O dia do ataque finalmente havia passado. O sangue e as lágrimas derramados pelo povo de Lyberion estavam cedendo lugar a preces de agradecimento e sorrisos gratos por verem mais um nascer do sol. A população ainda tinha dúvidas e incertezas sobre o que havia ocorrido, mas depositavam cada gota de esperança no trabalho do capitão da guarda e da família real para resolver o problema.
Já o príncipe Cassian tinha outras preocupações. Após uma noite mal dormida, ele se preparava para ir à sala do trono para sua refeição. Não fazia ideia de que horas eram, então não sabia se era hora do café da manhã ou do almoço. Sabia que Marco e Any estariam esperando do outro lado da porta para escoltá-lo, então nem se preocupou em trocar o pijama quadriculado vermelho e branco.
O quarto de Helick ficava ao lado do de Cassian e, quando o príncipe herdeiro abriu a porta, viu dois soldados guardando a porta de Helick, assim como Any e Marco já aguardavam diante da sua.
— Tály, Redgar? — perguntou Cassian, surpreso.
Helick abriu a porta de seu quarto, usando um pijama listrado azul e branco.
— Bom dia, pessoal — cumprimentou Helick, bocejando. — Que horas são, hein?
Os quatro guardas fizeram uma breve reverência aos príncipes.
— São dez e meia da manhã, príncipe Helick — respondeu Marco.
— Ei, sobrou pra você também, Helys? — perguntou Cassian.
— O quê? — questionou Helick, sem entender muito bem. — A escolta? Ah, sim. O reino está em alerta, e eu entendo a preocupação do nosso pai.
Helick percebeu no rosto de Cassian que ele não estava nada feliz com a escolta.
— Imagino que isso vá atrapalhar suas escapulidas, não é? — comentou Tály.
Cassian olhou para a jovem de pele escura e longos cabelos trançados, que o encarava com seus olhos âmbar.
— Você ainda guarda rancor, por acaso?
— Digamos que Sam foi sábio o suficiente para não a colocar como sua escolta — falou Marco. — Caso contrário, você estaria correndo ainda mais perigo.
— Acho melhor os príncipes se dirigirem logo à sala do trono para se alimentarem — sugeriu Redgar, cortando o assunto.
Redgar, um jovem guarda de pele clara e cabelos negros, destacava-se pela expressão neutra e indiferente.
— Qual foi a ideia genial de Sam de colocar vocês quatro para fazerem nossa guarda? — perguntou Cassian aos guardas, enquanto seguiam em direção à sala do trono. — Vocês devem estar entre os soldados mais novos do exército.
— O inimigo invadiu nossas defesas com facilidade e substituiu os guardas em pouquíssimo tempo — explicou Marco. — Sam queria que a escolta de vocês fosse composta por pessoas de fácil e rápido reconhecimento.
— E também de sua total confiança. Não sabemos se o inimigo teve ajuda de dentro — completou Any.
Os príncipes e a escolta pessoal chegaram à sala do trono, onde uma mesa farta os aguardava. O cheiro de peixes alados e espetos de carne de boi-rinoceronte invadiu as narinas dos jovens, que logo se sentaram.
— Onde está nosso pai? — perguntou Helick ao ver que o trono estava vazio e que a mesa estava posta apenas para dois.
Um dos guardas de prontidão na entrada da sala do trono respondeu:
— Ele está em reunião com o capitão Haras. Disse que não precisam esperá-lo para comer.
As três grandes refeições do dia — café da manhã, almoço e jantar — eram os momentos em que o rei sempre abdicava de seus compromissos para passar tempo com os filhos. Em quase vinte anos, poucas vezes ele faltara às refeições.
— Imagino que você não saiba o motivo da reunião — comentou Cassian.
— Não, senhor — respondeu o guarda.
— E vocês? — perguntou Cassian a Marco, Any, Tály e Redgar. — Não vão almoçar também?
— Temos rações para amenizar a fome ao longo do dia — respondeu Marco. — Não se preocupe.
— Sim, não há motivo para se preocupar. Vamos ficar na sua cola até a segunda ordem, sem faltar um segundo sequer — comentou Tály, com um sorriso irônico.
— Ah, qual é! Vocês ao menos dormem?
— Revezamos. Quatro horas de sono são mais que suficientes — respondeu Redgar, sem emoção alguma na voz.
Cassian se afundou na cadeira pelo resto da refeição.
Em outra parte do Palácio de Ouro, uma sala iluminada por um candelabro repleto de velas lançava sombras dançantes sobre uma mesa redonda onde repousava um grande mapa do continente. O Rei Aquiles Havilfort estava reunido com seu irmão, Agnus Havilfort, a Mão do Rei, e o capitão da guarda real, Sam Haras, que ainda vestia as roupas da visita ao Bar de Ciscer.
Agnus lançou um olhar provocador para Sam, assobiando de forma teatral.
— Ora, ora… — Agnus provocou, com um sorriso malicioso. — Não é que o capitão da guarda real tem roupas além da armadura?
Sam, mantendo a compostura, respondeu com frieza.
— Agora não, Agnus.
O Rei, ignorando o comentário do irmão, entrou diretamente no assunto.
— Ouvi sobre o Bar de Ciscer, Sam. — Aquiles disse, com a voz firme. — O que você descobriu?
Sam respirou fundo, mantendo-se sério.
— Coletei algumas informações preocupantes, mas ainda precisam ser confirmadas.
Agnus, que havia perdido o tom brincalhão, franziu o cenho.
— E que tipo de informações são essas?
Sam hesitou um momento, mas finalmente falou.
— Há relatos de que nossos inimigos podem ser ossuianos.
O Rei Aquiles levantou-se abruptamente, batendo o punho na mesa.
— Ossuia?! — rugiu ele, os olhos faiscando de fúria. — O que aqueles bárbaros pensam que estão fazendo? Querem guerra?
Sam permaneceu firme.
— Ainda não temos certeza, Majestade. Não sabemos se é um ataque orquestrado pela imperatriz ou se foi obra de um grupo independente.
Agnus cruzou os braços, seu olhar afiado como lâminas.
— E como pretende confirmar essa informação, Haras?
Antes que Sam pudesse pronunciar uma palavra, o rei o interrompeu, sua voz cortante como uma lâmina:
— Só há uma maneira. — Aquiles fez uma pausa, seu olhar fixo nos olhos de Sam. — Contate Blando imediatamente.
O silêncio que se seguiu foi pesado, quase sufocante. Sam permaneceu imóvel, seus olhos arregalados de incredulidade, como se não tivesse ouvido corretamente. Ele tentou responder, mas as palavras falharam por um breve instante, preso entre o choque e a indignação que ferviam em seu peito.
— Senhor…? — A palavra saiu com dificuldade, mal acreditando no que ouvira. O capitão deu um passo à frente, quase como se tentasse se aproximar de uma ideia impossível.
Agnus cruzou os braços, observando a reação de Sam com um brilho sombrio nos olhos. Ele sabia que aquele pedido iria perturbar o capitão profundamente, e parecia estar se deliciando com o momento.
Aquiles manteve seu semblante firme, o silêncio do rei pesando mais do que qualquer ordem já dada. O ar na sala parecia carregar uma eletricidade quase tangível, uma tensão que apertava os pulmões de Sam, que sentia a gravidade da decisão que pairava diante dele.
— Senhor?! — A palavra escapou de Sam como um grito contido, o choque evidente em sua voz. — Ele é um traidor! — Sua incredulidade era palpável, como se cada palavra arranhasse sua garganta. — Não podemos recorrer a alguém que já nos traiu!
Agnus balançou a cabeça lentamente, seu olhar fixo no chão como se ponderasse uma verdade amarga que ambos conheciam. — O pior… — disse ele, com sensatez. — O maldito realmente saberia se fossem ossuianos.
As palavras de Agnus pendiam no ar, como se fossem uma sentença inevitável. Sam, agora com os punhos cerrados ao lado do corpo, não conseguia esconder a revolta crescente. Seu olhar disparou entre o rei e Agnus, buscando algum vestígio de bom senso.
— Deve haver outro jeito! — Sam insistiu, sua voz baixa, mas repleta de indignação. — Não podemos nos rebaixar a isso. Não… a ele.
Aquiles, no entanto, permaneceu imperturbável, seu semblante tão frio quanto o gelo que cortava o ar entre eles.
— E esperar até que eles nos ataquem novamente? — As palavras do rei foram firmes, carregadas de uma lógica brutal. — Nem sequer sabemos o que eles procuravam debaixo da fonte.
Cada sílaba do rei parecia perfurar Sam como uma adaga. Ele sabia que Aquiles tinha razão, mas a ideia de recorrer a Blando… era insuportável.
— Se Blando souber de algo e não agirmos… — Aquiles fez uma pausa, seus olhos escurecendo. — Uma guerra pode estar à nossa porta.
Sam abriu a boca para argumentar novamente, mas Aquiles ergueu a mão com um gesto abrupto, silenciando-o antes que qualquer som pudesse escapar. O rei o encarou com uma autoridade implacável, sua decisão já tomada.
— Você tem suas ordens, Capitão. — A voz de Aquiles ecoou como um martelo selando o destino. — Espero que as cumpra.
O silêncio que se seguiu foi sufocante. Sam ficou parado, sua mente fervilhando de pensamentos conflitantes, mas ele sabia que não havia mais espaço para discussões. As ordens estavam dadas. E, como sempre, ele teria que obedecer.