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Olhos negros como a escuridão. Nem mesmo um traço do branco ao redor da íris.

Os músculos de Moito se contraíram involuntariamente e, por mais que tentasse, não conseguia movê-los. Foi obrigado a permanecer encarando os olhos dela, que pareciam crescer como se fossem engolí-lo. Percebeu que na verdade eles não eram totalmente pretos, assemelhavam-se a um céu noturno, cheio de pontinhos brilhantes.

— Está lidando com algo que não compreende — disse Ainá, com uma voz profunda e ressonante. — A sua afinidade é um caminho de duas mãos. Se continuar abusando dessa força de maneira desorientada, irá se perder.

— O que está querendo dizer!? — Fez tanta força que seu corpo inteiro debateu. Mas já estava de volta à caverna. 

Encharcado de suor, ele se sentou e encostou na parede de pedra, sentindo a cabeça latejar. Respirou fundo e concluiu: nada como um sonho bizarro para cutucar a ferida recente e ainda fabricar uma profecia sem sentido.

A claridade suave do nascer do dia iluminava o interior e alguns pássaros cantavam. Ele se apoiou para levantar e sua costela reclamou de dor, embora já percebesse uma melhora. Caminhou para o lado de fora e procurou ao redor. Nem sinal de Tércio.

— Pensa rápido!

“Oi?” Algo pesado e macio acertou sua cabeça e depois se espatifou no chão. Moito pulou para o lado, deixando escapar uma interjeição. Em cima da abertura da caverna, Tércio o observava com um sorriso pilantra.

— Tá muito lento, irmãozinho! Olha só, deixou as bananas amassarem.

De maneira tempestuosa, Moito reagiu aumentando a voz:

— Que idéia idiota!

— Ou, ou! Não me culpa, você precisa estar mais ligeiro — disse ele, com os braços abertos e as sobrancelhas arqueadas.

— Me desculpa… Estou com a cabeça cheia. — Envergonhado com sua explosão de raiva, Moito abaixou os olhos.

Espalhadas na terra estavam várias bananas-celestiais maduras, com a casca bem azul. Haviam se soltado do cacho e esparramado entre as pedras. Ao se abaixar para pegar algumas, outra coisa acertou sua cabeça, dessa vez, dura e oca.

Moito apenas se virou, com um olhar de fúria.

Tércio estava se divertindo. — Vamos, se anima, estamos vivos! Quantos podem dizer isso depois de confrontar uma patrulha de fronteira? Antes de você me contar como viemos parar aqui, precisamos subir de volta às Terras Altas o quanto antes.

Seu irmão tinha razão. Moito agachou, pegou o coquinho que tinha acertado sua cabeça e o partiu em dois com uma única batida contra o chão rochoso. Dentro da casca dura haviam várias castanhas. Ele enfiou um par na boca e, enquanto mastigava, abriu uma banana e a devorou junto.

Bora.

Tércio deu um salto e caiu na sua frente. — Maravilha! Fiquei com receio de você querer fazer aquele seu ritualzinho matinal.

Ao se levantar, Moito parou face à face com ele. Com o rosto impassível e uma voz monótona, disse: — Será que dá tempo? Preciso cagar.

Tércio o encarou de volta, sério como uma estátua. Permaneceram parados por um tempo, se entreolhando, até um deles não aguentar e deixar o canto da boca tremer. Não demorou muito, estavam os dois se empurrando, enquanto gargalhavam.

— Não tá falando sério, né?

Com certeza havia uma estrada que levava de volta à parte de cima do rio. No entanto, também tinham certeza de que ela estaria repleta de postos de controle Imperial. 

Tércio explicou como, há algum tempo, a atividade nas fronteiras tinha se intensificado e qualquer Animista que quisesse deixar as Terras Altas de maneira oficial precisava se submeter a uma extensa e humilhante avaliação, ou arriscar ficar clandestino em um território hostil.

Encontraram uma fenda por onde poderiam começar mais facilmente a escalada. Aquela região era famosa por suas verticais paredes colossais de pedra, e talvez um dos pontos mais difíceis de acesso em toda a fronteira das Montanhas Vermelhas com as Terras Baixas. Provavelmente um dos motivos de seu pai tê-los levado para lá.

Depois de fazer várias perguntas e escutar o relato de Moito sobre a Pedra-dos-Sonhos e, principalmente, sobre o destino trágico de Ainá, Tércio desconversou e tentou mudar de assunto, visivelmente desajeitado. Moito já conhecia seu irmão, nunca teve muito jeito com assuntos mais delicados.

Escalavam em silêncio, de maneira lenta e constante. Toda vez que precisava fazer esforço com o braço esquerdo, sua costela rangia de dor. No entanto, essa não era sua maior preocupação. No fundo, Moito se sentia perdido, sem saber para onde estava indo.

Mais ou menos na metade da subida, alcançaram um platô e decidiram parar para descansar.

— Olha isso! — Tércio apontou para frente. — O mundo pode até ser cheio de problemas e coisas ruins, mas… só olha!

Uma planície se estendia diante deles. A densa floresta gradualmente dava lugar a extensos campos verdes-claros que se perdiam de vista no horizonte. Raios de sol, como pano de fundo, surgiam por entre as nuvens e se tornavam visíveis em feixes dourados.

Nesse momento, algo se moveu no interior de Moito. Sentiu um impulso surgir do fundo de sua alma, como uma vontade de correr sem parar. E essa sensação tomou completamente o lugar do vazio anterior, transformando-a em pura excitação.

— E aquilo ali no rio deve ser uma das famosas embarcações dos Eternos. Nunca tinha visto uma! Será que foi a que nos encontrou ontem à noite? Eles devem estar furiosos!

Moito seguiu o dedo apontado de seu irmão e também conseguiu distinguir um objeto grande em formato de flecha, branco e azul, cruzando as águas do rio.

— Por que estão fazendo tudo isso? Fechando as bordas e nos atacando, como se fossemos prisioneiros.

Tércio continuou acompanhando o barco. — Porque é isso que nos tornamos. Prisioneiros dentro da nossa própria terra.

Aquela perspectiva o incomodou. Ninguém deveria poder restringir a liberdade dos outros, para os Animistas isso era sagrado. Mas os problemas pareciam grandes demais, complexos demais para alguém tão insignificante quanto ele. Agora, ele queria focar apenas no seu próprio caminho.

— Se eu quisesse atravessar toda essa extensão de terra, precisaria da aprovação deles?

Tércio se virou com um sorriso no rosto: — Bem, você poderia tentar não ser pego. Mas já viu como seria difícil.

Moito ajeitou o corpo e massageou a região dormente ao redor da costela, enquanto girava o braço esquerdo para ajudar a soltar a musculatura. Estava pensativo, com o olhar distante.

— Impressionante sua recuperação. Suas costelas parecem quase boas. Eu sabia que você ia conseguir! Mais um pouco e a gente chega.

— Irmão. — A voz de Moito ficou séria, assim como sua expressão.

— O que foi?

Mas ele não respondeu de imediato, permaneceu encarando a paisagem. — Não sei se vou continuar…

Tércio tomou um susto com a declaração. — Que bobeira! Tenho certeza que você consegue, falta apenas uma parte.

— Não é isso… Percebi que agora não há mais nada pra mim lá em cima. Sinto que meu caminho está na minha frente.

Seu irmão ficou em silêncio, voltou o olhar para a planície e perguntou: — Seu instinto tá te dizendo isso?

— Acho que sim.

— Entendo.

Apreciaram uma última vez a paisagem juntos. Tércio segurou uma pedra nas mãos e a arremessou lá do alto. Moito ainda estava na dúvida se era o certo a fazer, mas ao mesmo tempo, não podia ignorar o chamado de seu coração. Havia esperado a vida toda por isso.

Momentos depois, o irmão mais velho se levantou.

— Ei, vem aqui — chamou, com o braço esticado.

Moito segurou-se na mão dele e também levantou. No mesmo movimento, Tércio o puxou para perto e apertou seus braços ao redor dele, que retribuiu.

Emocionado, ele continuou: — Já sabia que esse momento ia chegar, só não pensei que seria agora.

Sim, o Rito de Passagem deveria ser trilhado sozinho, eles sempre souberam disso. “Existem tantos caminhos quanto o número de almas.” Mestre Farkas costumava dizer. Cada um tem o seu.

— E você, vai fazer o quê?

— Ué, vou seguir para o encontro dos Animistas. Até onde sei, não é algo comum, deve ser importante. De lá, espero encontrar meu caminho também.

Moito coçou a nuca e desviou o olhar. — Estou com medo…

Tércio gargalhou — Se fosse qualquer outra pessoa, eu tentaria impedir, mas confio em você, irmãozinho. Quando finalizar o Rito, estarei te esperando.

Encararam-se, os olhos cheios de lágrimas, e despediram-se com um toque de mãos, e o choque entre as palmas produziu um estalo alto que ecoou no vale.

— Boa sorte.

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