Do lado de fora do prédio, em frente à entrada da guilda, os guardas estão terminando de aprontar o prisioneiro, Edric, em uma carruagem por onde pretendem transportá-lo. Há seis cavalos presos ao vagão escuro e cinzento com barras de ferro nas janelas, que está parado na rua em frente à entrada.
Da porta principal do prédio, as três garotas observam a transferência do prisioneiro.
“Parece uma prisão móvel”, comenta Arielle.
Helga, escorada na porta, observa o vagão com muito interesse. “Deveríamos ter um daqueles”, ela afirma.
“Nem vem”, retruca Jenny. “Aquilo deve ser muito pesado. Olha, quantos cavalos precisa para levar.”
De dentro do prédio, um som estridente e abafado irrompe, ecoando até a porta onde as garotas estão, interrompendo a conversa descontraída. As garotas ficam alarmadas, se encaram brevemente, depois olham para os guardas que estão na rua. Todos demonstram ainda estar focados apenas em terminar de aprontar o prisioneiro.
Passado o susto inicial, o prédio volta a ficar em silêncio e as garotas reduzem um pouco o alarde.
“Acho que isso veio de lá de cima”, Helga supõe, falando em voz baixa.
“Veio do terceiro andar”, Arielle afirma. “Tenho certeza.”
“Ainda bem que nenhum cavaleiro ouviu”, diz Jenny, aliviada.
“O pessoal lá dentro ouviu”, comenta Helga.
“Mas ninguém vai subir. Silvana fechou a guilda hoje e só tem poucos funcionários lá dentro. E ninguém sem permissão pode subir acima do segundo andar”, Jenny explica. “Já é o procedimento de quando ele faz uma daquelas reuniões.”
“E nós?”, questiona a meia-elfa, aflita. “Não deveríamos subir?”
Jenny sente o coração pesado. Eu também gostaria de subir, ela pensa. Mas…
“Não há muito o que possamos fazer”, ela responde. “E é mais importante garantirmos que nenhum desses guardas atrapalhe.”
“Certo”, diz Arielle, acenando com a cabeça. “Não passarão.”
“Ainda bem”, diz Helga, aliviada. “Achei que você iria dizer para subirmos e brigarmos usando punhos.”
“Você teria subido para ajudá-la?”, pergunta a meia-elfa.
“Eu? Não. Teria subido para ajudar vocês. Vocês dão socos como goblins.”
“A Arielle soca como um goblin”, diz Jenny. “Eu sei brigar.”
“E você briga como um elfo”, pontua Helga. “E elfos brigam como goblins.”
“Ei!”, reclama a meia-elfa.
Jenny dá um sorriso, ela olha para o topo do prédio, mirando na janela da sala de Solvana. Boa sorte, Rubi, ela deseja.
Enquanto isso, no terceiro andar, a tensão cresce na sala do líder da guilda. Godwick se levanta da cadeira, pasmo, ao avistar o anão. Silvana, contudo, permanece parado, exibindo bastante descontentamento em vê-lo ali.
Rubi fica surpresa e, ao mesmo tempo, intrigada pela figura de Zander. Esse cara… sei que é o outro que veio com o senhor Godwick. Tem alguma coisa nele, ela divaga, enquanto o observa. Não diria que é familiar, é quase como…
“Peço perdão pela minha entrada um pouco abrupta”, diz o anão. “Eu estava bisbilhotando a conversa de vocês porque não queria entrar na sala se estivessem no meio de algum joguinho político. E, como suspeitei, vocês estavam mesmo.”
“Se não queria participar, poderia não ter entrado”, Silvana fala. “Ainda mais se fosse quebrar a minha porta.” Ele arrasta, com um pé, uma lasca de madeira da porta destruída.
“Eu não podia ir embora quando ouvi que a conversa era sobre demônios e que a terceira voz era de uma praga, fiquei quieto ouvindo. Mas tive que entrar porque não conseguiria ficar mais quieto quando ouvi meu nome sendo mencionado no meio dessas tramóias.”
Praga? Ele tá falando de mim?, Rubi pensa. Ofendida, ela franze o rosto.
“Zander, compreenda, foi ela quem parou Edric”, Godwick pede com sua voz calma, buscando entendimento do anão.
“Ah sim! Isso bate com aquela história. Quando eu vi aquele arco nas costas dela, já imaginava que ela estivesse envolvida. Entendo como um pacifista como você acabou amolecendo o coração”, diz o anão, com uma ironia palpável misturada ao desdém.
“Senhor Zander, jamais foi nossa intenção ofender você”, diz Silvana. “Creio que com uma boa conversa poderemos resolver isso.”
“Silvana, eu poderia me resolver com vocês. Poderia negociar com um orc ou com um dragão. Até com a droga de um goblin eu me entenderia! Mas com um diabo? Nunca!”, ele brada, sua voz grave e áspera, cheia de amargor. “É por isso que eu odeio política. Acordos, tramoias e artimanhas. Esse é o jogo deles, o jogo dos diabos que vocês, os espertões, tentam imitar!”
Logo quando as coisas pareciam bem. Ele ferrou tudo!, Rubi pensa, já irritada. Já imagino onde isso vai dar
A demônio respira fundo, buscando se acalmar um pouco. “Eu não vim brigar”, ela adverte.
Zande fixa seu olhar enfurecido em Rubi. “Acha que devemos alguma coisa a você? Acha que parou a guerra?”, ele pergunta.
“Eu nunca disse isso. Disse que não queria ser caçada e que não tinha intenção de lutar contra vocês.”
“Um pedido um tanto quanto nobre da sua parte. No entanto, essa paz que você quer não existe! Não passa de um pedido egoísta”, ele adverte. “Mesmo que você não queira, te deixar em paz é o mesmo que te dar carta branca para corromper e matar inocentes.”
Ele não vai nem me deixar sair daqui, não é?, a demônio se pergunta. Já estou ficando cansada disso. Ela suspira, frustrada.
Zander, sem tirar os olhos da demônio, se abaixa e leva a mão até a sua bota direita. De lá, retira uma faca, cuja lâmina aparenta ser feita de um metal claro e lustroso.
Com uma espada na cintura, ele ainda preferiu pegar a faca? Com certeza, aquilo ali pode me ferir, Rubi pensa e já saca, da parte de trás de seu cinturão, uma adaga. Prometi para a Jenny que não lutaria, mas não vou ficar desarmada na frente dele.
Silvana dá um passo à frente na direção do anão,“Senhor Zander, não é o momento…”, ele começa a falar.
Godwick também se aproxima. “Por favor, não…”, ele diz.
“Calados!”, exclama o anão em alto e bom tom, sem deixar os outros terminarem a fala. “Não interfiram! Vocês não estavam lá. Nenhum de vocês. Não viram o que eu vi em Dúria!” Zander brande sua faca para os lados, como um sinal de sua ameaça. Silvana e Godwick recuam alguns passos para trás.
“Vi minha terra natal tomada por demônios. Lá, lutei ao lado dos meus homens para defendê-la e íamos bem até que chegou aquele maldito bardo”, diz Zander, com a voz começando a pesar. Antes que pudéssemos reagir, o desgraçado dedilhou aquele instrumento infernal, produzindo uma música tão horrenda e alta que não nos deixou dar um único passo na direção dele.”
Ele tá falando do Arty?, Rubi supõe.
“Eu aguentei, mas os meus homens… meus irmãos de Dúria”, o anão conta, seus olhos carregados de raiva relaxam entristecidos, sua voz áspera vacila momentaneamente, enquanto se recorda daquele encontro. “Vi os ouvidos e olhos dos meus homens começarem a sangrar, até que, um por um, suas cabeças explodiram.”
“Eu… apenas ouvi os relatos”, O homem-lobo comenta, com um olhar baixo.
“O sangue deles respingou em mim e no diabo. Eu fiquei horrorizado, mas sabe o que ele fez, Godwick?”
“Zander, eu… não sei.”
“Sabe o que o demônio fez?!”, Zander exclama a pergunta, com desgosto. “Ele riu! O filho da puta riu dos meus irmãos morrendo! Já vi daimons no norte menos cruéis do que aquele diabo.” Irado, o anão aponta sua faca para Rubi. “E é por isso que não posso aceitar a existência de nenhum deles! Muito menos dos Lordes.”
Não adianta, não é? Gente como ele sempre vai aparecer. Eu devia logo dar um fim nisso, Rubi reflete, desiludida e profundamente irritada. A mão que segura sua adaga treme enquanto ela pondera. Não. Não vou entrar no jogo dele.
A demônio opta por se conter. “Eu já disse. Não quero lutar”, novamente ela adverte, mantendo sua postura firme e suas mãos quietas.
“Isso não vai ser uma luta. Vai ser uma execução!”, ele afirma e avança na direção de Rubi, como uma tempestade iminente, sua faca pronta para o ataque.
Zander, com uma agilidade discrepante do que se espera de um anão, desfere uma estocada. Rubi responde desviando o golpe com um movimento ascendente da adaga. As lâminas se tocam, emitindo um estalar agudo.
Rubi percebe o peso daquele golpe, não como o da pequena faca que ele segura, mas como se o anão estivesse atacando com um grande martelo de aço.
O anão continua, com outros dois cortes velozes de sua faca reluzente. Rubi interpõe ambos os cortes com sua arma usando um manejo ágil. A cada golpe que a demônio defende, ela sente-se tendo que empurrar, com a lâmina de sua adaga, uma rocha enorme.
Ao final da defesa, Rubi, mesmo desejando contra-atacar, relutantemente recua, designando-se um passo para trás e permanece atenta, aguardando o próximo ataque do anão. Não posso dar bobeira perto dele, ela analisa. Se eu agir de qualquer jeito, ele vai me atingir.
Godwick, à esquerda dos dois, faz menção de se juntar à briga, mas Silvana o impede, colocando a mão em seu ombro. Ele, confuso, olha para o amigo, que está fazendo um gesto negativo com a cabeça.
“Deixe-os se resolver”, Silvana alerta, em uma expressão tão séria que chega a ser quase impensável vê-la naquele homem.
Godwick, a contragosto, decide confiar no conselho de Silvana e fica observando.
O anão, aguardando por um contra-ataque, se surpreende quando Rubi recua. “Se você não vem, eu vou!”, ele exclama, quase rosnando, partindo, mais uma vez, com velocidade para o ataque.
Zander repete seu movimento e ataca com outra estocada, e Rubi, pela quarta vez, para com precisão o golpe do anão. Porém, agora, cheio de desprezo, ressentimento e ódio, o anão, ao invés de continuar o ataque, aproveita-se da proximidade e cospe no rosto da demônio. Em um gesto de menosprezo.
Sentindo a saliva quente do anão escorrer por sua face, algo muda no olhar contido de Rubi, como se alguma coisa dentro dela se quebrasse. Uma ideia simples vem à sua mente. Vou matá-lo, ela decide, em uma raiva fria, sem hesitar pela primeira vez.
Com um olhar assassino e profundamente ofendida, a demônio, em um ágil e espantosamente natural movimento, contra-ataca com sua adaga apontada para o pescoço do anão.
Em resposta a isso, a faca de Zander se envolve instantaneamente em um brilho dourado, e no último instante, o anão intercepta o golpe. O tilintar das lâminas ecoa pela sala conforme Zander se defende, mas, devido à força do ataque, ele ainda é empurrado com força brutal, seus pés deslizam no chão até ele se firmar, ainda sorrindo, na entrada da sala.
Ainda em uma postura de combate, o anão encara a demônio com um sorriso. “Essa foi quase. Nada mal… para alguém que não queria lutar”, provoca o anão, alegre. “Pode demorar algum tempo, mas é só provocar um pouco que eles sempre mostram as garras. E francamente, prefiro assim. Aquele seu olhar de coitada me irritava. ”
Por um breve momento, Rubi fica atônita ao perceber o que sente. A verdade do anão lhe atingindo com um soco no estômago. Ele… tem razão?, ela se pergunta, olhando para a adaga que segura com firmeza. Cada músculo dela treme, instintivamente almejando atacar aquele homem, freados apenas pela vontade de Rubi.
A demônio observa o anão sorrir, com um sentimento de vitória. Ele tem razão. Eu quis… Eu quero matá-lo. Tudo em mim diz isso. Que droga!, ela reflete, sentindo-se frustrada consigo mesma e com raiva de Zander.
O anão preparado apenas aguarda pela continuação da luta, sua faca afiada e brilhante, apontada na direção da demônio furiosa.
Rubi sente alguma familiaridade naquele sentimento. Já fiquei assim antes, várias vezes. Cogitei brevemente matar a Helga no começo, o Thalgrim e até o Silvana. Achei que não fossem ideias minhas, mas elas são. Talvez eu só nunca tenha ficado tão irritada. Isso quer dizer que… ela pensa, fragilizada, enquanto um olhar triste começa a tomar conta.
Zander ergue a sobrancelha, surpreso pela hesitação. “O que foi?”, ele pergunta, sua voz cheia de impaciência.
Ela afrouxa a adaga em sua mão. Foi mal, garotas. Pensei que era diferente. Achei que não fosse… um demônio por dentro. Só que eu queria muito ter acertado aquele golpe. Queria vê-lo sangrar como um porco que ele é, mas…, ela lamenta.
Ela fecha os olhos por um instante, respirando fundo. “Não vou. Não mais”, ela declara, tanto para si, quanto para o anão, adotando uma posição defensiva. “Prometi a alguém que evitaria criar um escândalo.”
Além disso, está trincada, a demônio constata, encarando a adaga. Ela é só uma adaga comum. Mais um ou dois golpes e ela quebra. Se eu for agora… não vai ter volta.
“Promessas? Veja o que você fez com esses homens! E com as garotas lá fora! Elas podem ser executadas por traição por sua causa.”, exclama Zander, indignado. “Acobertar demônios? Não posso permitir que você estrague a vida delas.” Ele ergue a mão que segura a faca e o brilho da lâmina aumenta drasticamente.
Rubi pensa reconhecer aquilo. Espera… ele não vai…?, ela se pergunta, incrédula.
O anão corta o ar à sua frente. Conforme a faca se move, deixa para trás um rastro de energia dourada que cria uma onda expansiva na direção do corte. A energia avança em alta velocidade, cortando o chão, os móveis e o teto em seu caminho.
Do lado de fora do prédio, a onda é visível, saindo por vários metros à frente, atraindo a atenção das pessoas na rua, que param para observar.
Dentro da sala, Rubi está parada ao lado da trilha criada pela onda. Sua perna esquerda está ferida com um corte.
Não consegui desviar. Aquilo era uma magia de maestria de alto nível, A demônio pensa olhando para a perna machucada. E essa ferida queima mais do que o fogo do Edric. Aquela faca tem algo diferente nela.
“Você está louco?!”, grita Godwick. “Usar uma magia daquelas aqui!?”
“Ah, isso vai sair caro”, Silvana reclama ao ver sua sala destruída. “Aquela mesa era novinha.”
“Venha, diabo. Vamos resolver isso logo”, Zander incita, confiante, preparado para uma investida ou que ela saque o arco que carrega nas costas.
A reunião foi um fracasso, fui humilhada, as pessoas que me ajudaram estão expostas e até o presente da Arielle está quebrado, Rubi pondera enquanto encara Zander bem nos olhos. Só tem um jeito de resolver as coisas sem ferrar o resto.
Com um rápido movimento, a demônio se joga pela fenda aberta na sala.
O sorriso do anão se desfaz na hora. “O quê?!”, ele questiona, incrédulo.
Zander vai atrás, mas antes de chegar à passagem, Godwick se interpõe na frente. “Você não vai estender essa luta pelas ruas da cidade”, ele afirma, decidido.
“Godwick, saia da frente. Prefere deixá-la solta com pessoas na rua?!”, grita o anão. “Ficou maluco?!”
“A não ser que alguém a ataque, ela não vai atacar ninguém na rua. Isso eu garanto”, pontua Silvana.
“Estou pondo a mão no fogo por você. Espero que você não queime a língua dessa vez, Silvana”, comenta Godwick.
“Seus ratos traidores!”, esbraveja o anão, se debatendo entre os braços do homem-lobo. “Se alguém lá fora se machucar, vocês…”
Do lado de fora, há pessoas na rua, atentas ao que acontece no prédio da guilda. Aqueles que olham para cima, veem algo saindo em meio a fumaça que escapa pelo buraco do terceiro andar.
Rubi, mesmo com a perna ferida, pousa sem problemas entre a multidão. Assim que a poeira baixa, as pessoas na rua notam que entre eles está um ser que possui uma auréola translúcida na cabeça e chifres.
“Um demônio!”, alguém na multidão exclama.
E logo, gritos de pânico começam a cortar o ar, ao mesmo tempo que a multidão recua como uma maré, cheia de olhares aterrorizados.
Rubi, apática aos berros e às pessoas que fogem dela, corre seus olhos pelos arredores.
Em meio à confusão, na frente da guilda, a demônio avista os dez guardas em prontidão, com armas sacadas para defender o prisioneiro, ao lado do vagão prisão. E na porta do prédio, ela observa as três garotas, confusas, sem entender o que está acontecendo.
Não era para ser, era?, ela se questiona, com um olhar abatido. E sem demora, Rubi parte correndo do centro da cidade.