A conversa com o atendente havia deixado ambos em alerta. Aquela forma como ele se referia aos “Iluminados” e “Elevados” soava estranhamente venerada.
Eles saíram do barzinho e começaram a caminhar pela rua em direção à praça mencionada pelo atendente. O olhar de Koji estava levemente perdido, pois sua mente encontrava-se ocupada.
— Não é incomum que portadores sejam tratados como figuras quase divinas por humanos que estejam sob seu controle, mas ainda assim, a ideia de estar no meio de uma cidade aparentemente pacata, sem sentir a presença de outros portadores, é inquietante — pensou ele.
Apesar das perguntas sem respostas, a cidade parecia comum, com pessoas andando tranquilamente pelas calçadas, carros passando devagar e crianças brincando em frente a algumas lojas.
— Tá estranho — Saik comentou em um tom baixo — Não sinto a energia de outro portador, apenas a da onda.
— Talvez o portador por trás disso tenha alguma técnica para esconder a própria energia. Pode ser que ele esteja se ocultando da gente, de propósito.
— Tem grandes chances de ser exatamente isso. Se for esse o caso, estamos lidando com alguém complicado.
Eles atravessaram uma avenida movimentada junto com a multidão, até chegarem à praça.
— Nunca vi tanta criança concentrada em um único lugar como agora — Koji pensou, com as sobrancelhas levantadas, e os lábios comprimidos em uma linha fina que se torcia ligeiramente para o lado
— Acho que já sei onde tá o senhor que o bartender recomendou — disse Saik, interrompendo os pensamentos de Koji.
— Aonde tá?
Saik apontou discretamente com o dedo indicativo da mão direita na direção de um homem idoso, sentado num banco à sombra, usando um chapéu de palha e óculos escuros.
— Olha ali, o cara tá praticamente gritando “eu sou um historiador local”.
— Tsc… Não brinca que foi só por isso que você achou que ele é o Juan.
— Às vezes, é só uma questão de intuição.
Eles se aproximaram do homem, que levantou os olhos por trás dos óculos escuros ao perceber a aproximação dos dois. Tentando ser amigável, Koji levantou a mão em um aceno.
— Olá, senhor… Por acaso, o senhor se chama Juan?
— Sim, Quem são vocês? São turistas?
Eles se olharam, e o senhor repentinamente levantou, ajeitando o chapéu na cabeça enquanto olhava para os dois de cima a baixo.
— Posso ser o guia de vocês aqui, eu conheço tudo e todos nessa cidade, o que acham? — ofereceu, com um sorriso que misturava experiência e simpatia.
Saik apenas olhou para Koji e acenou positivamente com a cabeça. Koji entendeu o gesto e se voltou para Juan com um sorriso no rosto.
— Claro que queremos! Podemos começar agora?
— Só se for agora! Mas vamos logo que esse sol vai nos matar!
Enquanto os três caminhavam pela rua do Centro Cultural de Primavera do Leste, o senhor contava a história da cidade.
— Vocês sabiam que na década de 1960, esta cidade se chamava Bela Vista das Placas? A modificação para o nome Primavera do Leste aconteceu em 26 de setembro de 1979, e foi com a ajuda de um homem chamado Edgard Cosentino, um pioneiro que foi responsável por criar o projeto urbano na região.
— Essa cidade cresceu como nunca, e já em 1981, foi elevada à categoria de distrito, ainda pertencente ao município de Poxoréo. Ainda com o objetivo de se emancipar e conquistar sua independência política.
Apesar de atentos às pessoas ao redor, Koji e Saik estavam minimamente escutando o que dizia Juan, o que não significa que eles estavam realmente ouvindo e absorvendo algo. E mesmo com os olhos preocupados em averiguar a cidade, Koji disse ao senhor.
— Então, Primavera do Leste quase foi outra coisa?
— Exatamente. Vislumbrando um futuro promissor, um grupo de vinte e seis pioneiros, unidos em 24 de agosto de 1984, criou a Comissão Pró-Emancipação do distrito. Eles escolheram Darnes Egydio Cerutti para presidi-la. A primeira sugestão da comissão foi chamar o novo município de Primavera D’Oeste. Mas a Assembleia Legislativa Estadual rejeitou o nome, dizendo que estava incorreto geograficamente.
Saik aproximou-se muito de Koji e perguntou baixinho.
— É sério que tá ouvindo essa história?
— Ah, eu gosto de ouvir… história… cidade… — disse Koji, pausadamente e com certa relutância.
— Eu não achei isso muito convincente.
— Senhor Juan — Saik interrompeu a narrativa do guia em um ponto — O senhor mencionou que conhece todos aqui, certo? Isso inclui… todos mesmo?
Juan parou por um momento, olhando para Saik com uma expressão cautelosa e digamos que curiosa.
— Claro, rapaz. Conheço cada um dos que moram por aqui. Se tem alguém que eu não conheça, não mora na cidade.
— Eu e meu amigo aqui conhecemos um rapaz, na verdade era um bartender.
— Bar o quê, rapaz? — o senhor meio que se assustou com a palavra.
— Ele era o atendente do barzinho que visitamos aqui na cidade. Ele mencionou os “Iluminados, Elevados e Justos”. Esses caras também fazem parte dessa cidade, não é? — Koji perguntou, entrando na conversa.
O olhar do senhor Juan brilhou por um instante, ele ficou feliz após os “Iluminados” serem citados e respondeu o questionamento do Koji.
— Ah, os Iluminados… sim, claro. Eles são… especiais. Mas são nossos. Todos aqui têm um papel a desempenhar. Eles têm o deles. E nós, o nosso.
Nesse momento, os olhos de Saik se encheram de surpresa e ele se inclinou para Koji, sussurrando.
— Koji, tem algum portador por perto, eu tô sentindo.
— Então fica atento que eu cuido do-
Ah! Ah! Ah!
— Juan? — Koji olhou para o senhor, e Saik igualmente — O que tá acontecendo?
De repente, o senhor Juan começou a gemer de dor.
Ah! Ah!
A boca dele se abriu, e sangue começou a sair de forma profusa. Koji e Saik se entreolharam, confusos, enquanto o pescoço de Juan jorrava sangue, criando uma cena horrível.
— Como isso aconteceu, Saik?
— Nada encostou nele. Eu tô sentindo a energia do portador, mas nada muito próximo a ponto de fazer isso com ele.
Em questão de segundos, a cabeça de Juan foi decepada brutalmente.
Koji olhou ao redor, atônito. A praça estava cheia de pessoas que continuavam sua rotina como se nada estivesse acontecendo. As pessoas conversavam, riam e caminhavam, sem demonstrar qualquer reação ao caos que acabara de acontecer.
— Por que eles não estão vendo? Eles não estão vendo? — Koji questionou com a voz confusa, enquanto o sangue de Juan se espalhava pelo chão.
Saik observava a cena com a mesma perplexidade e respondeu.
— Eles com certeza estão em transe. Não têm ideia do que está acontecendo ao redor deles.
De repente, uma risada alta e maldosa ecoou pelo ambiente.
“Hahaha!”
Um homem com um sorriso sádico, que parecia ter saído do nada, apareceu e se aproximou. Ele esfregava as mãos, claramente satisfeito.
— Hahaha! Ele não era chato pra caralho? Nossa, eu precisava matar esse velho! — falou o homem desconhecido.
A tranquilidade que encobria a cidade estava prestes a acabar.