Liane encarou o teto de madeira com a vista turva. Dores de cabeça atrapalhavam o funcionamento pleno de sua mente, enquanto a sensação de vertigem impedia de ver qualquer coisa direito ao seu redor. Ele sentou na cama e coçou os olhos, que ainda estavam borrados. Seu corpo, por outro lado, parecia leve como uma pena, coisa que pouco esperava levando em conta a luta do dia anterior.
Foi só quando sua mente passou por uma breve lembrança que finalmente o restante do organismo voltou a funcionar normal. Pareceu um pequeno susto, pois a memória vívida daquela lâmina riscando sua bochecha causou calafrios. Ao tocar na região, reparou que a ferida sumiu, sem nem mesmo deixar para trás restos de sangue coagulado.
— Er’Ika, você tá aí?
Estou sim. Você dorme demais, pequenino.
— Eu não tive culpa, fiquei muito cansado… — Ele fez biquinho, então seus olhos se concentraram na porta do outro lado. — Tive um sonho nada legal, queria voltar a dormir.
Não pode. Eu preciso de ti acordado para conseguirmos chegar ao nosso objetivo. Ah, inclusive, tenho boas notícias e médias notícias.
— Médias notíxias? Ninguém nunca fala isso. Foi algo que você inventou, não foi?
Não importa. Qual você deseja ouvir primeiro?
Liane revirou os olhos, esse comportamento já era mais do que normal do seu parceiro. Com isso, ele decidiu ouvir as boas notícias primeiro, apenas para ser surpreendido pela animação de Er’Ika em ter achado uma possível forma de sair de seu corpo.
Quando você foi atingido por aquela coisa, um demônio invadiu o seu corpo e lidei rapidamente com ele, mas também descobri uma forma de purificar a energia deles e torná-lo meu. Resumindo, se pudermos pegar mais dessa energia, acho que me libertarei do seu corpo.
— Nossa, isso é mais do que bom, eu acho! O que você descobriu também?
Descobri que isso tem um certo efeito no seu corpo. Posso utilizar essa energia para acelerar o seu crescimento e recuperação, foi o que fiz para curar o buraco no seu peito e o corte na bochecha. Bem, quanto às médias notícias… Jessia foi presa.
— Ah, ela mereceu. — Aquela resposta surpreendeu a entidade, que esperava algum tipo de empatia do garotinho, mas logo a mudança de expressão repentina de Liane explicou que não havia captado a mensagem direito. — Preza?! Você tá falando sério, Erika? Quando? Isso aconteceu enquanto eu dormia?
Sim. Olhe para trás primeiro, isso vai explicar melhor.
Liane rapidamente girou para o outro lado, deparando-se com o enorme buraco na parede e como a luz do sol atacando suas retinas e a neve invadindo o quarto aos montes. Como se não bastasse, ainda havia uma mulher deitada próxima à cama, dormindo num sono profundo.
Ela era uma santa, seu longo cabelo loiro e o símbolo no pescoço relembrava da última vez que a viu, no caso quando estavam estudando o Demonicon. Vê-lá trazia uma péssima sensação de desconforto.
Por favor, ainda tenha calma, ela adormeceu por conta de um pequeno experimento que fiz…
— Que-Que experimento? Já é bizarro só ter essa mulher bem aqui.
Eu testei se podia tornar energia comum em energia demoníaca. Até posso, e se uso em formas específicas, acabo desenvolvendo um feitiço. Não funciona da mesma forma que magia, mas é muito útil, só sinto que ela tem uma composição menos agressiva.
— En-Entendi… — Ele não entendeu absolutamente nada. — Mas e agora? Sem ela, não temos dinheiro!
Não se desespere, é para isso que temos Milea.
Liane não gostava tanto da ideia. Ao menos, alguns trocados foram furtados da aljava de Jessia, o que duraria por uns dias. Er’Ika, no entanto, estava com pouca vontade de contar alguns tópicos, tal como o do miasma pelo ar. Por outro lado, precisava resolver essas questões cedo ou tarde.
Como o miasma estava alimentando sua força de maneira passiva, a proteção contra espíritos malignos descrita no Demonicon teria que esperar. Talvez quando enfrentassem algo mais perigoso, poderiam usá-la. O tempo demoraria para passar, então enquanto pudesse, seria bom conscientizar o garotinho das mudanças que ocorreram para a noite do dia.
Levante a sua mão. Deixe que eu a domine.
Liane imediatamente obedeceu, mais do que acostumado às ordens repentinas. Após relaxar seu corpo, correntes elétricas arrepiaram os pelos do seu braço, até saírem dos dedos. Originalmente, era só para um simples toque cheio de energia, mas ao invés da eletricidade se dissipar, ela voou dos dedos e se espalhou pelo ambiente. O garoto ficou de olhos arregalados, olhando para sua própria mão.
— Como… Como você fez isso?
Tenho meus truques, pequenino. Encontrei uma forma de manipular energia de uma maneira mais eficiente, vou registrar na sua memória motora para aprender sozinho.
Liane queria entender como Er’Ika conseguia realizar essas coisas justamente quando dormia, mas era extremamente útil de um jeito ou de outro. Os dados apareceram dentro da sua mente como um insight repentino, facilitando seu uso por conta própria. O garotinho tentou sozinho e o resultado foi bem medíocre, o raio amarelado apenas saiu poucos centímetros do seu dedo e desapareceu, não era que nem a linha reta projetada pela entidade.
Um suspiro fugiu de sua boca, isso era realmente muito interessante para ignorar. Só que, em meio aos devaneios e a satisfação de obter mais poder, um pequeno espinho apareceu. A outra cama continuava vazia, o sol raiava do lado de fora acompanhado de flocos de neve. Algo estava fora do lugar.
— Erika, nós vamos tirá-la da prisão.
Oh, que mudança repentina. Por que você quer fazer isso?
— Não quero me sentir do mesmo jeito quando sequestraram a gente do vilarejo, que a irmã Zana ficou para trás. É errado, e ela ficou do nosso lado o tempo inteiro. Mesmo sendo uma endiota interesseira, acho justo recompensá-la.
Hum… seu coração é purinho demais, pequenino. Bem, eu já planejava fazer isso de qualquer forma, aquela senhora é uma ferramenta útil demais para ser ignorada.
— Eu literalmente me referi a exatamente o que você tá fazendo agora. Erika, você não muda mesmo.
Sou perfeito e imutável, Liane.
O garotinho deu uma breve risada, e assim aqueles dois começaram a arquitetar um plano para tirar a bandida de dentro da prisão. Porém, antes de desenvolverem algo minimamente útil, alguém bateu na porta.
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