“Eu me rendo! Eu me rendo, vocês ganharam”, diz a demônio de cabelo rosa, jogando seu arco em frente a garota do machado.
Helga e Arielle se assustam com as palavras de Liz. Por que ela desistiria?, elas pensam. A ação sem sentido do lorde demônio as deixa desconfiadas, mas, ao invés de fugir ou lutar, elas permanecem no local onde estão, observando atentamente os movimentos do algoz de sua amiga.
Com todas paradas, apenas se olhando, o lugar volta a ficar quieto. O som do vento e das chamas volta a prevalecer, acompanhado, bem ao fundo, da respiração pesada de Helga.
Arielle está apreensiva, fazendo menção de recuar, continuando o seu plano de fuga original, porém ela volta seu olhar para Helga e permanece estática, esperando alguma reação ou alguma ordem. Helga toma uma postura defensiva, erguendo o escudo em sua frente, confusa com ações do monstro diante dela.
“Se rende? Que merda é essa? Um truque do Abismo?”, exclama Helga apontando seu machado para o demônio.
“Eu me rendo, eu… não quero lutar. Eu quero conversar”, diz Liz, sua voz um pouco trêmula, ela está nervosa, porém agora está mais calma do que estava há um minuto.
A esse ponto, ela já sabe que nenhum cursor ou suporte do HTO está ativo, e que as coisas que ela sente, são as coisas que a personagem Rubi sente. O chão, as roupas, a temperatura do ambiente, até mesmo os dentes em sua boca são as sensações de Rubi e não de Liz.
Está tudo muito estranho, ao mesmo tempo em que ela parece estar no Hellish Tales Online, ela sente que está em um lugar completamente diferente. A única coisa que ela tem certeza, é de que as garotas em sua frente sabem mais dessa situação do que ela, e falar com elas pode ajudar a clarear um pouco as coisas.
Pensando nisso, quando ela olha para onde está a garota caída, uma nova preocupação paira em sua mente. A garota que eu acertei, será que ela também… sente?, esse pensamento a faz voltar a esboçar preocupação aparente.
Helga continua encarando a demônio, ainda muito desconfiada. Ela dá um passo à frente, e com a perna esquerda arrasta para trás o arco que Liz jogou. Sem em momento algum, tirar os olhos do demônio, Helga diz em voz alta, “Arielle!.”
Mas Arielle não responde, e permanece quieta, sem responder.
“Arielle!”, diz Helga agora gritando.
“Oi!!”, responde Arielle, se assustando com o grito.
“Vai ver a Jenny, eu fico de olho nessa aqui”, diz Helga.
Arielle, acena com a cabeça e vai correndo até o lugar onde sua amiga Jenny está caída. “Se você matou ela, eu juro que vou arrancar essa sua cabeça pelos chifres”, diz Helga, tentando ameaçar Liz.
Liz ouve essas palavras e pensa, Não que eu ache que ela tenha como fazer isso, mas, se a dor é real, a morte também…. Elas realmente iam me ma… Será que eu matei ela?!. Nesse momento, o nervosismo de Liz aumenta, sua respiração volta a ficar pesada, ela continua olhando para onde Jenny e Arielle estão, desejando pelo menos uma notícia boa.
“Ela tá viva!”, exclama Arielle.
Ao ouvir isso, tanto Helga quanto Liz respiram aliviadas, o olhar de preocupação das duas diminui, mas Helga ainda continua em sua postura hostil contra Liz. “Deu sorte”, ela diz.
“Ainda bem”, Liz comenta, um pouco mais relaxada.
“Mas ela tá bem mal”, acrescenta Arielle, agora soando bem aflita. “Ela parece pálida, acho que ela não aguenta chegar na cidade se ficar com essa ferida assim.”
Helga volta a ficar apreensiva, temendo que o pior possa acontecer. E se acontecesse assim, logo quando a morte certa abriu margem para a esperança, talvez fosse uma morte bem pior do que se elas só tivessem caído juntas em batalha.
Liz, vendo a angústia das garotas, finalmente percebe, Elas não estão com medo só de perder isso aqui, elas têm medo de verdade. Medo de mim, medo de morrer, medo que a amiga delas…
“Arielle, me diz que você tem uma poção aí?”, diz Helga, olhando para Liz seriamente.
“Eu tenho uma aqui, que sobrou de ontem!”, responde Ariele, mexendo em sua mochila e logo em seguida levantando um único frasco com um líquido vermelho claro em seu interior.
Helga se vira e ao ver a poção nas mãos de Arielle, mais uma vez solta um suspiro de alívio e relaxa seus ombros. Talvez agora isso aqui não termine em tragédia, ela pensa.
“Talvez não seja o bastante”, interrompe a demônio, que volta a ser encarada com desconfiança por Helga e Ariele.
“Por que?”, em um tom calmo, porém, soando como uma ameaça, pergunta Helga se virando novamente para Liz.
“Talvez as minhas flechas reduzam o efeito de curas”, diz Liz, tentando não olhar nos olhos de Helga, um pouco acanhada de ter que dizer isso.
“Você amaldiçoou ela!?”, exclama Helga, voltando a apontar o machado para Liz.
“A Jenny vai morrer!?”, questiona Arielle, quase chorando, com a poção em mãos.
“Não é uma maldição, o efeito é mágico, é só tirar com magia ou usar uma poção muito boa”, responde Liz.
Helga se vira para Arielle. “Arielle, pensa bem antes de responder, essa é a poção que compramos do Silvanna ou é a poção que ganhamos do Silvanna?”, ela questiona calmamente.
“Eu… eu acho que é a que ganhamos”, a meia-elfa responde.
“Que merda ein”, diz Helga, praguejando.
Ela volta a olhar para Liz, dá um suspiro. “Consegue tirar a sua maldição?”, ela questiona, séria, pela primeira vez suas palavras para Liz não soam como uma ameaça.
“Não é uma maldição! Mas eu posso lidar com isso”, respondeu Liz, confiante. Já tenho que lidar com esse tipo de coisa desde os níveis baixos. Não vai ser problema, ela pensa.
“Então, ajuda a minha amiga, e talvez, a gente possa conversar”, diz Helga, agora calma, mantendo sua postura.
Liz acena com a cabeça e vai em direção a Jenny e Arielle. Conforme ela se move, Helga muda sua posição para sempre ficar entre a demônio e seu arco.
Quando ela se aproxima de Jenny, Liz consegue ver o estrago que fez. A flecha de energia mágica atravessou o ombro dela, ela pensa ao ver um ferimento parcialmente cauterizado e um leve sangramento. Já disparei milhares de flechas com aquele arco e isso nunca aconteceu. Acho que se isso acontecesse no HTO, eu não deixaria o Miguel jogar.
Ao lado dela, agachada, está a Elfa. Ela está um pouco trêmula por ter que ficar ao lado de Liz, mas prefere se arriscar assim, do que deixar a amiga sozinha. Será que ela não tem um Dissipar Mal? Um Remover Penitência? Ou uma magia de cura?, Liz pensa, se referindo a elfa. Um bom grupo sempre tem que ter isso pra evitar esses momentos.
Liz se agacha também e começa a idealizar em como irá ajudar a garota caída, Seria melhor usar uma poção Maior? Ou usar uma de remoção de efeito e uma poção média? Também dá pra usar aquele amuleto de restauração antigo, ainda bem que não deixei ele na base.
É melhor usar uma Poção Maior mesmo, conclui Liz enquanto faz um gesto com a mão esquerda, como se tentasse pegar algo ao lado dela no ar, mas nada acontece. E mais uma vez aquela expressão de desespero volta a sua face. O gesto que ela vem fazendo quase todos os dias de sua vida nos últimos três anos, não deu resultado. Eu acho que… estou sem acesso ao meu inventário, Liz lamenta, desolada.
“Tá… Tá tudo… Tá tudo bem Dona Demônio?”, questiona Arielle achando muito estranho o comportamento de Liz.
“Sim, eu só estou só pensando”, responde Liz, tentando disfarçar.
Liz encara o ferimento em Jenny e imagina se tem alguma magia que pode usar para aquela situação, porém tudo que vem a sua mente é um diálogo com seu irmão, Miguel, de muito tempo atrás.
Nas memórias, ela e Miguel estão andando lado a lado por uma trilha em uma floresta densa. Eles portam equipamentos mais simples, proteções de couro, armas não-reluzentes e flechas de madeira.
“Liz, qual magia você pegou agora no nível 25?”, pergunta Miguel, olhando para uma tela com uma lista de magias e habilidades em sua frente.
“Eu peguei a Chuva de Flechas”, responde Liz.
“Nossa”, diz Miguel surpreso. “Achei que você fosse pegar aquela magia de cura que tinha falado.”
“A Cura Espiritual?”
“Sim, essa mesmo”, Miguel responde, ainda folheando a lista que estava vendo.
“Eu pensei melhor. Pegamos tantos itens de cura e poções que não valia a pena.”
“Tem certeza? E se a gente precisar ir numa masmorra que não dê pra usar poção de novo?”, pergunta Miguel, esboçando preocupação.
“Aí a gente usa os amuletos de cura ou chama o aquele bardo que fez grupo com a gente outro dia”, Liz responde, ao mesmo tempo em que aponta para o colar com um pingente em forma de cruz em seu pescoço. “Esse amuleto aqui, por exemplo, cura a mesma coisa que uma poção menor, e tem o tempo de recarga de uma habilidade de nível 10.”
“Ah, você é esperta mesmo”, diz Miguel trocando sua preocupação por um sorriso. “Então também não vou pegar magia de cura.”
“Isso! Às vezes temos que pensar no futuro”, diz Liz confiante.
Eu segui com esse pensamento até o nível 100, Liz recorda se sentindo ainda mais desolada ao se deparar com mais um problema. Eu também não tenho magia de cura, nem de remover esses efeitos.
“Ela vai ficar bem?”, Arielle pergunta, olhando bem nos olhos de Liz e ainda segurando a poção com as duas mãos.
Ver tão de perto os grandes olhos azuis da elfa, cheios de lágrimas nos cantos, faz Liz se sentir pior ainda. Afinal, em partes, ela é a causadora da situação em que a amiga dela se encontra.
“Vai sim”, a demônio responde, apesar de não saber como fará isso.
Em vez de pensar no que eu não tenho, vou pensar no que eu posso fazer.Se ao menos a geladeira ali atrás tivesse algo que pudesse ajudar…, ela pensa, observando Jenny no chão. Basicamente, tenho apenas as coisas que estava usando antes de desconectar e a poção da elfa.
Minhas opções são o arco que tá ali atrás, mas ele não seria útil mesmo, então, deixe para lá. Minha camisa e minha saia são apenas armaduras, não vão ajudar. Os sapatos de esquiva também não. E as luvas… nada. Droga, não tenho nada, pensa Liz enumerando cada um de seus equipamentos e efeitos. Espera, é isso! Meu casaco!, Liz dá um sorriso, se lembrando de um detalhe.
Liz retira o casaco que cobre suas costas. “Levanta um pouco a sua amiga, eu vou equipar isso aqui nela”, ela diz para a elfa.
Arielle acena com a cabeça, deixa a poção e o cajado ao seu lado no chão e ergue Jenny um pouco, segurando-a pelos ombros. E Liz logo coloca o casaco nas costas de Jenny.
“O que isso faz?”, pergunta a elfa.
“Ele é como um manto, a função primária dele é proteger um pouco contra magias, mas o efeito que a sua amiga precisa é o segundo”, responde Liz, terminando de encaixar o casaco em Jenny. “Ele melhora a eficiência de curas mágicas, tipo a sua poção.”
“E a maldição?” Questiona Helga, bem ao fundo.
Eu deveria era te…, pragueja a demônio irritada, mas em seguida se acalma. Não é o momento para isso.
“Não é uma maldição!”, responde Liz. “A ideia é que o casaco vai aumentar o efeito da poção e o efeito da minha flecha vai reduzir essa cura, então no final fica quase a mesma coisa”, Liz suspira. “Ela deve ficar bem.”
“Então dá a poção pra ela, Arielle”, diz Helga.
Arielle pega a poção ao seu lado e puxa a rolha que a tampa. O fraco ao ser aberto emite o mesmo som de garrafa de vinho sendo destampada. Em seguida, Arielle leva o frasco até a boca de Jenny, que está escorada em Liz.
Vendo a cor da porção, Liz sente medo que não funcione. Normalmente, quanto mais vermelho o líquido, mais efetiva é a poção, ela avalia. O dela é quase rosa. Talvez seja por isso que Helga pediu ajuda.
Arielle leva a poção até a boca de sua amiga e entorna o frasco. Aos poucos, o líquido dentro da garrafa esvazia. Todas as três ficam apreensivas aguardando o resultado e, após alguns segundos, a ferida no ombro de Jenny começa a se fechar.
“Deu certo!”, exclama com grande felicidade a elfa.
Helga, ouvindo isso, esboça um sorriso. E embora ainda mantenha uma cautela em relação a demônio, finalmente ela pode respirar aliviada. “Graças aos deuses”, ela murmura.
Instantes depois, Jenny começa a acordar. “O que aconteceu? Sinto como se uma carroça tivesse passado por cima de mim de novo”, ela reclama sem se levantar.
Quando Jenny abre os olhos, está escorada sobre o colo da demônio de cabelo rosa. Ela fica olhando para Liz, imaginando se aquilo é algum tipo de ilusão ou sonho.
Liz, alegre por Jenny estar bem, sorri. Ainda bem, ela pensa, aliviada.
Jenny, vendo aquele sorriso demoníaco, cheio de dentes afiados, grita assustada.
Helga se aproxima mais de onde elas estão. “Tá tudo bem agora!”, diz ela, tentando acalmar a amiga.
“Bem?”, diz Jenny se afastando de Liz, tentando se levantar. “Cadê o culto? Por que ela tá aqui? E por que eu to toda quebrada?” Com muita dificuldade, ela se levanta, e sente algo em suas costas. Ela leva a mão em seu ombro e sente o casaco de Liz. “Que isso? Por que eu to de casaco?!”, confusa e assustada, ela começa a falar muito alto.
“Uma parte disso é culpa minha”, diz Liz, um pouco constrangida, “Eu peço desculpa e tal, mas você poderia me devolver o meu casaco?”
Sei que tem coisas mais importantes no momento, mas assim não gosto de ver os outros com as minhas coisas, pensa a demônio. Foi muito difícil pegar aquele casaco.
Jenny respira fundo, olha para Helga e diz calmamente, “Helga, me diz o que tá acontecendo, e por favor, me digam que não venderam a alma pra essa daí.”
Helga olha para Liz e diz, “Você não queria conversar? Talvez agora seja uma boa hora pra isso.”