Os sentidos de Milea se afiaram. Por muito pouco, ela desviou da faca vindo em sua direção, apenas para vê-la cravada contra a parede do outro lado do quarto. Seus olhos se voltaram para a mulher, que tinha acabado de levantar da cama e brandiu a espada, pronta para atacar.
Antes de ter entrado no quarto, o demônio se certificou de usar uma magia de sono para impedí-la de acordar, assim podendo conversar tranquilamente com seu mestre. Era um feitiço útil que consumia pouca energia demoníaca, como humanos possuíam determinada fraqueza contra poderes sobrenaturais, provou-se muito útil e difícil de dispersá-lo por conta própria. Isso significava que a mulher na sua frente, aquela senhora caindo aos pedaços e cheia de rugas, de alguma forma superou essa barreira puramente com força de vontade.
“Não é qualquer dia que alguém se livra disso… Quer dizer que a quantia de vitalidade é grande, mesmo para a idade”, esse pensamento a fez lambuzar os lábios. “Ah, faz muito tempo desde que eu me alimentei de uma carne boa. O mestre não deve ligar se eu matá-la.”
Para deixá-la enfrentar sozinho a ameaça, só podia significar que Er’Ika a permitiu atacar a inimiga e reclamar uma recompensa pelos seus esforços. Milea puxou a maça escondida no vestido e abriu um largo sorriso, as emoções borbulharam dentro de si quase revelaram um par de chifres demoníacos querendo sair da testa.
Jessia avançou num único passo, colidindo sua cimitarra contra a bola de ferro da arma de sua oponente. O golpe travado empurrou Milea um pouco para trás, porém ela logo recuperou a postura e balançou o cabo para o lado, abrindo uma janela para que empurrasse a maça em linha reta, isso se um chute não tivesse atingido o meio da sua barriga, criando uma distância entre as duas.
O demônio quis rir, pois ainda pegava leve com sua presa. Para não se prolongar tanto, jogou para o lado as formalidades, suas unhas se tornaram garras pontiagudas, os olhos viraram o mais profundo carmesim, a pele se tornou tão pálida que refletiu o luar e um par de chifres curvos cresceram entre as mechas loiras do cabelo. Essa transformação por si só causou arrepios na pele de Jessia, ao mesmo tempo que seu choque plantou uma hesitação dentro da sua cabeça.
— Droga, demônio nojento!
As garras estocaram na direção da garganta da bandida, que pôs a cimitarra no meio do caminho para se defender, antes de ver pela ponta do olho a maça prestes a atingir seu crânio pela têmpora. Foi um breve momento, mas suas pernas responderam se dobrando para baixo, e naquela postura agachada, ela conseguiu tirar uma faca escondida na coxa, cravando-a contra as costelas do demônio.
Nenhuma gota de sangue saiu, Milea apenas abaixou a cabeça e viu a mulher recuar rapidamente. Ela arrancou a adaga com as próprias mãos, vendo seu sangue escuro na lâmina. O ferimento rapidamente fechou, sequer uma cicatriz sobrou na região, tirando muitas das esperanças de Jessia de vencer num combate longo.
Já que não tinha outro jeito além de algum dano massivo, era necessário ignorar certas cautelas. A cimitarra ficou posicionada na frente de Jessia, que parou com ambas as pernas separadas, num tipo de postura de esgrima estranha.
Milea não se aproximou imediatamente. Ela rodeou sua inimiga, analisando cada movimento dos braços e pés, desde os calcanhares rotacionando aos ombros mantendo a arma erguida. O ambiente tinha um ar pesado, a escuridão era o cenário perfeito para aquela luta entre um ser de outro mundo e uma pessoa prestes a entrar no inferno, parecia até poético.
— Sabe que errou em tentar me evitar, certo? — perguntou a falsa santa, seus caninos pareciam enormes por causa das unhas afiadas e olhos carmesins. — Humana tola, o que acha que pode fazer? O mestre não se interessa por você, a minha piedade é completamente desnecessária.
— Mestre? Que porra tu tá falando? Vai me dizer que a bunda do seu mestre é responsável pela merda toda acontecendo nessa vila? Sério, demônios são mesmo asquerosos…
— Não se engane, humana, meu mestre é muito mais leal e honrado do que os idiotas detrás dessa conspiração. Se fosse ele, possivelmente todas as pessoas aqui teriam morrido, não precisaríamos de táticas mesquinhas como as usadas aqui.
— Heh, ainda bem que você é falastrona…
A face de Jessia mudou, com um sorriso agora trocando sua expressão antes espantada. O demônio demorou para perceber como o vento ao redor estava turbulento, acumulando-se num único ponto: o corpo da mulher. Os músculos dos braços, pernas e costas tremiam, causando pequenos estalos no ar, e foi tarde demais para lidar com o que veio em seguida.
Um estouro ressoou pela taverna inteira, o piso explodiu e a bandida teleportou repentinamente para frente do demônio, com a sua cimitarra cruzando pelo peito da assombração. Esse mero golpe fez um corte profundo, mas não só isso, como foi capaz até de atingir a parede do outro lado, arrebentando a madeira das paredes e criando um enorme buraco, para onde as duas voaram devido ao impacto.
Jessia rolou pela neve na estrada, uma dor excruciante se espalhou pelos músculos. O uso de mana para reforçar até o limite tinha esse prejuízo por causa de seu corpo velho.
“Se fosse 20… não, 10 anos atrás, eu teria aguentado melhor.”
Respirou fundo, usando sua cimitarra quebrada para se levantar. Havia bastante poeira no ar, com neve ocupando sua vista, mas o pior apareceu quando avistou uma silhueta através dessa cortina. Milea continuava viva, um enorme corte estava desenhado no seu peito indo do ombro até a cintura, mas lá estava ela, de pé e lentamente se curando.
Foi por muito pouco que o demônio não sobreviveu. Se não tivesse colocado suas garras e maça no meio, possivelmente o ataque seria fatal. Sua mão ficou apoiada no peito, contendo o sangue manchando as roupas brancas. Aquilo foi perigoso ao ponto de colocar sua vida por um triz, mas estava acabado, essa humana teria sua penitência e seria abocanhada pelas vontades do demônio.
— Quem quer que esteja aí, abaixe sua arma agora!
A voz veio detrás dela. Era familiar demais para ignorar. Olhando por cima do ombro, Milea avistou o símbolo de Lithia pendendo no colarinho de um homem jovem, o paladino Grey.
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