Demônios, anjos e espíritos existiam, isso era fato. Por mais que não pudessem ser palpáveis, quem vivesse no mundo reconhecia seus poderes, maldições e milagres, independente se precisasse de lógica ou não. Algo absoluto distorcia qualquer razão e se punha acima do resto, tornando-se uma coisa impossível de ser contestada. Era como um deus.
Podia-se teorizar o quanto fosse sobre a existência deles, de onde vinham, o que faziam e como se expressavam, mas ainda assim era impossível entendê-los. Eram criaturas absolutas, o pináculo da realidade, algo além da mente comum de se entender. Er’Ika era a prova viva disso, porque interagia e movia o mundo a sua volta, mesmo sem uma forma material, e aquele demônio reforçou mais ainda a filosofia de que um ser supremo como ele estava acima de todos.
Seres espirituais e transcendentais eram compostos de energia, ao morrerem, essa energia se cristaliza em alguma coisa. Era como uma estrela, após muitos anos ela morria e seu fantasma era deixado para trás na forma de uma estrela de nêutrons, no caso, a estrela de nêutrons era o orbe sombrio que o demônio deixou para trás.
Era algo inofensivo, mas cheio de energia, e Er’Ika não era idiota de deixar uma porção saborosa de poder para trás, especialmente quando teve seu tempo cortado por um paladino xereta. Por isso, ele absorveu a bola de gude, e a transformação veio. O seu castelo voador, antes algo pequeno demais para se comparar uma cidade, cresceu em todas as direções.
Ele também teve a impressão de que alguma coisa dentro de si estava sendo “raspada”, como se uma pequena rachadura tivesse aparecido numa parede. Tudo, desde seu corpo espectral ao entendimento do receptáculo, havia se estendido em todas as direções. A energia demoníaca tinha um sabor salgado, mas não era ruim, parecia como mastigar um pedaço de pão na estante.
Mesmo com uma quantia ínfima, isso foi o suficiente para despertar algo.
Ah, então é assim que posso retomar os meus poderes de deus…
Dentro de si mesmo, havia uma marca presa por correntes, como se tentasse restringir uma criatura. Er’Ika entendeu que aquilo não era outro ser, mas sim um tipo de consciência, um pedaço faltando dentro do seu castelo para se tornar completo. O que parecia ter acontecido era que uma das correntes se partiu, liberando um tipo de luz do objeto selado e fortificando seus poderes.
Sua capacidade de raciocínio, controle das sombras, percepção e orgulho cresceram quase de forma exponencial. Isso era muito estranho, esse sentimento de “poder” invadindo suas “veias”, capaz de dar tanto deleite. Mais estranho que isso foram só os fatos que aconteceram depois, como o caso do paladino, uma gritaria no andar de baixo e o jeito que Jessia estava assumindo perto de Liane.
Er’Ika viu tudo, usando um pequeno pedaço da sombra de Liane para projetar um olho e assistir. Esse comportamento era incomum, compactuando com a teoria de que Jessia possuía algum tipo de afeto pelo garoto. Se fosse o caso, isso facilitaria a vida dos dois em níveis astronômicos, pois nada seria melhor que uma vovó querendo ninar o seu netinho precioso.
A noite rapidamente chegou, e com ela, uma visita já esperada. A bandida adormeceu, ao mesmo tempo que uma presença entrou pela janela aberta. Pelos olhos vermelhos e expressão confusa, ficou claro que era Milea, ou assim era chamada a carcaça que o demônio se aproveitou.
Ela se achegou da cama, imediatamente Er’Ika usou das penumbras no quarto escuro para recriar uma versão menor do seu corpo monstruoso. O demônio deu um passo para trás, como se tivesse a impressão de que algo estava errado.
— O que aconteceu, mestre? O que houve com o seu receptáculo?
— Foi afetado por um culto estranho. Está tudo bem, rapidamente lidei com eles e roubei seus poderes.
— Rou-Roubou? Mestre, quer dizer que absorveu a força vital deles?
— Não, eu matei o demônio que tentaram invocar.
A santa emudeceu. Seus olhos se arregalaram e ela se ajoelhou perante a presença. Não havia sentido para Er’Ika mentir naquela situação, na verdade levantaria muitas suspeitas tentar esconder o fato debaixo do tapete, por isso disse a verdade de maneira muito resumida, porém não esperava esse tipo de reação. Possivelmente havia revelado algo muito importante.
— Oh, mestre, o senhor é mesmo grandioso! Absorver demônios, algo que nem mesmo eu imaginei!
— Sim, é uma prova de que eu lhe disse como sou superior aos demais… Aliás, o que ficou fazendo no meio tempo que estive fora?
— Observei tudo, como me mandou. Vi uma movimentação rumo a prefeitura, acredito que logo iniciarão um ritual para invocar uma criatura superior.
— Excelente, é a oportunidade que queríamos… Eu ainda preciso que faça uma coisa, por outro lado. Quero que vá e leve os colegas da sua carcaça ao covil dos inimigos, deixe-os lá para morrer ou faça o que quiser, apenas trate de trazer o máximo de informações quanto possível de volta para mim. Enfrentar um inimigo sem saber o que ou quem é seria uma ideia tola.
— O seu desejo é uma ordem, mestre. — Ela mais uma vez realizou outra reverência, abrindo um largo sorriso. — Se me permite perguntar, o seu receptáculo está bem?
— Está se recuperando, não acredito que vá acordar.
Milea estranhou aquilo, pois o garoto de fato não era forte. A maioria das criaturas seladas eram colocadas em seres difíceis de morrer ou em objetos inquebráveis, não nas histórias tradicionais com vasos e donzelas lindas, logo era raríssimo encontrar um demônio de alto nível selado dentro de uma pessoa fraca. Isto era para evitar óbvios desastres, pois como Er’Ika avisou, depois do garoto morrer, ele entraria em total descontrole.
A mulher santa levantou e estendeu sua mão na direção do garoto. Pretendia verificar a ferida, mas antes de fazer qualquer coisa, uma faca voou em sua direção e se cravou contra a parede. Er’Ika recolheu sua sombra de volta a Liane, enquanto Milea virou o rosto na mesma direção que o projétil veio.
Lá, estava a bandida velha, com um semblante enlouquecido e com olhos chamejantes na direção da santa. Sua cimitarra saiu da bainha com um som extremamente agudo, enquanto ela se levantava e seu rosto se contorcia de maneiras nada naturais.
— Eu avisei que não queria ninguém aqui, não avisei…?
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