Mesmo diante da figura intimidante, Godwick permanece imóvel, aguardando a próxima ação da demônio e cogitando se ele deve lutar ou fugir dali correndo. No entanto, ele não tem tempo para pensar. O Homem-fera é pego de surpresa quando Silvana, atrás dele, entra na sala lhe dando um empurrão pelas costas e, logo em seguida, fechando a porta atrás.
A única reação que Godwick, dentro da sala, tem é se recompor e erguer os punhos, adotando uma postura de luta. “Que droga é essa, Silvana?!”, ele questiona, sem tirar os olhos da demônio. “Finalmente perdeu o juízo e vendeu a alma?”
“Calma, meu amigo, pode baixar essas mãos, ninguém aqui veio para brigar”, Silvana fala, tranquilo. “E foi você mesmo que disse que queria conhecê-la. A pessoa que ajudou a parar Edric. A Lorde Demônio da Ganância.”
“O quê?!”, questiona Godwick, confuso, já que aquela informação não faz sentido em sua mente.
“Foi ela quem quebrou o cristal, inclusive”, responde Silvana.
A demônio faz uma breve reverência, abaixando a cabeça e diz, “Pode me chamar de Rubi.”
Godwick fica mais confuso ainda. “O que está acontecendo aqui?”, ele questiona.
Rubi, atenta a cada reação do homem-fera. Não ter me atacado já é um bom sinal, ela pensa, com alívio. Silvana me avisou que ele não era só um burocrata. Disseram para eu parecer confiante e sem brechas, ou ele me atacaria no primeiro instante. Talvez tenha exagerado com a coroa, mas, pelo que falaram, ele nunca fugiria, independente do perigo, então por que não ir com tudo?
Silvana se vira para Rubi, um olhar displicente estampa o seu rosto. “A minha parte eu já fiz. Agora é com você”, ele fala com sua calma e rebuscada. Ele abaixa a cabeça como um gesto de confiança.
Quem vê até pensa que é um bom moço, a demônio analisa, depreciando o comportamento do homem. Quase sinto um pouco de pena do Godwick. Pensei que ele já fosse adaptado, mas talvez não tenha como se acostumar a andar com alguém tão inescrupuloso assim.
Rubi respira fundo, tomando fôlego antes de conduzir a fala. “Eu nunca quis ser invocada para esse mundo”, diz ela, calma. “E eu tive meus motivos para não deixar ele ressuscitar o Senhor do Abismo. Só que, no processo, acabei me tornando inimiga dos outros demônios e agora não tenho lugar para ir. O Silvana me disse que vocês da Cremea poderiam me dar anistia como monstro, e é por isso que eu estou aqui.”
Godwick permanece quieto, sua visível confusão não demonstra ceder. Ele alterna seu olhar entre a demônio de cabelo rosa, como se aguardasse por mais algo.
Faltou alguma coisa?, Rubi se questiona. Não entendo. Não falei nada errado… eu acho. Rubi também começa a olhar para Silvana, que mantém a mesma expressão tranquila.
“E o que acontece se eu me recusar?”
“Então… eu terei que ir embora. Não vou ficar em um lugar esperando ser caçada.”
O homem-fera, atônito, novamente fica em silêncio. Qual o truque aqui?, ele se pergunta, reavaliando cada palavra da demônio. Será que ela…?
Em algum ponto, Godwick, inesperadamente, dá um forte tapa no próprio rosto. O som é bastante para gerar um estalo, que é parcialmente abafado pela pelagem na sua face, embora ainda reverbere pela sala.
“Por que você fez isso?!”, Rubi pergunta, surpresa.
“Ele pensa que você está brincando com a mente dele”, Silvana responde com deboche.
“Ah… não posso culpá-lo”, comenta Rubi.
Depois daquela vez, com o encanto, é uma preocupação válida, ela pensa.
Godwick, percebendo que não sente nenhuma diferença, nota o sorriso cínico de Silvana, com o qual já está familiarizado. A desconcertante calma daquele homem faz sua confusão se transformar, aos poucos, em raiva. “Silvana, isso é mais um dos seus esquemas sujos?!”, ele pergunta, agora indignado.
“Não entendi ao certo o que você quis dizer”, ele responde, sem sair de sua postura debochada.
O homem-fera volta seu olhar para Rubi. “Isso é sério?!”, ele questiona, revoltado.
Ela acena positivamente. “Uhum”, ela responde.
“Tão sério quanto qualquer coisa que eu já lhe pedi”, Silvana completa.
Vários pensamentos sobre possibilidades circulam pela cabeça do homem-fera. Só que eu não sendo controlado , ele analisa. Só tem uma resposta para isso…
Frustrado, ele coloca a mão sobre o rosto, como se tentasse apagar de sua visão a cena diante dele. “É claro que isso é outro esquema sujo”, ele conclui, já cansado.
“Não é sujo, por isso eu preciso de você”, Silvana corrige.
“Não é sujo?!”, retruca Godwick. “Tem um Lorde demônio na sua sala!”
Eu preferiria resolver isso sem ser chamada de suja, Rubi pensa, ofendida.
A demônio dá um passo à frente. “Consegue me ajudar?”, ela pede, querendo ir direto ao ponto.
Godwick, ainda desconfiado, dá um passo atrás, quase batendo as costas na porta. “Ajudar? Eu preciso pensar”, ele responde, nervoso.
“Tudo bem”, diz Rubi.
Buscando se acalmar um pouco, se senta no chão com as pernas cruzadas e respira fundo. “Se você fosse um goblin, seria tão mais fácil…”, ele lamenta.
Isso é verdade, Rubi pensa, concordando parcialmente frustrada. Mas não tinha essa opção como raça jogável. As coisas teriam sido mais fáceis se eu tivesse feito aquele personagem elfo que eu desbloqueei.
Silvana se aproxima de Godwick e coloca a mão sob seu ombro. “Você sabe que consegue”, ele diz. “Além disso, você ainda me deve uma.”
“Eu devia te mandar para a prisão. Por que você quer isso?”
“Eu vi uma oportunidade, e a ideia não foi minha. É ela que quer assim. Não tendo que se esconder de todo mundo”, Silvana responde. “E é melhor ter um Lorde Demônio como aliado do que como inimigo.”
O homem-fera mais uma vez suspira. Talvez até seja uma boa oportunidade, ele pensa, ainda relutante. Só que precisava ser logo agora?
“Você pelo menos tem alguma garantia de que ela não está te enganando?”, Godwick pergunta, quase sussurrando no ouvido de Silvana.
“Ela é só um diabo perdido, não conseguiria me enganar nem se quisesse. E ela ainda teria que passar pelos meus instintos. E você sabe que eles são bons.”
Godwick passa algum tempo pensando antes de continuar. “Você está me deixando em uma situação difícil”, ele comenta.
“Nada diferente das coisas que já passamos.”
“Seria algo inédito.”
“Mas não é impossível, certo?”
“Eu tenho chances?”, pergunta a demônio esperançosa.
Godwick se levanta, olha para cima, à espera de algum sinal divino, depois olha para Rubi. “Chances você tem, mas o momento é ruim”, ele responde.
“Por quê?”, Rubi pergunta.
Godwick dá a volta na demônio, vai até a mesa e se senta em uma das cadeiras na frente dela. “As coisas no leste foram feias”, ele comenta. “Alguns dos outros Lordes causaram muito estrago por lá.”
Rubi fica tensa ao ouvir isso. “Eles destruíram muita coisa?”, ela pergunta com pesar.
“O bastante para forçar o nosso conselho a se recompor como uma organização quase completamente militar só para lidar com eles.”
“Isso complica um pouco as coisas”, pondera Silvana.
“Mas a Cremea já não era isso?”, Rubi questiona. “Um dos tais dois braços militares.”
“O intuito principal, não é exatamente fazer exércitos grandes. É mais sobre preparar equipes pequenas, para fazerem trabalhos específicos, e pesquisar sobre monstros e criaturas mágicas”, Silvana explica. “Aventureiros fazem missões e as guildas se adaptam às informações que os aventureiros passam. É um serviço bem interno.”
“Então não é tão militar assim”, Rubi pontua. “Parece mais uma agência de informações ou algo do tipo.”
“Chamam de militar porque, se necessário, as guildas enviam apoio à guarda”, explica Godwick. “Mas não é o ideal. São civis treinados pelas guildas, sem coordenação em larga escala.”
Acho que isso tem a ver com dinheiro, Rubi supõe. Do jeito que as meninas reclamaram sobre custo de equipamento e poções, deu pra perceber que se manter nesse ramo é caro.
“Para compensar isso, existe a Guarda Militar Unificada”, diz Silvana. “São soldados membros dos quatro países do Eixo Unido do Sul. Eles se tornam guardas de cidade ou ficam na fronteira preparados para caso algum país vizinho tente alguma coisa.”
A demônio pondera um pouco, analisando aquelas informações. Com certeza, isso é sobre dinheiro, ela compreende. Um guarda comum não precisa de um machado de prata, nem treinamento especializado pra parar um bandido. Independente do mundo, manter um exército bem preparado é caro. E no final, a vida de um soldado vale menos que o equipamento dele.
“Então, nenhuma das organizações estava pronta para lidar com um exército de monstros mágicos”, ela conclui.
Godwick respira fundo, mostrando tristeza com seus olhos olhando para o chão. “Não estava nem um pouco. Quando atacamos, essa falta de preparação, resultou num massacre de muitos dos nossos”, ele explica, passando um sentimento de derrota a todos da sala. “Especialmente nos soldados da Guarda.”
“Muita gente deve ter ficado com mais ódio ainda dos demônios”, Rubi presume, já desanimada.
“Especialmente dos Lordes”, Godwick completa. “Ouvi que alguns deles foram particularmente bem cruéis.”
“Rubi, eu disse que o seu pedido dependeria muito do que fosse acontecer no leste”, diz Silvana, com desânimo. “ Talvez não…”
“Tudo bem. Já estava aguardando por algo assim”, Rubi fala, interrompendo o homem, decepcionada.
As coisas estavam indo bem, ela lamenta. Felicidade de demônio dura pouco.
Ela faz outra reverência a Godwick. “Desculpa pelo susto, e obrigado pela reunião”, ela diz e depois, se volta a Silvana. “Eu já imaginava que as coisas poderiam não dar certo, eu já planejava em ir para…”
“Calma!”, Godwick interrompe. “Talvez eu me arrependa, mas não é impossível.”
“É sério?”, Rubi pergunta, quase sem acreditar.
“Prossiga”, diz Silvana, novamente empolgado.
“Pode ser que eu esteja louco, só que seria um desperdício não tentar”, ele diz, eufórico. “Quando aquele orc, o Cabeça Teimosa, falou comigo, não esperava que meu povo pudesse voltar a negociar com os orcs. Então, em meio a esse conflito, talvez um pouco de paz possa ajudar a acalmar as coisas.”
“Eu também gostava daquele Orc”, pontua Silvana, nostálgico. “E vejo que está começando a compreender a minha visão.”
“Então é mesmo possível?”, pergunta a demônio de cabelo rosa, novamente com esperança.
O homem-fera coça o queixo. “Eu precisaria falar com muita gente”, ele responde. “Pode levar alguns meses, talvez mais de um ano. Mas é possível.”
“E quanto ao senhor Zander?”, Silvana pergunta. “Dado o que você comentou, ele já faz parte da militarização da Cremea. Acha que podemos já começar a falar sobre isso?”
Godwick franze a testa com aquela sugestão, mostrando sua desaprovação. “Eu recomendo evitar deixar que esse assunto chegue a ele”, ele responde. “Ele é…”
Nesse momento, um estrondo poderoso irrompe na porta da sala, surpreendendo a todos dentro do local. Os três se voltam rapidamente para a entrada e veem a porta arrombada e ao lado dela, de pé em meio à poeira, está o anão de barba ruiva, Zander, furioso, não exibindo mais seu sorriso gentil.
“Acho que você está um pouco atrasado, Godwick”, Zander afirma em um tom ameaçador.