Jessia queria saber o que houve para Liane parar ali, dentro da prisão, e ainda por cima ter diversos guardas e detentos desmaiados pelo caminho. Para explicar isso, ele pediu para irem a um quarto isolado, assim tendo privacidade o bastante para se explicar. A bandida não era idiota de negar qualquer suspeita, por isso o tempo todo andou com a mão presa no cabo da cimitarra.
Já bastava a santa louca que quase matou antes, a essa altura seria racional imaginar que o pirralho também tivesse sido possuído no meio tempo que estava fora. No entanto, o que aconteceu ali dentro era extremamente diferente do que se esperava. Ao invés de uma execução, a velha caiu de joelhos diante do que via, um pontinho brilhante voando em sua direção, de cor avermelhada e com um par de asas adornando suas costas.
Aquilo era nada mais nada menos que uma farsa. Er’Ika, após absorver os poderes do demônio desconhecido, descobriu que energia era algo muito mais maleável do que a primeira vista. Ele podia se materializar como sombra a certo nível, e com o tempo, usar isso se tornou progressivamente mais fácil. Após sugar a energia demoníaca de Milea, ele atingiu um novo nível, agora podendo ganhar uma forma muito mais bruta no ambiente, quase ao ponto de interagir com ele.
Aquele pequeno brilho era a simulação de uma fada, criaturas espirituais explicadas em contos de fadas e nos mais diversos livros a respeito de espiritismo. Não eram seres catalogados, muito menos comuns, e ver uma fada significava o bom agouro. Jessia, antes descrente sobre histórias para crianças ninarem e uma verdadeira cética a lendas, ficou de queixo caído.
Er’Ika, em sua forma de fada, com frágeis asinhas nas costas, uma aparência feérica, orelhas pontudas e olhos coloridos, a encarou com uma inocência. Era mera atuação, Liane sabia melhor do que qualquer um, mas se apresentar como uma criatura fantástica e gentil com certeza era mais seguro do que ser revelado na forma de uma sombra demoníaca cheia de olhos e vozes distorcidas.
— Me sinto honrada de conhecê-la, ô guardiã do meu protegido — disse a fadinha, com uma voz fina e afeminada. — Eu peço perdão por me apresentar assim, mas não tive escolha além de me esconder…
— Li-Liane, você tinha uma coisa dessa perto de ti o tempo todo?! — gritou Jessia, com olhos arregalados e encarando o menino, que acenou fracamente com a cabeça. — Nos-Nossa… isso explica o porquê do seu talento em magia, pirralho. Ca-Ca-ham! Desculpa o comportamento, dona fada, é que é a primeira vez que eu vejo uma tão de perto.
— Oh, não se importe com isso, humanos tendem a ter a mesma reação. Mas isso não importa, eu preciso lhe dizer sobre algo muito importante, guardiã. Você, de todas as pessoas que conhecemos, é a única que pode nos ajudar agora.
Um silêncio repentino tomou o quarto. Ela ajudar alguém? Quem ia desejar o apoio de uma bandida famosa que matou mais vezes que um carrasco a vida inteira? O pedido teria que ser absurdo, e aquilo devia ser uma falácia, mas vinda de uma criatura mística, Jessia fechou a boca para ouví-la.
— As pessoas dessa vila correm perigo… — explicou a fada, voando em círculos pelo ar. — Há pessoas muito más tentando invocar um demônio, eles podem matar todos aqui. O pequeno Liane ainda é uma criança, por isso ele não pode enfrentá-los sozinho. Eu fiquei lhe vendo durante muito tempo, então me decidi: você, Jessia, mesmo com pecados sobre os ombros, possui uma honra e dignidade que nunca encontrei em outra pessoa. Eu lhe peço para ajudar os inocentes dessa vila, tanto pelos meus amigos espíritos quanto pelo destino do pequeno Liane.
O choque na face daquela mulher era enorme. Honra e dignidade? Que criminoso carregava isso? Jessia era uma pessoa que sujou as mãos inúmeras vezes, redenção estava longe demais para se obter, e também seu coração tinha sido corrompido ao longo dos anos, e aquela fadinha, aquele ser sobrenatural, levou à tona que ela era a única a salvar todos.
Seus lábios secaram. Mais uma vez seu olhar caiu sob Liane, que desviou o rosto e apertou os próprios braços. Esse tempo todo ele escondia segredos, como esperado, mas havia um ótimo motivo. Um suspiro saiu da boca daquela velha, que passou a mão no cabelo e sentiu o mundo cair nos ombros.
— Você está falando a verdade?
Desde o princípio, Jessia não queria entrar no crime, ela só fez isso por obrigação. Após matar dois nobres, era óbvio que todos os poderosos odiariam a sua pessoa, mas se tivesse uma chance de redenção, não significava que ela poderia ter uma vida pacífica depois de tanta carnificina?
— Sim, eu não posso mentir, independente do que aconteça.
A bandida abaixou a cabeça, ponderando naquelas palavras. Ela costumava se gabar sobre como Liane era uma bolsa cheia de ouro, já que seu plano era vendê-lo para uma academia mágica ou um professor de altíssimo orgulho para ganhar muitas moedas de ouro. Com o tempo, o plano aos poucos se modificou, porque lentamente Jessiaa se apegou ao garoto. Nunca quis admitir isso, mas era verdade.
A história do menino se assemelhava a sua, e muitas vezes ela se culpava por ter assumido o serviço. Mesmo sendo uma questão de vida e morte quando aceitou, não tirava o fato de que ela se responsabilizava por toda a tragédia ao redor de Liane.
— Ah, dane-se a merda toda! — Ela ergueu a cabeça, com olhos brilhantes, olhos esses escondidos no fundo da sua alma por muito tempo. — Eu aceito a missão, o que a gente precisa fazer pra resolver?
Er’Ika sorriu. Tudo ia conforme os planos, assim como ele queria. Liane tirou uma sacola da bolsa, cheia de ervas medicinais e flores.
— Primeiro, nós te protegeremos contra a energia demoníaca, e também ficaremos ao seu lado. Eu me responsabilizarei por sua vida, juro ficar perto e sempre lhe ajudar, custe o que custar.
Jessia acenou com a cabeça, virando uma peça num grande tabuleiro invisível. A entidade, usando a carapuça de uma fada, teve uma felicidade genuína ao perceber como seriam grandes os frutos que em breve colheria por causa do trabalho de outra pessoa.
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