O cenário, ao contrário do lindo jardim esverdeado, era dentro de uma grande mesa de jantar. Candelabros e bulbos brilhantes iluminavam a sala, fazendo as garrafas de vinho refletirem pequenos pontos amarelados no líquido escuro. Liane estava sentado numa cadeira elevada, ao seu lado esquerdo havia uma empregada de cabelo ruivo com a face borrada.
Na extremidade da mesa, a mesma mulher do sonho, a suposta “mãe”, estava cortando carne usando uma faca, porém sua expressão era de total desinteresse, ao ponto de nem querer mordiscar a comida. Junto dela, havia outras várias pessoas à mesa, das quais nunca foram vistas e muito menos constavam no banco de dados, e as coisas ficaram ainda mais estranhas quando virou o rosto para o lado direito.
Lá, de cabeça abaixada, um garoto saboreava cada pedacinho de um pão requintado, só que ele tinha a mesma aparência de Liane. A única diferença plausível eram as roupas, para distinguir os dois meninos idênticos. Se Er’Ika possuísse um queixo, ele cairia diante dessa revelação. Os seus mecanismos de registro se acionaram a todo vapor para anotar todo mísero detalhe da cena.
À primeira vista, parecia um encontro formal de família, ou seja, todas as pessoas ali naquela mesa tinham alguma relação sanguínea com o pequenino. Era ainda estranho, pois isso significava que Liane pertencia a uma família nobre, apenas faltava reconhecer algum símbolo que os representasse. Até então, esse símbolo permanecia um puro mistério, assim como a linhagem dessa família nobre desconhecida.
— Vocês sabem porquê os chamei aqui?
Todos viraram as faces para a mulher sentada na ponta da mesa, que estava de pé com uma taça nas mãos. Seu vestido azul-turquesa chamava bastante atenção, quando combinado ao seu corpo magro e esguio, tornava-a um fantasma dentro daquelas quatro paredes. A luz da lareira, que vinha atrás de si, realçava a imagem de “assombração”, destacando-a como uma figura sobrenatural.
— É porque confio em todos aqui dentro desta sala, até em meus pequenos filhos. — Ela apontou na direção de Liane e no seu gêmeo ao lado. — Todos aqui devem saber como nosso prestígio, aquele que montei depois de anos, está sendo ameaçado pelos nossos antigos amigos. Por anos, eu prezei pelo bom relacionamento com os Scanvier, até o mês passado, do qual fui informada que um de nós ofereceu a mão da sua própria filha para adquirir um favor do Exército Branco…
Diversos suspiros fugiram das pessoas ali dentro. O Exército Branco era uma instituição reconhecida por todos os países como representantes das vontades divinas dos deuses. Existia pleno motivo para nobres e outras pessoas detestarem essas pessoas. Er’Ika não tinha os detalhes por falta de leitura nos livros a respeito do assunto, mas o que entendeu foi que esse grupo detinha autonomia e autoridade máxima entre os feudos dos nobres, logo, podiam assumir qualquer ação livres de consequência.
Na visão da entidade, fazia sentido ter um grupo assim com liberdade, além do mais, demônios eram inimigos dos humanos e de muitas criaturas. Porém, observando do ponto de vista ganancioso da humanidade, era normal que nobres não quisessem pessoas colocando o nariz perto de possíveis pecados que haviam cometido.
É nojento como eles pensam mais em si mesmos do que nos outros. A ignorância humana não tem mesmo limites, a essa altura devem ser erradicados.
As reações dos outros foi o que mais chamou sua atenção, já que era uma conclusão lógica acreditar que havia certo perigo quando uma pessoa descobria sobre seus crimes. A mulher tomou um gole do vinho e pôs a taça na borda da mesa, analisando o rosto de cada um naquela mesa.
— Não darei nomes, a coisa que mais odeio é um vexame público, especialmente agora com o baile da nobreza tão próximo. Sei como são rancorosos uns com os outros, por isso só lhes dou o aviso: cuidado com quem está sentado ao seu lado, pois um dia essa mesma pessoa que partilha a comida com você na mesa pode ser a mesma que irá apunhalar suas costas.
O silêncio reverberou pela sala, as chamas crepitantes das velas tiveram mais voz do que a respiração das pessoas no local. Ninguém ousou ir contra as palavras dela devido a suas palavras altivas e autoridade sob os demais. Liane, que Er’Ika também notou as reações, parecia ter perdido o ar e tremia de medo, mas seu gêmeo ao lado avaliava as palavras com uma frieza inumana.
Após o longo discurso, as portas da sala se abriram. Um homem adentrou o local, seus trajes indicavam o maior grau de riqueza dado aos humanos e a pressão ao seu redor congelou as pessoas no lugar, exceto a mãe de Liane. Os dois trocaram olhares, a lareira aparentou apagar a qualquer instante pela frieza que o ambiente tomou, mas o sujeito apenas passou reto e se sentou na outra extremidade.
A entidade tomou atenção extra nessa figura. Seu cabelo grisalho e rosto apático eram muito icônicos para ignorar, ainda mais quando possuía determinado gosto por uma apatia extrema para com as outras pessoas, coisa que ele mesmo também tinha. Quando o homem se sentou, a madame nobre também fez o mesmo, e assim o jantar entre aquelas pessoas continuou como de costume.
Naquele momento, o sonho terminou. Er’Ika tinha desenvolvido um ódio bastante particular por essas pausas repentinas, ao ponto de querer abrir a cabeça de Liane por conta própria para inspecionar tais memórias travadas.
Hah, não posso fazer tanto, tenho que esperar o garoto ter outro surto ou coisa do tipo para saber mais… Será que eu deveria começar a colocá-lo em situações perigosas de propósito?
A sugestão soava boa, mas seria demais levando em conta que assumir riscos desnecessários poderiam cedo ou tarde matar o receptáculo, por consequência pondo a entidade numa posição que não queria estar. Registrando os eventos acontecidos, Er’Ika espalhou sua consciência para continuar cuidando de Liane, ao mesmo tempo que absorvia mais das partículas de energia demoníaca.
Como não tinha o que fazer quanto aos sonhos, era obrigado a esperar pela próxima oportunidade.
Essa demora para saber das coisas me dá tanta raiva…
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