e disse:

— Seu idiota!

— Foi você quem começou. — Ele ria. — Pode se desculpar me dizendo o que houve com seu pé. Me conta, por favor.

— Não.

— Você caiu num buraco muito fundo.

— Para, Martim! Não é justo com os outros.

— Enroscou em uma raiz de árvore?

— Olha que eu vou retomar a contagem, hein? — Ela levantou um pouco seu rosto e olhou desafiadoramente para ele. — Seus amigos não vão ficar nada felizes.

— Tá bom, tá bom, eu desisto.

Maria se deitou novamente e voltou a acariciar o peito de Martim. Sentiu que ele também voltou a passar os dedos em seus cabelos. Mesmo depois de uma noite inteira juntos, ela ainda não acreditava completamente no que estava acontecendo. Parecia que era um sonho. Um sonho bom, bom até demais para ser verdade.

Mas Martim estava verdadeiramente ali, deitado na cama com ela. Maria podia sentir agora mesmo o toque de sua pele na ponta dos dedos. Sentia seu cheiro, ouvia sua respiração e seu coração batendo. Todos os sentidos confirmavam que tudo aquilo era maravilhosamente real.

Pelas frestas da janela, era possível notar que o céu já estava bastante claro. Metade da manhã já devia ter se passado. Martim perguntou:

— Já está tarde. Não quer tomar café da manhã?

— Eu não vou sair dessa cama hoje. — Ela o abraçou forte.

— Mas uma hora a gente vai ter que sair.

— Por que? A gente chegou ontem de viagem, estamos de folga o dia todo.

— Mas a gente vai ter que almoçar em algum momento.

— Martim, você por acaso está com fome?

— Sim, me desculpa — ele disse, envergonhado. — Eu estou acostumado a comer bem cedo.

— Azar o seu. Não vou deixar você sair daqui.

Ele fez uma pausa, e disse:

— Mas as pessoas vão perceber…

— Que pessoas? Seus amigos?

— Sim, eles também.

— E qual é o problema?

— Com eles, nada. Eles até me incentivaram a vir te procurar, ontem à noite, mas…

— Qual é o problema, Martim?

Ele se levantou e se sentou na cama. O movimento fez com que Maria se levantasse também. Com um olhar preocupado, ele disse:

— É que tem uns caras que vivem pegando no meu pé. Se eles desconfiarem que eu estou aqui, que a gente…

— Quem são? Me fala o nome deles.

— Por que você quer saber?

— Ué, eu posso dar um jeito. Sou a capitã, não sou?

— Nem pensar, está maluca? Aí é que eu perco o respeito de uma vez.

Maria suspirou e disse:

— Homens! Vocês podem ser tão valentes, corajosos… mas às vezes não passam de um bando de garotos.

— Mas não se preocupe, eu estou lidando com isso. Ou estava… Depois da minha vitória no torneio…

— Vitória roubada, né?

— Pode pensar assim, se isso a faz sentir-se melhor. — Ele riu — Mas as coisas melhoraram muito depois daquilo. Eu fui ovacionado! Todo mundo veio me cumprimentar, me abraçar. Todo mundo passou a me respeitar de verdade.

— É, eu estava lá, eu vi.

— Só que depois do incidente perto de Lancastre, esses caras que sempre pegavam no meu pé acabaram ficando do lado de Alvar. Agora, com essa tensão toda, essa divisão, eu receio que… na verdade, tenho certeza que as coisas vão voltar a ser como antes.

— E você?

— Eu?

— É, você. Vai voltar a ser como antes?

Ele ergueu o queixo, pensativo. Depois sorriu e disse:

— É, eu acho que não.

— Então nem tudo vai voltar a ser como antes.

Martim não disse nada por um tempo. Seu semblante preocupado mudou para o mesmo ar descontraído de antes. Seus olhos voltaram a se iluminar e sua boca estava sorrindo mais uma vez. Ele disse:

— E eu ainda sou a lenda que derrotou a capitã.

Ela pulou em cima dele novamente, fazendo-o se deitar. Começou a dar pequenos socos em seus ombros. Ele se defendia, sem deixar de rir. Ela disse:

— Pare de se gabar por causa disso. Aquela luta foi roubada, eu já falei.

— Foi nada, eu aprendi todos os seus truques. André me ensinou.

— Hunf. André, aquele traidor — ela resmungou e deitou-se mais uma vez em seu peito. Depois de um tempo, disse:

— Eu estava muito brava com vocês naquele dia, mas eu preciso confessar uma coisa.

— O que?

— Eu estava torcendo para você o tempo todo.

— Estava, é?

— Já que eu era o grande prêmio do campeão, eu pensei que se fosse você, eu ia sair ganhando de qualquer jeito.

— Como assim?

— Se você ganhasse dos outros, eu ia poder descontar toda minha raiva batendo em você.

— Não achou que poderia perder, então? Arrogantezinha você, não?

— Confiante, é diferente. Mas eu achei que poderia perder, sim. E aí…

— E aí…

— Bom, não ia ser a pior coisa do mundo ser sua acompanhante no baile.

— A pior coisa do mundo. Para mim é uma descrição perfeita do que foi aquele baile. Você estava tão linda, deslumbrante, mas tão… impossível.

— Eu sei, Martim. Já pedi desculpas…

— Parecia que eu estava dançando com uma estátua. Meus pés que o digam.

— Pare. Eu ainda me sinto mal por aquilo.

— Já parei. — Ele riu.

Ele voltou a acariciar seus cabelos. Maria disse:

— Eu também sofri naquele baile.

— Eu sei.

— Acha que eu não queria também ter aproveitado um pouquinho melhor minha noite com você? Dançar, me divertir…

— A gente vai ter outras oportunidades agora.

— E você acha que eu não fiquei enciumada ao ver aquela mulherada toda dando em cima de você? Quer dizer, eu estava brava com você, mas… 

— Beeeem brava.

— Tá, tá… mesmo assim… eu não queria que você ficasse com mais ninguém.

— E eu não queria ficar com ninguém, além de você.

— Eu sei.

— Sabe? — Ele parou de acariciá-la. — Como?

Droga!

Maria não queria ter se entregado. Não queria que ele soubesse de toda a história envolvendo Violeta e Marina, com medo de que a achasse enxerida e insegura. Ela disse:

— Ué, sabendo. Você está aqui agora, não? Eu não tinha razão?

Ele sorriu e disse:

— Tinha. Eu só tenho olhos para você.

— E eu, para você.

Ficaram em silêncio mais um pouco. Maria agora estava deitada ao lado dele, de bruços. Martim olhava para o teto, com os braços atrás da cabeça. Ele disse:

— Eu definitivamente preciso comer alguma coisa.

— Não vou deixar. A porta está trancada.

— Eu vou reclamar com a capitã, hein?

— Ah é? — ela disse, levantando-se em um pulo e sentando-se na cama. — Quer que eu vá chamá-la?

— Quero.

— Então levante-se, que ela já vem.

— O quê?

— Em pé, soldado! Posição de sentido!

Sorrindo, ele se levantou, estufou o peito e levantou o queixo, mantendo os músculos dos braços e pernas firmes.

— Muito bem, soldado. Agora diga-me, ainda está com fome?

— Sim, capitã.

— Então vou lhe dar algo para comer…


Tinham terminado de jantar fazia poucos minutos. Depois de se servirem na cozinha, acharam uma sala onde puderam arrumar uma mesa e ficar sozinhos enquanto conversavam e tomavam vinho. Já era noite quando estavam enfim despedindo-se. Maria não queria que ele fosse embora, mas ele insistiu, dizendo que se não fosse para seu dormitório seria muito estranho e embaraçoso para ele:

— Você não sabe como esses caras são. Vai ser um inferno aguentar as gozações, as perguntas…

— Achei que você estava mais confiante em relação a isso.

— Estou. Mas essas mudanças levam tempo. Você me entende, vai. Afinal, demorou quanto tempo para tirar seu elmo na frente de todo mundo?

— Eu não tirei, né? Você o arrancou, contra minha vontade.

— Não fez diferença nenhuma. Você ia ter que tirá-lo para o baile de qualquer forma. Ou pretendia dançar com ele na cabeça? Acho que não ia combinar muito com o vestido.

— Na verdade, eu tinha algo planejado.

— O que?

— Eu ia fingir que me machuquei no combate e ficaria na sala de cura a noite toda.

— Interessante. E é essa a pessoa que está querendo me enfiar confiança goela abaixo, é?

Maria não disse nada, apenas sorriu para ele. Martim disse:

— Não importa, eu ainda tenho meus receios. Só me deixa ir dormir na minha cama, por favor.

— Tá bom.

— E se eu ficar mais uma noite com você, não vou exatamente dormir, e eu estou mesmo precisando dormir.

— Tem razão, Martim. Boa noite.

— Boa noite, Maria.

Ele se aproximou, colocou as suas mãos nas bochechas dela e deu um beijo carinhoso em sua boca. Depois de uma noite inteira e um dia inteiro entrelaçados um no outro, um beijo de boa noite deveria parecer uma coisa superficial, mas não foi. O gesto simples fez o coração de Maria se aquecer. Ele transmitia uma intimidade que não existia entre eles até algumas horas atrás. Uma entrega espontânea, um saber que eles agora pertenciam um ao outro. Imaginar que dali para a frente essa intimidade só iria aumentar colocou um sorriso no rosto dela que demoraria para desaparecer.

Maria encontrou algumas pessoas no caminho para seu dormitório. Soldados e serviçais sorriram e cumprimentaram-na simpaticamente, e ela retribuiu. Um desses encontros rápidos foi com Bárbara, que apareceu correndo atrás dela e a ultrapassou, sem perceber.

— Bárbara?

— O que? Ah, oi Maria. Desculpa, nem vi que era você. Eu estou com pressa.

— O que houve?

— A rainha acabou de chegar. Parece que ela não está nada bem.

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Olá, eu sou Daniel.Lucredio!

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