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Uma voz a chamava, mandando que a seguisse, ou era isso que Júlia lembrava ao acordar, após ser sacudida por Leticia. As pessoas sentavam em silêncio, amontoadas em largos bancos de madeira, enquanto o sacerdote da aldeia, que respondia por pier Rosei, proferia um discurso. Um longo discurso.

Naquele mundo não existia a tradição de um dia sabático, mas, em datas especiais, os aldeões se reuniam na catedral para ouvir os sermões do sacerdote. Era um tanto parecido com as missas a que Julia estava acostumada. No entanto, eram cerimônias bem mais silenciosas. Não haviam músicas sendo tocadas com o acompanhamento de instrumentos, apenas cantores entoando coros com afinadas vozes, que reverberavam por todo o templo. O templo em questão possuía um tamanho considerável, podendo suportar mais de uma centena de pessoas. Os demais aldeões se espalhavam pelo lado de fora, escutando o eco das palavras do pier.

Júlia e os demais gozavam do privilégio de ter um lugar na parte de dentro por acompanharem Thierry. Um homem santo” como falara pier Rosei tantas vezes. Júlia escutara histórias sobre seus feitos em campos de batalha longínquos. Lugares impronunciáveis e estranhos a ela. Todo aquele mundo ainda lhe era estranho, na verdade. Mas era difícil ver algum bravo guerreiro no velho homem que podava plantas e plantava rosas todos os dias no jardim de sua casa.

Os meninos perguntavam com frequência sobre a veracidade de tais feitos, apenas para que ele negasse, ou reputar tudo como sendo nada demais. Era um assunto que evitava com afinco.

Carmen bocejou ruidosamente, atraindo olhares de reprovação à sua volta. A garota nunca pareceu muito religiosa, não que Julia se considerasse uma também. Caio tinha um olhar perdido, como se sua mente estivesse em outro lugar. Theo estava de olhos fechados, mas Julia sabia que ele não estava dormindo, e sim concentrado em seu estranho ritual.

Ela podia ver o prefeito na fileira da frente ao lado do cavaleiro da vila. Ela não o vira desde o dia em que ele fora à casa de Thierry. Tinha uma lembrança desagradável daquele dia, muito por conta do escudeiro do cavaleiro. Eduardo também parecia não gostar dele, revirando os olhos toda a vez que Caio o mencionava.

Eduardo estava sentado ao seu lado, assistindo a tudo em silêncio. Julia se perguntava se ele realmente estava prestando atenção a tudo. Julia se perdeu da metade do discurso para a frente. Entendera algo sobre como os fiéis eram guiados e protegidos por Ellday, por meio de uma narração sobre um grande guerreiro do passado. Aparentemente, aquele dia era especial por conta disso.

O pier, após concluir o sermão, chamou o cavaleiro para discursar. O homem subiu no altar. Usava uma camisa negra com a imagem de dois machados cruzados e uma coroa invertida estampada. Sir Alóis tinha um porte físico imponente, que, aliado a sua postura ereta dava-lhe um ar de dignidade.

Ele começou a discursar em voz alta e poderosa.

— Pier Rosei, prefeito Dóniz, Sir Thierry, meu caro povo, saúdo-vos nesse dia sagrado. Tenho a grande honra de passar convosco o dia de São Eliott Natanel. Um homem perseverante e corajoso, que me inspira todos os dias. E rezo para que inspire, e dê força, a todos os fiéis aqui presentes que ouviram o maravilhoso sermão de pier Rosei. Força para superar o luto pelos que se foram, e proteger os que ficaram.

Sir Alóis fez silêncio e fechou os olhos, abaixando a cabeça em sinal de respeito. A maior parte dos ouvintes fez o mesmo.

— E é o que faremos — Continuou. — Como alguns já devem saber, nossos batedores encontraram o covil dos ursos, e em breve os bravos homens de nossa guarda marcharão para exterminar essa ameaça e garantir que mais nenhum homem de nosso povo morra pelas garras desses monstros. Que a coragem de são Elliot, e as graças de Ellday estejam sobre eles nesse momento, e que eles voltem para suas famílias — O cavaleiro ergueu os braços e o povo levantou em um coro animado.

Julia olhou para Thierry. Ele movia os lábios em uma prece silenciosa, um hábito que a lembrava de sua avó.

O cavaleiro desceu do altar e um grupo em torno de dez garotas subiu após, erguendo suas vozes em uma canção cerimonial. Carmen se remexeu em seu lugar, tecendo comentários não muito agradáveis sobre duas delas, que trabalhavam no ateliê de madame Jackelin.

Uma, de olhos grandes iniciou a música. Sua voz era aguda, doce e suave, preenchendo todo o salão. Julia escutou a letra atentamente.

“O que buscas oh tu, que vaga sem temor?

Onde se deitas tu, que vives em dissabor?

O que procuras está além da visão.

O lugar em que descansas não há remissão.”

As outras, com timbres mais graves, a acompanharam.

“Vives em contendas, sem paz, sem perdão.

Lutas sem amor, com medo e sem razão.

Oh guerreiro sem virtudes, ouve o chamado de teu senhor.

Aceita tuas dores, e descansa em teu favor.

Não desprezes as palavras que querem o teu bem.

Escute a voz que chama a ti também…”

Julia apreciava a melodia, embora achasse a letra pouco atraente. Pelo que entendera do sermão dado pelo pier, a música deveria remeter ao momento em que são Eliott passou a seguir a Ellday.

As cantoras, hora se alternavam entre os versos, hora cantavam juntas, em um marabalismo harmônico tão melódico que Julia sequer se importava em não haver instrumentos enquanto apreciava.

Os outros pareceram compartilhar o encanto pelo coral. Até Carmen, que abrira os olhos de surpresa quando a garota de olhos grandes começou a cantar.

A música durou bons minutos narrando a queda do guerreiro Elliot e sua quase morte como um descrente, o que levou a plateia a um estado de apreensão. Mesmo sem entender muito da história por detrás da letra, Julia sentiu o coração pesar pelo guerreiro caído de quem antes nunca ouvira falar.

De repente a música ficou mais agitada. Algumas das garotas pararam de cantar a letra e passaram a fazer notas longas com a voz, encorpando o coro. Suas vozes subiam e desciam de tom, sem desafinar por um momento sequer. Pareciam um órgão feito inteiramente por vozes. A garota de olhos grandes, e outras duas que davam corpo à letra, cantavam com cada vez mais intensidade. Elas cantavam sobre a conversão do cavaleiro, e seu literal encontro com o próprio Ellday.

Era uma ideia estranha para Julia encontrar-se com um deus, ou era isso que ela pensou até perceber que havia se encontrado com. Ele não havia se nomeado como “Ellday”, e nem ela também havia perguntado seu nome. Gostaria de tê-lo feito. Pelo menos saberia de quem seria crente naquele momento, pois, para ela, aquele era o único deus que de fato existia. Se é que de fato era “Deus”.

“Honrai ao santo, cessai o pranto

Aqui jaz teu salvador.

Aqui jaz, aqui jaz… aqui jaz teu salvador.”

A garota de olhos grandes cantou o último verso, enquanto as demais entoavam uma nota cada vez mais aguda, até a melodia cessar. A última nota pareceu preencher toda a catedral antes de desvanecer no mais completo silêncio.

Após isso o único som que se podia ouvir era o fungar de narizes, e o choro dos ouvintes. Julia se perguntava se a música era mesmo tão emocionante assim para os fiéis em Ellday. Devia ser. Ela não se lembrava das pessoas serem tão devotas em seu mundo natal. Se pegou perguntando se isso era algo positivo ou negativo.

O grupo desceu do altar, sendo substituído pelo prefeito. O homem limpou a cabeça careca com um lenço antes de iniciar outro longo discurso sobre como o povo daquela vila era corajoso e resiliente. Algo enfadonho para os ouvidos de Julia, que só queria que aquilo acabasse de uma vez.

Após o final, o pier fez uma prece encerrando a cerimônia.

Uma grande parte dos ouvintes permaneceu na catedral para cumprimentar tanto o pier quanto o coral. Entre eles, o senhor Thierry.

Julia se moveu para o lado oposto ao que o fluxo de pessoas levava, saindo da catedral. Eduardo, Leticia e os outros caminhavam à sua frente. Em certo ponto, em que a multidão apertava com força e impedia a passagem, Eduardo a segurou pela mão e a puxou.

O lado de fora não estava menos lotado. Algumas centenas de pessoas conversavam entre si em frente à catedral. O prédio tinha outro nome, porém Julia não lembrava qual.

— Finalmente acabou — Theo murmurou, alongando os braços por cima da cabeça.

— Algumas coisas nunca mudam. Não acredito que ainda preciso ir à missa mesmo depois de morto — Caio falou, alto demais para Eduardo, que logo reclamou.

— Fala mais alto, ninguém ouviu você dizer isso.

Caio revirou os olhos.

— O lado bom é que não teremos turnos hoje — comentou por fim.

— Por isso gosto de feriados religiosos — disse Leticia, estalando os dedos e pescoço.

— O que a gente faz agora? — perguntou Carmen.

— Que tal darmos uma volta por aí? Não temos nenhuma obrigação hoje. — Julia sugeriu, olhando de forma inconsciente para Eduardo

Eduardo, que nos últimos dias manteve um semblante soturno, deu-lhe um sorriso.

— Pode ser — disse. — Vamos dar uma volta pela vila — Ele começou a andar a passos largos, puxando-a pela mão.

Julia se deu conta de que em nenhum momento ele a tinha soltado. Os outros não os seguiram.

Eles caminharam pelas ruas, que eram tomadas pouco a pouco pelo movimento daqueles que retornavam aos seus lares após a cerimônia.

Eduardo já não a puxava mais pela mão, embora ainda a segurasse. Ele controlava seus passos, ritmando-os com os dela.

As pessoas olhavam-nos passar com expressões difusas. Julia se perguntava o que deviam pensar. Se lembrava das palavras de Leticia naquele dia diante do poço, e se perguntava se Eduardo estava ciente daquilo. Aparentemente, pela forma com que agia, a resposta era não.

— Aonde quer ir? — Ele perguntou de repente.

Julia o encarou, sem conseguir conjecturar uma resposta à questão repentina. Eduardo ficou em silêncio por um momento e então voltou a falar.

— Tem um monte de lugares bonitos por aqui. Que acha de darmos uma volta por eles?

— Acho que… sim, quero — Mesmo após alguns meses, ela ainda não conseguia agir de forma natural perto dele.

Eduardo lhe despertara um sentimento novo, que lhe nublava os sentidos. Algo que ela nunca sentiu por amigo nenhum. Nem mesmo por Jonas, embora isso não apagasse o peso que vinha em seu peito ao lembrar dele. Naquele dia ela fizera sua escolha.

Eduardo a levou para fora da aldeia, onde os campos se estendiam vazios pelo horizonte. Algumas crianças brincavam próximas à estrada, vestidas de roupas sujas de terra.

As nuvens se espalhavam no céu azul como manchas de espuma no mar. O vento soprava pelos campos, remexendo as plantações. Tal cena era bela por si só, mas Eduardo insistia que eles veriam um lugar ainda mais bonito.

Eles seguiram pela estrada, se afastando cada vez mais da aldeia. Ao contrário dos outros, Julia não passeava tanto pelos arredores, então não conhecia bem o lugar.

Perguntou a Eduardo aonde iam várias vezes durante o caminho, mas ele dizia que era uma surpresa. Julia não via mais ninguém por perto. Nunca havia ficado de fato sozinha com seu namorado, então um misto de apreensão e expectativa lhe sobreveio.

Eles entraram em um bosque. Os galhos remexiam-se no alto das árvores, causando sons agradáveis. A visão daquela área fechada, porém, lhe trouxe memórias desagradáveis.

Lembrou-se de quando haviam chegado àquele mundo, em um charco de lama repleto de corpos. Da noite fria em meio a escuridão desconhecida. E dos monstros.

Suas mãos começaram a tremer e perder calor. Eduardo pareceu notar isso, dado que perguntou:

— Você está bem?

Julia parou, abaixou a cabeça e engoliu em seco antes de levantá-la e perguntar com a voz fraca:

— Para onde estamos indo?

Eduardo coçou a cabeça.

— Relaxe, já vamos chegar — disse com uma voz calma, e retomou sua passada.

Eles caminharam pelo bosque por mais um tempo e Julia ouviu um fraco som semelhante ao de uma torneira.

— É um rio? — perguntou.

— Uma cachoeira — Eduardo respondeu.

— É o rio? — Julia voltou a inquirir, e dessa vez a expressão de Eduardo alternou entre surpresa e seriedade.

— Não, não é aquele rio.

Julia suspirou aliviada.

— Mesmo assim, não é perigoso? Só estamos nós dois aqui.

— Os vigias estão bem agitados ultimamente. Percorreram uma área bem ampla e não encontraram nenhum perigo, à exceção do covil dos ursos, que fica um tanto longe. Além disso, eu costumava vir aqui com frequência quando trabalhava como lenhador, então acho que é seguro.

— Ah, sim — Julia assentiu, ainda guardando algumas reservas de preocupação.

Eles chegaram à cachoeira, uma pequena queda d’água com não mais de três metros, que desaguava sobre um raso riacho. A água límpida brilhava como pequenos cristais à luz dos feixes de sol que atravessavam a folhagem do bosque.

Era lindo, Julia reconheceu.

— Não trouxemos roupa de banho — disse ela.

— É, então não podemos nos banhar na cachoeira. Mas podemos pelo menos molhar os pés — Eduardo lhe falou, tirando os sapatos.

Julia concordou, tirando também os seus sapatos. A animação crescia dentro dela enquanto o fazia. No entanto, quando seu pé tocou na água, sentiu um calafrio, e outra memória lhe sobreveio, afastando a alegria.

Lembrou-se de outro rio em que entrara. Um que não pertence àquele mundo, ou talvez a nenhum outro.

Ela reprimiu essas sensações. Não deixaria-as transparecer. Não naquele momento.

Caminhou junto de Eduardo pela fina camada de água, sentindo os pés afundarem no musgo das pedras lisas por onde passava o pequeno corpo de água. Eduardo chutou em sua direção, espirrando uma grande quantidade de água. Ela respondeu com outro chute. Porém sem muita intensidade. Eles continuaram essa troca até que Julia se cansasse, e estivesse ensopada.

— Não é justo, você me molhou inteira.

Eduardo riu.

— Acho que agora não faz diferença nos banharmos na cachoeira ou não — disse ele.

— Mesmo assim eu não vou — afirmou ela.

— É mesmo? — Eduardo a pegou pelas costas e pernas e a ergueu do chão, carregando em seus braços. Julia corou e Eduardo começou a se mover em direção a cachoeira.

No entanto, após três passos, ele escorregou e caiu no rio. Julia por cima dele. O baque foi grande e Julia sentiu a pancada. Eduardo não se moveu.

— Edu — chamou, sem que ele respondesse. — Edu, tudo bem? — repetiu, com mais urgência, temendo que ele tivesse batido a cabeça.

— Edu — gritou.

— “Bu” — Eduardo girou, jogando-a na água. — Agora está completamente molhada.

— Idiota — Julia gritou, tendo um ecesso de raiva.

Eduardo voltou a rir e pegou em sua mão.

— Sim, é isso.

— O que?

— Foi por isso que eu aceitei o acordo daquele deus e vim para cá, e vim para cá. Foi para ter mais momentos assim — Sua expressão enrijeceu. — Vou ter que ir nessa caçada aqueles ursos.

Júlia engoliu em seco, lembrando-se do funeral, e de Jane, a lavadeira que perdera um ente querido naquele ataque.

— E também sei que não vai ser a última coisa perigosa que vou fazer. Para voltarmos, vamos precisar passar por mais situações assim. Eu só quero que saiba que farei isso para que possamos voltar juntos, todos nós.

Julia sentiu que devia dizer algo, mas não encontrou palavras para responder. Eduardo não esperou que ela falasse algo, e seus lábios se encontraram.

“Todos nós”, ele dissera.

Júlia se lembrou de um garoto de cabelos bagunçados. Perguntou a si mesma se o veria quando voltasse.

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Olá, eu sou Dellos, o panda!

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