Aviso: Conto Cósmico I
Para melhor compreensão, leia na seguinte ordem:
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Ou, se preferir, sinta-se à vontade para pular diretamente para a parte que desejar.
Em um tempo remoto, quando os nobres se escondiam em castelos fortificados por mil guardas, aterrorizados pela plebe que perecia dia após dia, ceifada pela fome, uma cena cósmica se desenrolava.
Três vultos rasgavam o vácuo entre as ilhas flutuantes do espaço. Errantes em terras tão longínquas de Crea que nem em bilhões de ciclos alguém ali pisaria.
Dois deles brilhavam como os raios de luz da Aurora, com uma intensidade etérea que iluminava a vastidão sombria do cosmos, enquanto o terceiro, perseguido, estava envolto em uma escuridão tão profunda e opressiva que parecia a encarnação das próprias trevas, cercado por chamas negras.
— Maldito demônio! — ressoava a voz de um dos perseguidores, um ser celestial de quatro asas majestosas, adornado com anéis de ouro divino, forjados pelos ferreiros celestes de Caelestia, o reino dos seres de luz. Seus pés eram protegidos por botas imortais, com asas em seus calcanhares, e um cinto de ouro cintilava em seu chitom, celestial. — Pagarás caro por ceifar a vida do nosso irmão! — A luz que o cercava ondulava seus cabelos loiros e brilhava em seus olhos cor de mel.
O eco do grito celestial reverberava pelo vazio, como um trovão cósmico, enquanto a aura do ser celestial brilhava intensamente, iluminando a escuridão ao redor.
A tensão e a fúria eram como chamas inextinguíveis, prontas para consumir qualquer vestígio de resistência.
— Uriel! Brandes tua arma divina! — gritou a outra, uma anja de figura feminina, cujas armaduras brilhavam intensamente desde o busto até a cintura, e cuja saia se erguia audaciosamente até a altura das coxas. Com quatro asas majestosas, cabelos dourados que caíam até a metade das costas e olhos azul-celeste ardendo com intensidade, ela clamava com uma urgência desesperada.
Como falavam no vácuo? Suas características astrais transcendiam as leis do físico e do espaço, permitindo-lhes comunicar-se sem restrições.
— Deveriam valorizar suas vidas!
Berrou Bezeel, triunfante e com um sorriso de escárnio, enquanto cortava o vácuo com suas asas negras, envoltas em trevas ardentes. Sua armadura, com a pele negra endurecida, estava estilhaçada e em ruínas, e o líquido roxo escorria de seus lábios, dando a impressão de que a vida lhe escapava, ou assim parecia para seus perseguidores.
Esse “estado” era um reflexo da recente destruição de um dos anjos que ele mesmo havia assassinado. Agora, ele “fugia” carregando o peso do pecado, ou talvez buscando esse sentimento, enquanto se perdia em mais um ato trágico do teatro de sua vida.
Assim como o anjo caído, um rei das trevas, ambos os seres celestes pertenciam a uma alta estirpe, conhecidos como governadores das virtudes.
Quando “tentou” se afastar, impulsionando suas asas para rasgar o espaço com mais velocidade, um laço reluzente agarrou seu pé após serpentear sua canela.
Mas não foi suficiente… como ele havia desejado, sendo lançado em um jogo que ele mesmo havia escolhido!
Feito da própria luz do ser, ele estava preso ao braço do anjo que o havia capturado; essa era sua arma divina, o Himmlisches. Sem piedade, Uriel o lançou para baixo, ou talvez para cima, ou ainda para o lado, fazendo-o perder o controle e arremessando-o contra uma das muitas ilhas flutuantes.
O impacto quase partiu o lugar em dois, erguendo quilômetros de poeira e reverberando um eco inaudível que abalou os mundos. Esse eco, quase o fez tontear, era a demonstração de força do ser celeste, capaz de carregar mundos em suas costas.
— Grr!
Ele sentiu seus sentidos se apagando, sua consciência sucumbindo à exaustão, um vício crescente que o dominava. Contudo, uma luz no fim do túnel oferecia esperança, cortando o efeito da dopamina que o enchia de prazer. Sentia-se mais capaz, recuperado do veneno que havia ingerido, e a imensa carga de luz que suportou ao roubar a essência de sua vítima parecia despir sua existência.
— Que… grande merda!
Bezeel agarrou-se ao terreno árido e desolado ao seu redor, onde uma cratera do tamanho de uma cidade se formara.
O cenário se tornava cada vez mais claro para os dois, à medida que a poeira se dissipava, revelando vigilantes e sentinelas ao redor.
Ele cuspiu mais sangue, lutando para se erguer.
— Selaphiel? — proferiu o anjo, dirigindo seu olhar à companheira, que de sua auréola, acima de sua cabeça, extraía uma espada resplandecente.
Essas armas divinas eram conhecidas como as “almas dos anjos”, essências internas tecidas a partir de seus sentimentos mais profundos, materializadas nas próprias armas que empunhavam.
— Tomarei a Klinge para o exorcismo; estás preparado!? — Empunhando a arma divina, aguardou a confirmação dele, ao recebê-la, lançou-se na direção de seu alvo.
Ela cortou o ar com uma velocidade estonteante, separando os milhares de quilômetros abaixo de seus pés e fazendo a ilha tremer com um segundo terremoto. Sua lâmina podia rasgar o próprio espaço, encurtando distâncias e desintegrando tudo o que se encontrava à sua frente.
— Generositas! — entoou Uriel enquanto ela já pousava, um raio de luz a atingiu e a fortaleceu instantaneamente, ativando sua benção derivada de sua virtude, a generosidade. Isso concedeu mais poder à sua aliada, que erguia seu peito com a força de uma gladiadora, enquanto o demônio a encarava com certa raiva.
E, apesar de sua força e soberania, Bezeel estava à mercê das limitações de sua mente durante o combate, uma falha de eloquência que sempre o traía, um vício nos momentos críticos.
— Não cansam? Seus pombos de merda! Eu deveria ter matado todos quanto tive a chance! — indagou ele, erguendo-se, com seus cabelos longos caindo quase até os pés. — Vai me enfrentar sozinha, é?
— Pensais que sou tola? Conheço bem a vossa dádiva do abismo, que agora se mostra ineficaz… Foste imprudente ao roubar a essência de Remiel; isso praticamente vos destruiu! — replicou ela, avançando com rapidez. Em um instante, sua espada raspou em seu pescoço, mas ela não cessou, girando no ar com leveza, golpeando-o com os pés e arremessando-o para longe. — Sois demasiado ingênuos para subestimar-nos!
— Maldição… Você é uma vadia experta!
Após se chocar contra uma das montanhas que pontilhavam o deserto, Bezeel proferiu um grito de dor, levantando uma nuvem de poeira espessa. Dela, emergiram inúmeros disparos negros, semelhantes a espinhos explosivos, que se lançavam contra a anjo.
No entanto, com facilidade, ela bloqueou o ataque usando sua lâmina reluzente.
“Hahahaha! Boa! Essa vadia não caiu para um simples movimento de trevas!”
Ela mal sentia o impacto, dissipando os ataques com facilidade. Mas energia negra do demônio tornava-se cada vez mais instável.
— Não ultrapassarás a integridade de meu ser! — respondeu ela, balançando sua alma e lançando um corte brutal. O golpe se manifestou como uma ventania, cortando inúmeras ilhas ao redor com uma devastação imensa, rompendo objetos cósmicos com eficiência. Tal era o poder de um anjo. — Avançai!
Quando gritou, ela afiou seu olhar. Bezeel havia sido praticamente atravessado; seu abdômen estava por um fio, faltando centímetros para ser partido ao meio, e sua aura negra não o regenerava a tempo.
Não era seu fim, pois exorcizar uma entidade de tal magnitude era um feito reservado apenas àqueles capazes de abalar o próprio mundo.
O púrpura vazava enquanto ele tentava formar um golpe de trevas com a mão trêmula; não era medo, mas alegria.
Então, o laço agarrou sua mão direita, e o anjo, com uma força descomunal, arrancou-lhe o braço de imediato após puxar. Uriel, o mais poderoso em força física entre os anjos, brandia esse laço cuja corda era tão afiada quanto uma lâmina.
— Arrepende-te de teus pecados! — indagou bravamente. — Ou cairás sem sequer ter a chance de te arrepender!
Foi no mesmo instante que a anjo avançou, cortando seu outro braço com um golpe vertical e o enterrando na montanha com um chute.
— Arrepende-te! Ou… serão seis reis do inferno!
Ela bradou a espada com um grito feroz, a lâmina aquecida a um nível quase insuportável, fazendo-o sentir o calor abrasador contra seu pescoço. Ao redor deles, seu braço esquerdo estava imerso em um mar púrpura que se formava ao seu redor, uma substância viscosa e corrupta que sujava os pés da adversária.
A carne decepada ainda fervia, marcada pelo golpe luminescente, uma chama centenas de vezes mais quente do que qualquer brilho da Aurora.
— Hahaha! — ele riu, com o sangue jorrando de sua garganta a cada gargalhada amarga. — Acha mesmo que eu faria isso? Vocês são tão hilários! — Sua voz tremia, entrecortada por uma dor que mal conseguia esconder, ou talvez quisesse deixar propositalmente evidente.
Afinal, tudo aquilo era um teatro, ou não?
Enquanto ele zombava, ela moveu a lâmina com uma precisão letal, girando-a de horizontal a vertical com um movimento decidido. A espada cortou através de sua carne e ossos, rasgando-o de cima para baixo com uma brutalidade implacável. O corpo se partiu ao meio, o pescoço se transformando em uma carnificina, enquanto o sangue escorria, misturando-se com o líquido púrpura que invadia o chão.
Foi um ato de brutalidade extrema, mas a morte de Bezeel, o astuto e mais asqueroso dos demônios, não se daria ali.
Entre os sete, ele era o mestre da subversão, um estrategista cruel que se alimentava do desespero. Sua essência, uma ameaça persistente, estava longe de ser extinta, sempre pronta para manipular e enganar, mesmo na face da destruição.
Por isso, ele era vítima de sua própria eloquência, acreditando ser imortal quando, na verdade, não o era.
— Maldito seja! O fim que lhe foi destinado, recebeu, e é justo!
Esse seria o instante de glória do anjo, se não sentisse tudo ao redor tremer. Sua aura, como um radar, conseguia detectar mudanças mesmo a centenas de anos-luz de distância.
— Será outro a enfrentar o destino que lhe foi reservado? — Uriel perguntou, sentindo um fluxo frio e inesperado de sangue azul escorrer de seus lábios. Ele olhou para o próprio peito, perplexo, e viu uma mão pálida, com garras afiadas, atravessando o lado direito de seu corpo. O golpe havia sido tão rápido e inesperado que ele mal teve tempo para reagir.
O demônio apareceu repentinamente por trás, nu e desprovido de qualquer vestimenta, mas perfeitamente intacto.
A presença do ser das trevas era mais opressiva que antes, como um peso esmagador que parecia drenar a energia do ambiente. E seu sangue azul continuava a escorrer de Uriel, manchando o chão com um brilho sinistro. Ele lutava para entender o que havia acontecido, sua visão embaçada pela dor e pela surpresa.
No entanto, ele sabia que o fio da morte ainda não o alcançaria.
Em um momento rápido, o anjo agarrou o braço da entidade com uma força titânica. Suas veias saltavam, pulsando sob o imenso esforço de manter a entidade contida.
— Se eu fosse humano, se possuísse um coração, poderia compreender o pesar e o dilema que agora me aflige — a voz de Uriel transbordava frustração e ira. — Mas tu és demasiadamente insensato!
— É? — respondeu com um tom zombeteiro. E antes que pudesse reagir, uma lâmina cortou o espaço em um piscar de olhos, atravessando seu abdômen. A anja havia se movido com uma velocidade fulminante, perfurando seu aliado para atingir a entidade com um golpe mais concentrado. Apesar da ferida, o ser da luz não sofreu dano, protegido pela lei de Lúcis que proíbe qualquer irmão de ferir outro. — Vocês são bem divertidos! — A entidade riu, a voz reverberando com um eco maligno, enquanto sangue escorria de seus lábios.
— O calor dela é do teu agrado? — resmungou a anja, com determinação inflamando seu ser. — Não importa quão vastas sejam suas trevas, tu hás de sucumbir até alcançar a eternidade em tormento! Eu assim o assegurarei!
Para escapar, o demônio cortou uma parte de seu próprio braço com um movimento selvagem, espalhando sangue. Ele se impulsionou para trás, concentrando uma energia negra destrutiva nos dedos, novamente. Contudo, antes que pudesse lançar seu ataque, Uriel interveio com rapidez sobre-humana. Erguendo a mão, ele conjurou um feixe de luz tão intenso que fez a escuridão recuar, iluminando o campo de batalha com uma clareza quase cegante.
Logo atrás dele, a anja avançou com uma fúria celestial, sua lâmina cortando o ar com precisão mortal. Cada golpe era um furor de luz, transformando tudo ao redor em poeira brilhante. A intensidade dos cortes era tão feroz que a própria realidade parecia desintegrar-se sob o impacto. E Bezeel, agora açoitado e praticamente desmembrado, flutuava com a respiração ofegante e o corpo em frangalhos.
A ilha finalmente virou pó.
Fragmentos de sua essência pairavam ao redor, desintegrando-se em um espaço que agora parecia um vórtice de luz e escuridão desfeita.
Ela havia aniquilado incontáveis mundos com seu poder devastador, deixando um vazio absoluto em meio a trilhões de anos-luz, onde apenas ilhas flutuantes e destroços cósmicos vagavam na escuridão eterna.
Mesmo nesse estado quase irreconhecível, mutilado e desfigurado, com uma das pernas arrancadas e fragmentos de seu corpo dispersos como ossos de um titã em ruínas, ele ainda resmungava, rodeado por uma aura negra que parecia se alimentar da própria fúria. As trevas em suas mãos se contorciam como serpentes sedentas por mais caos, tentando expandir sua influência.
No entanto, o laço de Uriel envolveu-o novamente, desde a altura dos ombros até a cintura, como se fosse uma prisão de sombras tecidas por um destino infeliz.
Esses laços, uma manifestação de uma luz implacável, pareciam absorver toda a escuridão ao seu redor. Juntos, formavam uma dualidade imparável, onde um era a força bruta, uma tempestade de destruição, e o outro, um confinamento imutável, uma cadeia interminável.
— Isso vai ser eterno! — A voz de Uriel ressoava, imersa em uma frieza implacável e uma inquietação, como um clamor final à morte do demônio.
— É… considere isso como uma vingança prolongada! — ela resmungou, com um tom abrasador e satisfeito, como se desfrutasse do tormento que infligiam. — Uma punição merecida para esse verme repulsivo!
Este era apenas um dos muitos momentos em que alguém se esforçava para conter a fera dos demônios, aquela cuja fome insaciável podia devorar tudo o que existia. O verme, com seus olhos de abismo e desejos insatisfeitos, se alimentava da desesperança, espalhando trevas e ruínas por onde passava. As correntes de Uriel, entrelaçadas com a essência da noite eterna, buscavam impor uma prisão tão interminável quanto a escuridão que envolvia o mundo, mantendo-o encurralado em um tormento sem fim.
Ele não testemunhou seu próprio fim, mas reconheceu neles adversários que transcenderam a condição de meros peões.