— Morrigan! — chamo o nome do garoto.
Estou na cozinha mexendo uns temperos dentro de uma panela gigante, enquanto seguro uma concha grande para misturar tudo, olhando dentro da panela é apenas uma gororoba com condimentos vermelhos e verde. Hoje é o fim de semana, por esse motivo à noite vai ficar lotado, tenho que fazer os preparativos desde cedo. Meu marido vai tirar uma folga de cuidar da guilda, ai ele irá me ajudar a dar conta de noite, normalmente fazemos isso todo fim de semana, só que dessa vez temos uma ajuda extra.
Ele me olha e anda até mim, então o entrego um prato para ele levar para os clientes. Desde que esse menino chegou, ele tenta de todos me ajudar em fazer as coisas aqui no bar. O Morrigan está vestindo um pequeno avental que dei a ele, está um pouco grande para sua altura, mas até que coube nele. Seu cabelo preto desleixado e seus olhos vermelhos atraem um pouco as pessoas, uma pena que ele não sabe falar a nossa língua. As vezes minha filha o obriga a brincar, por isso em alguns momentos ele não consegue trabalhar comigo, claro, ele é apenas uma criança, não o forçarei a ficar aqui, em vez de brincar, porém vejo que ele não se diverte com as crianças, normalmente fica apenas sentado no chão com as costas apoiadas em alguma parede
Ele volta com o prato na mão com um rosto sério, na verdade, está mais para indiferente do que sério. É bem difícil eu o ver demonstrar algum tipo de emoção, até felicidade ou tristeza. Dá para sentir que está de alguma forma deprimido, só que sua expressão quase nunca muda.
— Mãe! — Minha filha acaba de chegar da rua com seu pai.
Os dois foram pegar carnes para mim. Matys vem correndo segurando uma cesta cheia, com o que pedi. Ela coloca a cesta em cima da mesa e anda até o Morrigan. Desde que esse menino chegou, os dois não se desgrudam, Matys sempre está indo o levar para algum lugar. Sinto que o garoto não liga para isso, então não me importei.
Sempre vejo as outras crianças arrumando confusão, mas apenas poucas vezes tentou revidar, porque os outros meninos sempre corriam antes. Há vários apelidos que o chamam, como: Demônio de olhos vermelhos, inimigo da humanidade, forasteiro, etc. Sempre fazem alusão aos seus olhos e ao fato dele não saber nossa língua, porém não me parece que ele se importe com isso. Na maior parte do tempo Morrigan fica viajando no próprio mundo olhando para o nada, nunca sei o que está pensando.
Pego uma faca e começo a cortar as carnes que minha filha trouxe, enquanto as pessoas chamavam o garoto pedindo suas comidas, a Matys o ensinou todos os tipos de refeições que servimos, e ele aprendeu rapidamente, por isso consegue entender em parte o que pedem.
Morrigan aliviou parte da pressão sobre mim de cuidar do bar sozinha. Até gosto dele, mas não saber o que pensa é incomodante, quando fazia as estratégias para as missões, a informação sempre é importante, se não a tenho, fico inquieta. Além da falta de comunicação, que não consigo supor, porque não sei nada sobre ele, apenas seu nome e que foi sequestrado. Já se passou uma semana e isso é tudo que tenho. Mesmo assim, esse garoto é legal, sempre tenta me ajudar, ou o Kynigos. Não me importo dele morar aqui com a gente. Sempre está se esforçando pela gente, nunca reclamou uma vez, que é algo que me preocupo, não é o que uma criança da idade dele deveria fazer. A minha filha sempre reclama quando coloco um vegetal específico na sua comida, ou quando acordo ela cedo, que é perfeitamente normal, porém esse garoto não faz uma má vontade, se fosse em qualquer outra situação não me preocuparia com isso, mas ele tem um trauma, isso deve ter algo haver. Queria poder ajudar ele, só que não consigo pensar em nada, se comunicar nunca foi algo que fiz quando era mercenária. Consigo entender os pensamentos dos meus adversários numa luta, não na vida real.
Compreender ele é um problema.
Há várias pessoas no bar, então estou trabalhando, bem não que eu ligue em trabalhar, o bom é que mantenho minha mente ocupada. Ainda não dormi direito, tendo crises de ansiedade durante a noite, mas consigo amenizar o cansaço meditando até amanhecer. Vi que tenho várias olheiras, preciso tirar uma soneca urgentemente.
— Morrigan! ▅▇▆▅▇▅▅▇▆▇▅▅▇ — Um dos clientes chama meu nome.
Ando até ele atravessando o bar cheio, tem gente no lugar inteiro, como é de noite, nessa hora aqui fica lotado. Eles estão sentados nas mesas, e elas estão espalhadas, com seu formato circular, para que as cadeiras fiquem em volta, ninguém está sozinho, por essa razão o barulho de risos e conversas é alto. Alguns lampiões estão na parede, dando uma coloração amarela pelo bar, mas ilumina bastante as paredes e chão de madeira. As janelas estão abertas, consigo ver a rua escura lá fora, o vento entrando por ela é confortável, além de relaxante, contradizendo pelo calor das pessoas que estão conversando.
Vou atravessando as mesas e chego no cliente, ele me fala seu pedido, depois vou até a cozinha repetindo as mesmas coisas para a Friggia que está cozinhando freneticamente, junto com o Kynigos. A sua filha está me ajudando a recolher os pedidos, porém ela só está correndo por aí conversando com todos, a Matys é bem queridas pelas pessoas daqui.
Ao contrário das crianças, os adultos são bem gentis comigo, me cumprimentam e tentam conversar comigo. Às vezes alguns me ensinam palavras novas, enquanto trabalho, por causa disso acabei aprendendo bastante da língua deles em pouco tempo. Consigo formular pequenas e simples frases, mesmo elas sendo difíceis de falar.
Os clientes param de pedir comida, então fico na porta da cozinha, que é apenas uma entrada ao lado do balcão, sem porta ou nada. Encosto meu braço na parede, enquanto espero alguém me chamar. Eu pensava que seria um problema ser camponês para sempre, fazendo sempre a mesma coisa, mas até não é ruim, eu sei que é impossível isso acontecer. É só um “boom” acontecer que tudo pode mudar, por isso não posso ficar parado esperando essa explosão, esse susto, um “boom” acontecer. Tem várias coisas que não entendo nesse mundo, como eu fui curado depois da tortura? O que é aquela figura? Onde estão as outras pessoas que estavam comigo? Preciso aprender mais sobre a história daqui, assim posso descobrir algo. Devo até conseguir falar com aquela figura e ele pode até reviver a Marina ou a Iris.
Outra pessoa me chama, então fico atendendo todos até eles irem dormir. Já é tarde da noite, e eu, Friggia, Kynigos estamos acordados, a menina já foi dormir. Ficamos sentados em uma mesa no centro bar, um ao lado do outro. Os dois já estão com cara de sono e cansados, também estou, mas não consigo dormir. Ambos estão bebendo vinho em silêncio, eu apenas fico observando de lado. Kynigos me olha e leva sua mão para a minha cabeça, bagunçando ainda mais meu cabelo que já é bagunçado, ele sorri com um rosto de bêbedo e sono. Eles se esforçaram hoje.
Kynigos então apoia seu braço na mesa, coloca sua cabeça no braço e dorme, facilmente assim. Friggia me encara e gesticula sua cabeça para o dorminhoco, ela se levanta, perde um equilíbrio um pouco quando fica em pé, acabado apoiando sua mão na mesa, que faz a balançar um pouco. Também me levanto e fico ao lado do Kynigos, nós dois o pegamos pelo braço e o levantamos, ela está com a maior parte do peso dele por eu ser menor. O arrastamos pelo chão até embaixo da escada, enquanto o solto e abro a porta, após isso o colocamos na cama. Ela acena com a cabeça e depois desmaia caindo na cama. Saio do quarto, fecho a porta, subo até o terceiro andar, faço minha cama de lençóis, então deito nela olhando o teto que é iluminado pela fraca luz da lua.