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“Estrela, deserto, atravesse”.

Era lua cheia. A segunda que Ítalo vira desde que chegou àquele mundo.

Ele observava-a através do buraco aberto do teto. Logo ela continuaria sua trajetória, e ele teria de mudar de posição se quisesse continuar a vê-la. Coisa que não podia fazer. Tanto pelo ferimento no ombro, que, embora tivesse sido firmemente enfaixado, ainda o incomodava quando tentava se movimentar. Como também pelas cordas que o amarravam.

Ele se perguntava onde Daisy as havia obtido. Talvez tenha roubado de algum comerciante antes de fugir.

Ela ter fugido também o perturbava. Fora conveniente demais.

Ele ouviu sons vindos do outro lado do quarto. Grunhidos e gemidos. A garota tentava se soltar, se debatendo e rolando pelo chão.

Ítalo tentara falar várias vezes com ela, sem obter qualquer resposta. Era como falar com o homem gordo… ou com qualquer pessoa em seu mundo antigo.

Ele olhou novamente para cima. Metade da lua havia desaparecido por entre a brecha.

Estava no segundo andar de uma torre de pedra. Uma das inúmeras ruínas espalhadas naquela imensa estrutura geológica.

Sons pesados de passos ecoaram através da saída que dava para o corredor escuro. O homem gordo retornara.

Em pouco tempo, um enorme vulto adentrou o cômodo, se movendo pela escuridão. Ele jogou algo no chão, em direção a garota, e Ítalo sentiu o cheiro de carne queimada. Logo depois, virou-se para Ítalo e o levantou, colocando-o sobre o ombro.

Um espasmo de dor fez Ítalo tremer e cerrar os dentes. O homem gordo não se importou. 

Ítalo tentou vislumbrar a lua novamente, mas ela já não estava mais lá.

O homem desceu os degraus, andando a passos largos, sacudindo a carga em seus ombros sem se importar com sua natureza, até estar de frente com uma luz quente.

Ítalo levou alguns segundos para acostumar sua visão à fogueira à frente, após o que pareceram horas no completo escuro. O cheiro de fumaça parecia mais forte.

Daisy estava do outro lado dela, encarando-o com olhos tão inocentes como da primeira vez que Ítalo os vira. Um meio-sorriso marcava seus lábios, e a sombra que se projetava nas suas costas a fazia parecer com alguma entidade sombria.

O homem jogou Ítalo no chão.

— Eu pedi que tomasse cuidado com ele — Daisy falou com uma voz suave.

— Desculpe irmã — Ítalo ouviu a voz rouca do homem gordo responder.

— Alimentou a garota? — perguntou Daisy.

Ítalo não ouviu uma resposta, mas viu a sombra do homem mexer a cabeça em um gesto de afirmação. Então se lembrou do cheiro da carne queimada, e de que a garota estava amarrada. Duvidava que ela conseguisse se alimentar daquela forma.

— Ótimo, bom trabalho Poo. Papai ficaria orgulhoso.

Ítalo franziu as sobrancelhas.

— Poo?

— Obrigado irmã — O homem respondeu. Ítalo conseguiu perceber a alegria em sua voz.

— Irmã? — Ítalo contorceu o corpo, virando-se para Daisy.

A dor do movimento o fez se encolher.

— Poo, ajude-o a se sentar — pediu Daisy.

O homem pegou Ítalo pelo braço, e o ergueu.

Um gemido ecoou pelo cômodo.

— Mais gentilmente — disse Daisy, de forma quase indiferente.

— Gentil, irmã — O homem falou, terminando o movimento e alisando o ombro de Ítalo.

— Sim, eu sei irmãozinho, você é — O rosto de Daisy se moldou em um sorriso doce.

Ítalo a encarou, transtornado.

“Poo” se afastou, sentando-se ao lado da fogueira, entre Ítalo e Daisy, formando um triângulo ao redor do fogo.

Ele pegou um espeto com carne enegrecida e o levou à boca, dando-lhe uma mordida furiosa.

— Agora, vamos conversar — Daisy anunciou, olhando para Ítalo.

Ele abriu a boca e voltou a fechá-la, sem conseguir exprimir qualquer som que se parecesse com uma palavra. Ele alternou seu olhar entre o homem gordo e Daisy, tentando conceber em sua mente o que vira.

Daisy pareceu perceber sua confusão.

— Está com fome? Quer? — Ela estendeu o braço e pegou o espeto rústico que era lambido pelas chamas. — O gosto provavelmente está ruim. Poo não sabe cozinhar nada e eu não consigo sentir o gosto das coisas. Ítalo aceitou a carne, a encarou e então se forçou a falar algo.

— O qu… você… — Olhou para o fogo, lembrando-se da vez anterior em que estiveram em frente a fogueira.

Ele havia bebido, e não se lembrava bem o que ocorrera. Todas as memórias daquela noite pareciam envoltas por uma fina neblina. Lembrava apenas de ela tê-lo dito para ir dormir.

— Por que você fugiu?

— Para não ser pega — A resposta dela foi rápida.

Ítalo piscou de surpresa.

— Como assim “ser pega”. Ser pega por quem? Pelos guardas? Como você sabia que eles nos prenderiam?

Ítalo então sentiu um nó se formar em sua cabeça ao se lembrar que o motivo de terem sido presos era o desaparecimento de Daisy e do homem gordo, ou “Poo”, como ela o chamava.

Então se lembrou dos outros homens que encontrara naquele dias, vestidos como ladrões do deserto. E daquele homem alto e magro que o fez ver, ver… as garras, as asas… não queria lembrar, apenas esquecer. Se esquecesse, elas não o alcançariam, como alcançaram os outros que ficaram naquele espaço escuro e quebrado.

— Se for passar mal, conversamos depois — comentou Daisy em seu tom infantil, e Ítalo percebeu que estava tremendo enquanto seu corpo suava.

— Nã… não, está tudo bem — respondeu, secando o suor em sua roupa.

Daisy não mudou seu olhar, ou seu tom de voz.

— Ser pega pela tempestade. Qualquer situação em que eu ficasse naquele acampamento seria ruim para mim.

Ítalo sentiu um frio em sua barriga. “Ser pega pela tempestade”, ela disse. Mas como ela sabia da tempestade?

Ele queria fazer uma dezena de perguntas, que provavelmente levariam a muitas outras perguntas. Daisy não parecia estar disposta a passar por essa jornada.

— “Como eu sabia?”, você quer perguntar, não é?

Ítalo se calou para ouvir a resposta.

— Como devo dizer — Ela cruzou as pernas e acariciou seu fino e delicado queixo. — Eu vi isso acontecendo.

— Como assim, você viu isso acontecendo? — Ítalo se remexeu onde estava, sentindo um espasmo de dor atravessar o peito e o ombro.

— Explicar é um saco, então não me interrompa — reclamou Daisy, dobrando os lábios. De repente uma fina gota de sangue saiu de seu nariz e escorreu por seu rosto. Ela a limpou. — Não se preocupe com isso.

As chamas tremulavam entre os dois, com sua meia luz produzindo sombras no rosto da garota. Ela voltou a falar.

— Como eu estava dizendo, eu vi a tempestade de areia, e o ataque.

— Ataque?

— Acho que você não sabe. Aquela comitiva em que estávamos foi atacada. Acho que poucos sobreviveram — Ela puxou um espeto de perto do fogo e o encarou enquanto falava. — Por isso eu fugi e trouxe o Poo.

— Você… — Ítalo não conseguia assimilar aquilo. Ele se esforçava, mas nenhuma pergunta era formada em sua mente.

— Como eu vi? — Daisy pareceu ler o que se passava em sua cabeça. — Isso eu só posso especular. Mas o fato é que isso nos salvou, pois senão, estaríamos mortos se eu não tivesse agido.

Ítalo franziu as sobrancelhas. 

— Como tem tanta certeza?

— Quantas vezes terei de repetir, eu vi isso acontecer… algumas vezes. E sempre que ficávamos lá, o resultado era o mesmo. Aquele homem magro viria atrás de nós.

Os pelos na nuca de Ítalo se eriçaram. Ele tentou se acalmar.

— Você… diz que viu, mas o que exatamente? Você viu o futuro?

Daisy olhou para cima pensativa.

— Sim, ou não, não sei. Não tenho completa dimensão dos pormenores. Eu via coisas que poderiam acontecer, mas não muito bem. Era como assistir um filme estrangeiro sem legendas e com a televisão trincada. E sempre que eu olhava a mesma coisa novamente, tudo se tornava mais difícil de entender.

Ítalo decidiu aceitar essa premissa para que sua mente pudesse se acalmar e entender a conversa.

— Então me diga, o que exatamente você viu?

Daisy olhou para baixo, virando a cabeça ligeiramente para um lado, e então vagarosamente para o outro, de uma forma quase infantil.

— Não posso dizer — respondeu.

— Como assim?

Daisy levantou o rosto e olhou para Ítalo.

— Por que não — Um sorriso nos lábios e uma graça trocista nos olhos acompanharam a resposta. — Eu vejo o futuro, acho que você entendeu isso pelos fatos que ocorreram hoje. Mas você não precisa saber do que eu vejo.

Ítalo ouviu um estalo em sua mente e sentiu um calor subir por seu rosto.

— Acha que isso é uma brincadeira? — gritou. — Pamela, Tyler e Marcelo. O que acha que aconteceu a eles?

— Eu sei o que ocorreu — Ela retrucou, estendendo a mão para o lado.

Ítalo notou que o homem gordo estava prestes a se levantar.

— Eles estão vivos, pelo menos por enquanto.

— E por que não nos avisou?

— Quem acreditaria nessa loucura? “A garota que mal fala diz que uma tempestade vai cobrir o acampamento e que um ataque vai vir logo depois, fujam, fujam”. Eu não, e muito menos o Tyler acreditaria.

Daisy gesticulava caricaturalmente enquanto falava, o que fez Ítalo se perguntar onde estava aquela tímida garotinha que havia aparecido naquela caverna junto a eles.

— Você nos abandonou para morrer — ele falou.

— Não, apenas escolhi o melhor caminho. Devia me agradecer. Afinal você não está preso agora por causa do que fiz. Uma vez na vida você teve sorte, eu acho — Ela sorriu de forma cruel.

Ítalo se perturbava mais a cada vez que Daisy falava. Ele não conseguia entender a garota. Na verdade, não queria, queria apenas gritar, mas a parte em sua mente atenta ao homem gordo a seu lado o impedia.

— Por que me salvou? Pra que esse esforço, se me acha tão…

— Ridículo, inútil, patético… acho que te chamar dos três é bem redundan…

— Apenas responde — Ítalo gritou.

O homem gordo se ergueu, dando um passo em sua direção. Ítalo se encolheu na expectativa do que poderia acontecer.

— Tudo bem Poo, ele só está nervoso — Daisy falou de forma indiferente, tirando um pedaço da carne tostada em suas mãos e o levando a boca.

O homem olhou para Ítalo, grunhiu e voltou ao seu lugar.

— Você me pegou nessa. Eu não te escolhi. Salvar você naquele momento foi uma questão de me aproveitar dessa sua inutilidade, para ser franca.

Ítalo dobrou os lábios e engoliu os insultos. Quem era Daisy para chamar alguém de inútil? Ele queria gritar isso na cara dela, mas Poo parecia observá-lo como uma fera pronta para abrir as presas.

Daisy continuou falando.

— Tyler faria seus próprios esquemas. Pamela atrapalharia tudo com sua natureza preocupada e maternal. Marcelo… Nenhum dos três me daria ouvidos, ou sequer acreditaria em mim. Todos eles tem algo que você não tem: ego.

Ítalo franziu as sobrancelhas para Daisy, ela terminou de comer a carne tostada e jogou o graveto fora.

— Como assim “ego”? — Ele perguntou.

— Tyler tem orgulho, ambição e coragem. Ele é um “homem”, no sentido mais clássico da palavra — Daisy começou lamber a ponta dos dedos. — Pamela tem valores, ou algo parecido com isso. Marcelo tem uma teimosia caipira saída e algum filme do velho-oeste. Você não tem nada. Não tem presença. Não representa perigo para ninguém, nem é lembrado por ninguém. Diga, quantas vezes viu a roda de amigos da sua escola ou família, traçando planos sem te incluir?

 Daisy pareceu ler a resposta nos olhos de Ítalo, sorriu e continuou:

— Vê, você não tem personalidade, respeito próprio ou força de vontade. É uma massa de pizza que não foi posta para assar. Será remexida e batida quantas vezes o cozinheiro quiser, até sair algo que o agrade. E o melhor é que sabe disso, e se coloca numa posição submissa a cada oportunidade, com medo de ser abandonado pelos outros, por eles não virem algum valor em você, se é que você tem algum, não é mesmo? Por isso seguiu o Tyler caverna adentro no primeiro dia e o obedeceu. Por isso correu contra o Poo, em uma luta que não tinha a menor chance de vencer, quando olhou para mim. Teve medo que eu te julgasse covarde e patético. Por isso eu te salvei, pois creio que fará exatamente o que penso.

Ítalo ouviu a tudo, sem dizer uma palavra. Algo parecia perfurar seu peito, e um nó se formara em sua garganta. Não sabia dizer em que momento as lágrimas começaram a descer em seu rosto.

— O que, exatamente? — Ele se forçou a perguntar.

Daisy sorriu.

— Nos salvar. Assim que conseguirmos fazer aquela garota lá em cima falar.

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Olá, eu sou Dellos, o panda!

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