Tédio… define o estado de Yami assim que seus olhos se abrem, como se a escuridão ainda tentasse abraçá-lo de volta ao sono. O quarto é um caos de reflexos sombrios, e a luz fraca que filtra pela janela suja, que a passagens ele não se preocupa em limpar.
Determinando-se a terminar seu sono, ele se move automaticamente, como um fantasma aprisionado em sua rotina, libertando-se gradualmente. Come sem saborear o gosto da comida, aborrece-se ao ver a cozinha desordenada e toma seus remédios, sem verificar a validade há muito tempo. Eles já não fazem efeito, mas ele continua a tomá-los, como um ritual vazio… sem esperança de alívio, apenas a certeza de que estará são, ou quase, no dia de seu juízo.
O banho que ele toma é um evento raro, algo que só ocorre após uma missão ou outra, quando o suor e a sujeira se tornam insuportáveis até mesmo para ele. A água morna escorre, tentando lavar a apatia que o consome, mas nunca é o suficiente.
Sem hesitar, Yami veste seu velho sobretudo preto, pesado e desgastado pelo tempo, cobrindo uma blusa cinza e uma calça preta, meio rasgada nos joelhos. Ele mal presta atenção ao que veste, o traje sombrio é comum demais, até ser interrompido por um resmungo familiar.
— Wow! — Azaael surge repentinamente de seus pontos cegos, observando-o com um olhar crítico. — Você está tão… cafona, cara!
— Quem? — Yami ergue uma sobrancelha, seu tom indiferente.
— Hã?
— Te perguntei, porra! — responde já irritado, soltando um suspiro pesado. Ao se ver refletido na tela quebrada da TV, ou no que restou dela, ele percebe o estado deplorável do reflexo: a cara fechada, incapaz de dar um sorriso sincero, e aquele estilo que ele mantém desde os 15 anos. — Estava a fim de aproveitar o dia… Já que a chatinha não vem me importunar e o loirinho está de luto… — murmura, com um raro alívio na voz arrastada.
— Que infeliz… — Azaael cruza os braços e se encosta na parede, o olhar fixo no corredor, de costas para Yami. — Você está de luto há nove anos e está aliviado com o do cara?
— Se sentiu incomodado, foi? Está de TPM!? — Yami se vira lentamente, franzindo a testa em uma expressão desdenhosa. — Ou está incomodado pela minha resposta agora… hein?
— Talvez os dois… — O demônio afia o olhar, como se fizesse questão de intensificar a provocação. — Sério, o que você vai fazer vestido assim e com esse papo de diferente, hein? Espantar crianças? Assaltar uns velhinhos? Chutar umas velhas?
— Ha! Há! — Yami gargalha secamente, alcançando sua chave em uma mesa coberta de pratos sujos, taças de vinho pela metade e talheres desorganizados. — Vou ver o mar… assistir a um show de Resonant Stones, ou quem sabe… uma partida de golfe?
— Stones? Hum… se for algo romântico, legal. Mas… terá que chamar a Cabelos de Fogo. — Azaael lança um olhar de canto, tentando cutucar Yami com suas palavras, como se lançasse uma maldição.
E, como se suas palavras fossem proféticas, a campainha ecoa pelo apartamento, invadindo cada canto com um som metálico.
Aquele tormento… se não fosse o síndico chato, ele já teria detonado a campainha…
— Yami? Tá aí? — A voz que segue é tão familiar que ele cerra os punhos, rangendo os dentes em irritação ao olhar para o demônio.
— Falando nela — Com uma expressão de exasperação, ele caminha em direção à porta e a abre, sem disfarçar o desagrado que tinge seu rosto.
— Ah, oi… que cara é essa, hein? — Amai está diante dele, com uma jaqueta biker de couro napa e uma minissaia adornada com franjas metálicas que balançam suavemente ao vento. Ela sustenta o olhar confuso.
— Nada não, Amai… mas fala logo, o que você quer?
— E-eu… — Ela desvia o olhar para o ombro de Yami, como se procurasse palavras que não encontra. — Queria te chamar para irmos consolar o Arthur, a…
— A namorada dele morreu… é isso? — Yami dá de ombros, indiferente.
— É, o que você acha?
— Sei lá, ele deve querer ficar sozinho, não? — Yami fecha a porta, ficando cara a cara com a garota, forçando-a a recuar dois passos — Ele não parece do tipo que quer ser consolado!
— Todos somos! Ninguém é de ferro! — Amai afirma, com o olhar determinado.
— Fale por você… eu não sou. E aposto que ele também não é. — Tirando a chave do carro do bolso, ele a encara por um momento, refletindo sobre suas palavras. — Mas você não vai me deixar em paz até irmos lá, vai?
— Ele é nosso colega, né? Babacão! — Amai ri, quebrando o clima pesado, e dá um leve tapa no peito de Yami, rindo até perder o fôlego. — Foi mal, senhor frio e calculista!
— Você é tão emocionada — Yami suspira, cruzando os braços. — Enfim, podemos passar lá… mas tem que ser breve, certo? — O tom é sério, tentando evitar que Amai se empolgue demais.
— Hm… breve? — Ela ergue uma sobrancelha, sua curiosidade evidente enquanto o olha, tentando ler sua mente. — Tá, você está ocupado, né?
— É, estava com planos para hoje — admite, com a voz mais contida, como se quisesse disfarçar uma certa vulnerabilidade. — Sei lá, queria me distanciar um pouco dessa rotina, você deve fazer isso, não?
— Ah, é… às vezes tenho tempo para isso, viver um pouco. Mas, sabe, não é como se minha vida fosse chata. Pelo menos, não para mim! — Ela dá um leve sorriso antes de se virar para o corredor. — Estranho que você, Yamasaki, tenha uma presença tão… enigmática, sabia?
— Do que você está falando? — Ele franze a testa, sem entender onde ela quer chegar.
— Você sabe… é bem sombrio. Carrega uma aura tão fria… Acho que é por isso que estou viciada em andar contigo. Gosto de como você é esquisito! — Seus olhares se cruzam por um momento antes que ela desvie o olhar, rindo timidamente enquanto avança, seus passos travessos ecoando no corredor. — Bem, chega de papo, vamos? — Ela corre em direção ao elevador, com um brilho inegável nos olhos, uma chama que parece queimar só para ele.
“Isso foi um elogio ou um ataque?”
Yami se pergunta, enquanto seus punhos afundam nos bolsos da jaqueta.
— Garota irritante… — murmura para si, quase esboçando um sorriso de lado.
É curioso como, sutilmente, Amai sempre acaba trazendo um lampejo de algo que ele não consegue identificar. E lá estão, juntos novamente. Uma rotina que, mesmo sem querer, ele já começa a aceitar.
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