Ao refletir sobre seus próximos passos, Moito só conseguia pensar na misteriosa garota do rio. Sem compreender o motivo exato, ele sentia um forte desejo de reencontrá-la; porém, depois de tudo o que aconteceu, essa ser sua única motivação também o incomodava.
Tércio, por outro lado, enfrentava seus próprios fantasmas. — Você acha que foi tudo culpa minha? — A animação dele com o fato de estarem indo atrás de garotas não durou muito.
Moito preferiu ficar quieto e deixar seu irmão desabafar. Estavam descendo o rio, seguindo pela margem. Tércio chutou uma pedra e ela quicou sobre a água.
— Eu deveria ser o exemplo! E ao invés disso, o que eu fui? Um traidor… — Seus ombros estavam caídos, e uma expressão desoladora em seu rosto. — Tudo por causa dessa caravana acampada aqui perto, e a promessa de umas jovens, lindas, e perfumadas, e…
— Cala a boca, Tércio! Não foi culpa de ninguém. Só daqueles desgraçados carniceiros.
— Eles nos emboscaram! — gritou, exaltado. Sua voz carregada de raiva. — Depois ainda me usaram para encontrar vocês!
Moito ficou calado, pensativo.
— Nosso pai é tão odiado assim?
Tércio o encarou seriamente, fazendo-o se sentir desconfortável, como se tivesse dito algo errado.
— Você por acaso sabe o nome desse rio? — E apontou para o grande rio que corria ao lado deles.
Aquela pergunta pegou Moito desprevenido. — Do que está falando? Isso não tem nada a ver.
— Você não sabe, sabe?
— Esse aqui? Não. — E deu de ombros.
— Tá vendo, esse é o seu problema. — Ele levantou o dedo e o aproximou do rosto do irmão mais novo. — Você nunca se interessou por nada. Tudo era sua rotina e o seu treino.
Moito tentava entender como a conversa tinha se tornado sobre ele enquanto Tércio seguia com o questionário.
— Você sabe pelo menos qual é o motivo de tudo isso? Porque fazemos o que fazemos?
Essa resposta Moito sabia! Ao menos acreditava que sim.
— Nós devemos ficar fortes!
— Ah é? E pra quê? — Tércio se aproximou; os olhos arregalados e as sobrancelhas levantadas.
— Ué, ajudar nosso pai a… Mudar o mundo?
Tércio soltou uma gargalhada honesta. Ambos riram, pelo menos o humor dele tinha mudado.
— Incrível, você é mesmo o modelo perfeito!
Moito abaixou a cabeça e apertou o passo. Aquela conversa já tinha perdido o sentido, Tércio devia estar muito perturbado.
Quando levantou o olhar, notou que logo à frente o rio desaparecia e o som de água caindo ficava cada vez mais forte. Ele caminhou até a borda e sob seus pés surgiu uma imensa cachoeira.
— Então, vamos nessa? — falou Tércio, se posicionando ao seu lado.
— Por onde a gente desce? — Analisava as pedras da encosta até lá embaixo.
— Isso é simples. E o nome dele é Claro.
— O quê? — Moito se virou para ele, confuso.
— O nome do rio, Rio Claro — respondeu, dando um impulso para frente com a perna boa.
Tércio cruzou ambas pernas no ar, protegeu o braço quebrado com o outro, e mergulhou como uma flecha no rio. Depois de alguns segundos, ressurgiu do fundo e o chamou. A queda devia ter umas dez vezes o seu tamanho.
Moito não pensou duas vezes. Inspirou profundamente e pulou. No ar, o tempo pareceu desacelerar enquanto ele caía lentamente. Notou que a vegetação começava a mudar e grandes árvores despontavam entre o verde, que ficava mais intenso. Um novo mundo abria-se à sua frente.
Ao sair da água sentiu uma sensação de entusiasmo misturada com ansiedade, como se cada batida acelerada do coração fosse acompanhada por uma pitada de inquietação.
— Gostei do sorriso! — disse seu irmão. — É o que estamos precisando.
Adentraram a mata até chegar onde devia ser um acampamento. Estava vazio. Apenas a fogueira recente deixava um fio de fumaça escapar.
— É verdade que as caravanas não ficam muito tempo no mesmo lugar, mas seria muita coincidência elas se mudarem logo agora. — Tércio andou em volta da área, atento. — Achei o rastro deles.
A mente de Moito começou a rodar. E se a tropa de soldados os tivesse atacado também? Sentiu uma inquietação tomar conta, não estava pronto para outra tragédia.
Tércio se adiantou pela trilha e ele seguiu.
— Consegue correr? — perguntou Moito, ansioso.
Tércio balançou a cabeça, indicando nem que sim nem que não, e apertaram o passo em uma corrida leve. Mancando, seu irmão ficou um pouco para trás, enquanto eles seguiam em linha reta. O rio serpenteava ao lado, se afastando, fazendo uma curva e voltando a encostar na trilha. A mata tinha se tornado bem mais densa e o ar, úmido.
Um movimento entre as árvores chamou sua atenção e ele parou. Sinalizou para Tércio lá atrás também parar e ficar quieto. Escutou atentamente os sons; do vento entre as folhas, dos insetos e dos pássaros. “Talvez tenha sido só impressão”.
Então, do galho acima de Tércio, caiu um vulto sobre as suas costas e o derrubou no chão. Era um jovem, menor do que os dois, e segurava uma faca contra a garganta dele.
— Peraí, peraí! — falou Tércio, levantando o braço sobre a cabeça e abrindo a mão em sinal de rendição.
O garoto nem se mexeu, permaneceu agachado sobre ele. Olhava fixamente na direção de Moito. Ele tinha os cabelos vermelhos como fogo e a pele cor de cobre. Vestia um tecido verde musgo em um estilo de prender muito diferente.
— Não fica aí parado, faz alguma coisa! — gritou Tércio, imobilizado, com a cara enfiada na terra.
Antes que pudesse pensar em fazer qualquer coisa, uma voz veio de trás de Moito.
— Então eram vocês.
Quando se virou, uma mulher bem mais alta do que ele estava parada, de braços cruzados. Sua presença era intimidadora.
— Não queremos problemas… — disse Moito, dando dois passos para trás e mostrando as mãos vazias.
Ela também tinha os cabelos vermelhos, mas eram mais escuros, quase pretos, presos em uma trança atrás da cabeça. Seu rosto era quadrado e tinha os olhos grandes e as sobrancelhas grossas.
Ele tentou se explicar: — Pensei que talvez os soldados…
A mulher levou o dedo à boca, pedindo silêncio, e foi prontamente atendida, sem questionamentos. Analisou-o minuciosamente, de cima a baixo.
— Vocês não são mais bem-vindos entre nós — falou finalmente, de maneira seca. — Venha, Kito, deixe-os aí.
O garoto pulou de cima de Tércio e correu para a mulher com elegância nos movimentos, passando por Moito sem olhá-lo.
— Mara? — Tércio chamou lá de trás.
— Mantenha suas mentiras para você. Estamos indo. Pelo bem de todos, não nos sigam. — Viraram e sumiram na trilha entre as árvores.
— Caramba… — Tércio se aproximou com uma careta no rosto. — Ela tava bem brava, né?
— Não entendi nada — respondeu o irmão mais novo, confuso. — Você conhece ela?
— Caramba… E agora? — Moito continuou encarando-o, esperando alguma resposta em silêncio. — Olha, é melhor a gente ir pra outro lugar.
— Você não vai me explicar nada, é isso mesmo?
Tércio coçou a barba. — A gente visitou a caravana deles durante toda a última lua; mas sabe como é, não podíamos falar quem nós éramos. — Ele olhou pra cima, as mãos na cintura. — Agora, eles devem saber de tudo, inclusive o que aconteceu.
— Faz sentido… — Moito parou, analisando a situação. — Tudo bem, tive uma ideia.
— Como assim?
— Vamos esperar ficar de noite e chegar mais perto. Eles não me conhecem ainda, posso passar despercebido.
— Moito, olha bem pra mim. Você viu o tamanho daquela mulher? E a faca daquele endiabrado estava melada com veneno, deu pra sentir o cheiro.
Ele se aproximou do irmão mais velho e apertou o braço dele. — Confia em mim!
— Não é isso! O mundo é gigante! Podemos ir para qualquer lugar! Esqueceu do objetivo do nosso Rito? Só precisamos seguir nosso instinto.
— Exatamente. É isso que eu tô fazendo. Seguindo meu instinto.