Capítulo 019 – Maut Ka Mandir!
Próximo aos distritos noroeste do grande reino, o extenso e imponente coração assassino repousava. Maut Ka Mandir erguia-se como uma enorme fortaleza afastada de quase tudo que existia em Sihêon.
Dalila cruzou com dois de seus irmãos de katar enquanto virava a esquina para alcançar a sede da sua guilda, seus passos eram rápidos e ela os cumprimentou com certa pressa, pois temia que estivesse atrasada para a reunião que Anusha havia marcado mais cedo.
Este não era o líder assassino, tampouco o grande senhor de Maut, o maior título do santuário pertencia à Mudamir. Mas o mestre misterioso estava recluso. Anusha era o membro mais antigo, acabou herdando algumas responsabilidades enquanto o seu superior não dava as caras, figurativamente falando, já que tanto Mudamir quanto Anusha pertenciam à Pharid, portanto, utilizavam máscaras.
As pedras escuras levantavam, esculpindo as paredes. Esse templo era dedicado aos algozes, exibindo uma arquitetura que ditava uma influência das Terras Áridas1, fazendo com que o ambiente conseguisse transitar entre o sagrado e o assustador.
Diversos símbolos antigos adornavam intrinsecamente os portões altos de madeira maciça, era a grande entrada, protegendo o interior de diversos olhares curiosos. Ninguém além de um algoz tinha a permissão para adentrar o grande santuário, sob pena de morte.
A mulher da pele caramelo alcançou o centro do templo, consistia em um pátio aberto com diversas fontes de mármore negro de onde saía uma água cristalina que fluía constantemente para servir como meio de purificação de rostos e mãos daqueles que adentravam, de longe. O centro do templo era o local de encontro para todos os membros da guilda, acreditavam ser o ambiente mais puro para se ter qualquer natureza de reunião.
Havia diversos irmãos no local, inclusive lá estava Anusha, imponente com a sua postura perfeita, sua máscara mudava conforme seu humor. De qualquer forma, ele alternava entre porcelanas de raposa e lebre.
Alguns olharam na direção da mulher que havia acabado de entrar, mas não iriam dirigir a palavra à mesma enquanto ela estivesse com as impurezas da sociedade. Quando Dalila teve esse estalo, percebeu o que faltava para que pudesse ser definitivamente aceita à reunião.
Assim ela fez, a assassina se apoiou na borda de uma das fontes para poder se limpar da sujeira que trazia da rua. A borda das fontes era decorada com inscrições em sânscrito, lembravam trechos de rituais e ensinamentos que eram fielmente seguidos por todos os algozes. O som da corrente da água era tão suave, criava uma atmosfera serena, calma. Era um fator que contrastava com todo o aspecto sombrio do santuário.
— Agora podemos continuar. — alinhou o mascarado.
A voz dele era grave, mas baixa, como se expressasse sem se esforçar muito para propagar a mesma. A aparência da cerâmica de raposa tirava ainda mais a emoção dos discursos de Anusha, uma seriedade assustadora.
— Como sabem, com o fato de termos aceitado o financiamento do rei, que faz Maut Ka Mandir estar diretamente integrada à coroa, sua majestade Ayel nos entregou algumas condições que precisarei compartilhar com todos vocês.
Dalila sentou-se no piso de largos azulejos desenhados, como já havia feito a grande maioria de gatunos que constavam por lá, era um costume algoz muito conhecido. Todo o santuário era estritamente organizado e limpo, poderia se alimentar naquele chão. As Terras Áridas pregavam que todos os aspectos do seu lar precisavam ser igualmente tratados, isso ia da limpeza, à organização e até à forma como esses cômodos eram utilizados.
— A principal regra que ele propôs — Anusha continuava — É de que não poderemos mais cumprir contratos aqui, em Sihêon, fazendo com que nossos serviços dentro desse reino estejam permanentemente encerrados.
Contratos eram uma das formas que os algozes tinham para viver: consistia em receber um pagamento para ceifar uma vida. Claro que havia as suas ressalvas, o alvo precisava ser uma pessoa tão inescrupulosa a ponto de não poder mais ser ressocializada, um caso perdido, um doente. Alguém que agisse tão malignamente que sequer conseguiria sentir remorso. Essas criaturas eram os atacados pela guilda.
Desde Aiden os contratos do lado de dentro dos muros do reino haviam diminuído, não que estivessem escassos, mas o medo de uma regência bárbara impedia que grandes criminosos mostrassem suas faces. Muitos migraram para outras localidades.
— E os malignos daqui, senhor? Estarão a salvo? — indagou uma das assassinas.
— Não, pelo que pude entender, qualquer contrato que recebamos e o alvo seja um morador daqui, o rei precisa ser alertado, o que vai acontecer com esse criminoso se torna responsabilidade dele.
— E o pagamento por esse alvo, se não o expurgarmos, não será nosso. — Outro algoz ergueu a mão para dar esse comentário.
— Sua majestade Ayel cobrirá o preço. — Anusha mal mexia o seu rosto, parecia poder encarar todos no recinto sem movimentar o pescoço.
Com isso, silêncio reinara um pouco, e todos os algozes estavam divididos em como interpretaram a integração de Maut Ka Mandir, antes que a conversa pudesse prosseguir.
A atenção se voltou para um dos lados assim que um homem passou pelo arco que vinha dos corredores cobertos. Ele tinha o cabelo raspado e um tapa olho esquerdo. Desamarrou a sua katar do pulso e começou a prender ela na cintura, Lavish Solanki. Um algoz experiente.
— Vejo que já está pronto, Lavish — O algoz mascarado prosseguia. — Não se esqueça de levar a novata.
O representante de Mudamir apontou para uma mulher, que estava sentada no chão e prontamente se ergueu, tinha os cabelos longos, cacheados e loiros, que prendia para melhor mobilidade, seu rosto transparecia uma seriedade anormal, que se quebrou segundos depois, quando fez uma reverência para Lavish enquanto sorria amigavelmente. Aquela era Niyati Ma.
— Poderia confirmar a nossa busca, meu senhor? — Solanki era extremamente formal,
— Vila Thassar está há pelo menos oito horas ao norte de Pharid — aludiu o mascarado.
Lavish apenas concordou com a cabeça, entendendo que o restante viria da boca de Anusha após a sua pausa.
— Tem um homem que aparentemente gosta de assassinar senhoras, bem em específico. Mulheres de idade avançada. — O representante coça a garganta, andando pelo meio dos seus alunos. — A vila teme. Entende-se que seja realmente esse mesmo homem, pois é crível quando se analisa os casos anteriores. São mortes recorrentes e vêm de reclamações da vila Bramut, então ele está seguindo para o norte, talvez chegue até a Cidade Porto se não fizermos nada.
A Cidade Porto era o último ponto das terras, acima deles apenas os reinos do norte. Que precisaria de pelo menos cinco meses viajando em uma embarcação para alcançar.
— Temos a descrição de como pode ser esse homem? — destacou Niyati, seria o seu primeiro contrato.
O valor de um algoz ia muito de acordo com que tipo de contrato ele poderia resolver, iniciantes sempre saiam com assassinos mais experientes até conseguirem sair sozinhos.
Por diversas vezes, quando surgiam poucos trabalhos para uma guilda como Maut, o representante quem delegava seu executor. Por isso o status social dos assassinos interferia muito em praticamente tudo que eles desempenhavam, funcionava como uma moeda.
— Juntando todos os testemunhos — Anusha parou para observar a dupla que estava para sair — É um homem de cabelo castanho e alto, usa trajes em couro e tem um rosto deformado devido uma queimadura, Thassar tem a sua guarnição própria e escutei que estão caçando por um homem com essas descrições faça chuva ou faça sol, de qualquer forma, nós sabemos muito bem que quem quer se esconder de verdade, consegue. Façam as averiguações necessárias nesta vila para mim, se ele estiver lá, efetuem o contrato.
— Alguma prova para o contrato? — indagou o sombrio Solanki
As provas de contratos eram espólios mórbidos que os assassinos usurpavam para comprovar que uma vida foi retirada deste mundo. O contratante pedia geralmente por partes que pudesse reconhecer com precisão, confirmando que o assassinado era justamente quem queria que fosse. Orelhas, dedos e olhos eram mais comumente pedidos, não que isso significasse que os contratantes não pudessem ser mais criativos, pedindo braços, joelhos, órgãos genitais ou até mesmo internos.
— A cabeça, se possível. — O algoz ajeitou a sua máscara — Caso contrário, arranque apenas o pedaço da pele queimada do rosto, deve servir.
Dalila estava embasbacada, ela não era uma graduada tão antiga, tanto que nunca havia visto isso: um contrato sendo entregue. Seus olhos brilhavam com ela imaginando quando seria a sua vez.
Ela podia reparar o nervosismo vindo da Niyati, as duas tinham um consenso interno voltado para a admiração que existia para com Lavish. Nos minutos que sucederam, a algoz da pele caramelo encarava a dupla, se preparando para se retirar. Os dois foram para uma das fontes, limpar o rosto para esclarecer a mente e então partir.
Anusha encerrou a reunião, fazendo com que os seus discípulos se levantassem e dispersassem. Dalila levou um pouco a mais para poder se afastar, ela gostava de aprender por observação, evitava ao máximo fazer qualquer tipo de pergunta para não incomodar ninguém.
Solanki fez uma longa reverência voltada para Anusha
— Alvida, meu senhor.
— Alvida2. — Niyati prontamente imitou.
E ambos partiram então, sob a benção que a mão esquerda do mascarado simbolizava ao tocar em suas cabeças. Nenhum som de passo foi ecoado, por mais que o chão de Maut fosse sensível o suficiente para alertar qualquer pegada distribuída sobre si, um algoz sempre fora silencioso.