O Salão dos Poucos estava tranquilo e mal se ouvia algo além dos passos suaves das servas andando de um lado para o outro, trazendo ou levando as bandejas com o desjejum; mingau de aveia quente o bastante para queimar a língua e canecas de cerveja para molhar a garganta.
Siegfried levantou a cabeça e acompanhou com o olhar quando uma delas passou por ele, servindo duas tigelas.
Mas não era Brynna.
— Não é educado ficar secando outras garotas quando tem uma donzela bem do seu lado, sabia?! — repreendeu Dara, olhando para o rapaz com um rosto neutro, exceto pelas sobrancelhas franzidas.
— … Por que me chamou aqui?
Ela suspirou:
— É realmente uma pena que alguém com um rostinho tão bonito seja tão rude. Sinceramente, eu tô ficando até com vontade de dar uma na sua cara, agora.
— Hum, tá legal. Diga-me, nobre donzela, com quais puras, belas e doces intenções me trouxe até este adorável lugar?
Ela socou seu ombro, mas não sabia como fazer isso e ouviu-se um estalo, quando machucou os dedos. Então escondeu as mãos embaixo da mesa, junto ao colo, enquanto tentava disfarçar a dor que sentia.
— Cê tá bem?
— Cala boca!
Siegfried obedeceu e um silêncio constrangedor separou eles, até que Dara respirou fundo, reunindo toda a sua coragem e, com o rosto vermelho, confessou:
— E-eu só queria falar com você… — Então voltou a olhar para os próprios joelhos. — Eu já tô nesse lugar há um ano, talvez dois, não sei. A bem da verdade, parece até que nunca saí daqui. Não tem nada pra fazer. E o único garoto mais ou menos da minha idade é o meu irmão. Qual o problema de eu querer passar um tempo com você!?
Ele olhou para os guardas que passavam, vez ou outra lançando um olhar para o casal enquanto riam. Além deles, a única outra nobre que já se encontrava de pé era justamente Kethra Essel, a mãe de Dara; uma mulher jovem e sedutora de cabelos loiros, que brincava com uma taça de vinho enquanto conversava com alguns guardas.
Quando ela o viu, deu um sorriso que fez o seu coração disparar e o rapaz desviou o olhar.
— N-não sei se os seus pais iam gostar de ver a filha deles sentando no… sentada com um mercenário.
— Por que seu rosto tá vermelho?
— Por que o seu está?
— Porque eu tô abrindo meu coração aqui, idiota! — gritou, mesmo que isso a tenha deixado ainda mais envergonhada.
Os guardas e servos olharam o casal apenas por um breve momento, antes de voltarem aos seus assuntos. Mas desta vez Dara não desviou o rosto; estava vermelha como um tomate e o seu corpo tremia, mas se manteve firme.
— Quem se importa com o que meus pais pensam? Eles são uns idiotas.
— Ainda assim, são seus pais. Você carrega o nome deles. São do seu sangue.
— Humpf. Só até eu me casar, aí meu nome será o mesmo do meu marido e eles vão esquecer que eu existo. Se é que vou me casar. Não acho que meu pai esteja se saindo muito bem nisso. Se é que tá tentando. Já tenho dezesseis e ainda não estou nem noiva, e nem acho que vou ficar, se depender dele. Tá obcecado demais com a própria herança pra pensar em mim.
Quando viu o olhar confuso em seu rosto, ela sorriu:
— Droga, por que você tem que ficar tão fofo com essa cara? Aham. De qualquer forma. Meu pai não dá a mínima pro que eu faço, vai por mim. Ele tá ocupado demais com Dorian, o seu herdeiro fracassado. E minha mãe… — Ela olhou para Kethra, que ria e bebia com vontade, em outra mesa, cercada por guardas mais jovens. — Bem, ela está ocupada com… Outras coisas. Então, é. Eu acho que nenhum deles vai se importar se eu quiser sair com o escudeiro do conde.
A mão dela encontrou a sua por debaixo da mesa.
— Mas meu irmão vai querer te matar. — Sorriu. — Não que isso importe. Ele já queria te matar de qualquer jeito. Cê sabe, por causa do lance de você ter desfigurado ele e tal. Ah! Opa, é mesmo. Esqueci. Foram os rebeldes, né? Isso. Agora eu lembrei. Sinto muito, finge que não ouviu isso, tá? Eu não faço ideia do porquê aquele idiota quer te matar.
— Você não liga que eu quase matei seu irmão?
— Não foi nada que eu já não quisesse ter feito. Aquele moleque é um metido. Ei, olha pra mim, eu sou o herdeiro de um segundo filho. Não tenho direito a nada, mas a minhoquinha no meio das minhas pernas diz que sou importante. Uhu!
— …
“Será que é normal todas as famílias nobres se odiarem?”
O próprio conde não confiava em ninguém sob seu teto. Nem mesmo na própria esposa.
Eradan estava em busca de vingança pela morte de seu pai, mas mesmo isso era, provavelmente, uma desculpa para tomar de volta suas terras. Afinal, se ele realmente se importava com a sua família, então por que nunca disse nada sobre a sua irmã? Que estava casada com o herdeiro do conde.
— Eu posso sentar com quem eu quiser — disse Dara, confiante, até que as portas do salão foram abertas e o seu rosto ficou pálido.
A garota soltou sua mão, se ajeitou na cadeira e permaneceu de cabeça baixa enquanto seu pai cruzava o salão a passos largos, trajando um sobretudo negro e portando uma espada de aço com o cabo ornamentado na forma de uma cruz.
— B-bom dia, pai… — sussurrou a garota, mas ele passou direto, sem se prestar a lhe dar sequer um olhar de relance.
Como em um piscar de olhos, os guardas que flertavam com sua esposa desapareceram. Kethra, por outro lado, permaneceu impassível, bebericando seu vinho. Nem ela, tão pouco seu marido, deu atenção um ao outro.
Até que finalmente chegou ao seu objetivo.
Estava longe demais para ver com quem falava, mas podia adivinhar.
Dorian se levantou de um salto, o rosto cansado e mal sendo capaz de manter o seu olho bom aberto. Apesar disso, sua postura era rígida, tal como um soldado em forma, sendo inspecionado pelo seu comandante.
Depois de alguns instantes, os dois se dirigiram à saída, mas desta vez olharam para Siegfried.
Kellen com uma expressão fria e altiva que poderia ter sido esculpida em pedra; e Dorian como se fosse conduzido para a forca e a sua última visão fosse para o homem que o pôs lá.
Quando os dois saíram, o salão voltou a respirar aliviado.
Até mesmo a mãe de Dara parecia ter começado a tremer depois que o seu marido saiu, como se não precisasse mais manter a compostura. Notou isso quando ela desistiu de levar uma nova taça de vinho à boca, derramando um pouco no seu vestido.
— É, dá pra ver que você não liga pro seu pai, ein — brincou.
A garota olhou para ele, o rosto vermelho suado, enquanto agarrava o próprio peito, como se temesse que o coração pulasse para fora a qualquer momento:
— C-cala boca!