Chegando no refeitório, ando tranquilamente para me sentar no fundo dele, de novo. No caminho, sinto os olhares dos alunos e cochichos, eles me olham assim desde que o Dilliam conversou conosco.
Me sento nas cadeiras com o Temmos ao meu lado e a Demcis junto com a Maga na minha frente, com a mesa nos dividindo. Olho para o lado e observo o Temmos, ele está com um olhar cansado e sua camisa completamente suada, ele tirou o casaco
E, claro, a camisa dele é preta. Seu cabelo também está molhado de suor e todo bagunçado, seus braços descansam sobre a mesa. Parece que já perdeu toda a energia. Me viro para a Demcis e pergunto algo para ela. — O que você acha da sugestão do Dilliam?
— Huh? — Ela faz uma expressão de confusão. — Hum… não sei? Por que me perguntou isso?
— Nada, apenas curiosidade. — Apoio meus cotovelos na mesa e, logo após, entrelaço meus dedos, apoiando minha cabeça neles. Olho para os vários alunos no refeitório conversando. Pela proposta dele, faz parecer que quer o nosso grupo junto a ele, mas ele aceitaria se alguém daqui fosse sozinho até ele. Nada impede de alguém fazer isso e também não vejo importância, ainda não conheço esses três, não temos nenhum laço já que nos conhecemos há um dia e só estamos juntos, porque caímos no mesmo quarto. O Kynigos mandou eu ficar forte e chamar atenção, então se juntar ao Dilliam não seria tão ruim. — Ele falou sobre clãs mercenários, sabe o que é isso? Para que serve, ou se é bom se juntar? — continuo a perguntar para ela.
— Só um pouco. — Demcis olha para cima pensando em algo. — Eles são meio um pequeno exército para fazer as missões, eles se organizam, decidem qual missão irão fazer, então manda seus soldados. A maioria era de familiares e parentes, mas depois de um tempo várias pessoas de fora foram se juntando, por isso vários clãs cresceram rapidamente. — Ela para alguns segundos para pensar com a mão no queixo, enquanto faz “hmmmmm”. — Oh, se juntar a esses clãs é bom para novatos, já que vão te dar equipamentos, conhecimentos de áreas, mapas, algumas missões exclusivas, talvez até treinamento especial, o problema é que você perde certa liberdade. Esse é o básico que sei, eu acho.
— Obrigado. — Faço um sorriso para ela.
Se juntar em um clã tem muitas vantagens, talvez eu possa fazer isso. Perder minha liberdade não importa muito se eu puder ajudar ao Kynigos e a Metys financeiramente. Irei perguntar depois a ele se é bom se juntar a um clã, por enquanto, me manterei o mais neutro possível, não quero arranjar confusão, mais do que já arrumei
Demcis olha para mim e começa a falar. — Eu acho que não é uma boa ideia a gente se juntar a aquele cara.
— Por quê?
— Olha… — Ela gesticula com os braços. — Ainda não nos conhecemos nem conhecemos ele, só se passou um dia desde que chegamos e parece que esse cara está tramando algo, provavelmente já deve ter um plano mesmo antes de entrar aqui e, nesse tempo, ele não sabia que a gente existia, então ele apostou em se aliar a alguém forte, o que significa que para ele somos, tecnicamente, descartáveis. Ser descartável em um plano de alguém não é algo muito legal de pensar.
Já tinha percebido isso, mas esse cara está tramando algo desde o primeiro dia quando falou comigo. Que tipo de plano seria esse? E para que serviria? Recrutar mais gente? Não faz sentido. Bem, deve ser algum motivo que só para ele e seu clã faz sentido, não tem como eu saber agora.
— Isso faz sentido, tentar se manter neutro é uma boa idéia. — Olho ao redor e percebo que nenhum dos dois, a Maga e o Temmos, parecem querer falar algo. Com certeza eles não devem ligar para algo tão inútil que é pensar nisso. Por que eu me importo Vou só focar em treinar e esquecer isso.
Quando observo todo mundo, percebo uma coisa na túnica da maga. Como se cobre inteira, não consigo ver seus braços, mas há uma protuberância na roupa dela. Na parte do meio, que é aberta, vejo algo parecido com um livro. Então é isso o porquê dela sempre estar em silêncio, nem deve ter escutado o que dissemos.
Vejo algumas pessoas saindo da cabana segurando panelas e indo em direção ao refeitório. A comida chegou. Eles chegam e colocam essas panelas em cima de uma mesa de madeira colada na parede da cabana. Os alunos ao ver a comida, começam a formar uma fila por conta própria. Olho para o lado, vendo o Temmos se levantar e ir para a fila da comida.
Me levanto e sigo ele, Demcis vem atrás de mim. Na fila há vários cochichos e o barulho da conversa é alto, também sinto vários olhares para mim. — Ele nos abordou agora de propósito, não é? — a Demcis me pergunta.
— Sim.
Com ele falando com a gente em público e vários alunos olhando, devem pensar que ele fez algum tipo de aliança com a gente, ou com a maga. Isso deve diminuir a quantidade de pessoas nos incomodando, não consigo ver ainda as desvantagens dele nos usar. Tenho que observar as consequências desta ação, mas não acho que vai ser algo grande. Bem, agora ele deve ter cumprido uma parte de seus objetivos, garantir que a gente não se junte aos outros.
— Isso não te incomoda? Ser usado assim? — Demcis olha nos meus olhos.
— Por que incomodaria?
Ela fila em silêncio pela minha resposta, enquanto isso, a fila anda lentamente e acaba chegando a minha vez de pegar a comida. Me entregam um prato de cozido quente com um vapor subindo sobre ele. Volto tranquilamente até a mesa e me sento para comer. Observo todos com um prato de comida, menos a maga. Ela não está com fome? Bem, se ela decidiu não comer, deve ter um motivo, não há porquê me importar.
Com a colher de madeira, pego um pouco do caldo e provo ele. É salgado, só que parece não ter muito tempero. Como a comida devagar, aproveitando o gosto do caldo e das verduras. Nunca se sabe quando você pode ficar sem comer por dias. Pego a colher e sinto o cheiro do caldo para depois levar para minha boca. Mesmo não sendo a coisa mais gostosa que já comi, se tentar, sempre dá para aproveitar a comida.
Com o prato terminado, levo ela até uma mesa cheio deles, mas para isso, atravesso o refeitório com vários olhares me perfurando. Isso acontece toda hora. Depois de guardar o prato, volto para a mesa. Sentando nela, descanso meu corpo para digerir a comida, coloco meu braço em cima da mesa e apoio minha cabeça nele. Sinto o vento frio, já que não tem paredes no refeitório, mas não sinto tanto a frieza por causa do meu casaco. Afasto meus pensamentos e ignoro minha audição para descansar o melhor possível.
Depois de vários minutos, levanto minha cabeça. Olho ao redor e vejo que nada mudou, todo mundo está no mesmo lugar. A Demcis me olha com o cotovelo apoiada na mesa enquanto a mão segura a cabeça, além de uma cara de tédio. Temmos está olhando para frente em seu próprio mundo e a maga deve estar lendo alguma coisa.
Percebo o treinador andando no refeitório, qual será o próximo treino agora? — Vou dar vocês agora um pequeno descanso, mas não vai ser aqui. Me sigam.
Os alunos se levantam e seguem o Kayatos para a floresta adentro. Caminhamos atrás dele em uma trilha, enquanto isso, o pessoal conversa em seus grupos e ficam apreensivos do que vai vir agora. Após vários minutos, as árvores chegam ao fim e o que se mostra adiante é um grande rio. Os alunos se animam ao ver isso, mas é só algo momentâneo. Ao contrário de quando eu vi esse rio pela primeira vez, o céu está nublado e o vento é frio a ponto de fazer tremer. Por causa do vento, a água se move bastante, deixando ela turva, e as árvores balançam, não consigo ver os pássaros que costumavam voar por aqui, nem seus cantos.
— Não acho que quero entrar aí — comenta a Demcis.
O Kayatos manda todos entrarem na água, alguns hesitam antes de ir, porém por pressão do olhar do treinador, eles entram. Os alunos fazem uma fila, alguns não se importam com o frio e entram tranquilamente, já outros demoram, eles colocam seus pés para sentir o frio da água e vão lentamente. Depois de um tempo, chega a minha vez. Ao sentir a água gelada nos meus pés de maneira repentina, meu corpo estremece, mas ignoro isso e sigo em frente. A água sobe lentamente pelo meu corpo a cada passo que dou, e quanto mais me afasto da beira do rio, mais a água fica gelada. Paro em uma parte onde fico com apenas o pescoço para fora.
Os alunos estão espalhados com os corpos mergulhados, já que o treinador não deixou eles ficarem na borda. Meu corpo começa a tremer e meu queixo bater, cruzo meus braços para tentar ignorar isso e me concentrar em outra coisa. Com meus olhos fechados, escuto só meu queixo e os resmungos dos alunos. Respiro profundamente usando meu diafragma, então solto devagar. Só se concentrar na respiração.
— Treinador desgraçado — fala a Demcis. A sua voz treme. Abro meus olhos e vejo ela parada ao meu lado, também percebo o Temmos perto de mim.
Fecho os meus olhos, só que agora ouço as reclamações e xingamentos da Demcis para o treinador. Bem, parece que ela não é a única a reclamar dele, prestando mais atenção aos meus arredores, escuto os outros alunos xingando ele.
Dou uma longa respirada e mergulho, assim todo o barulho se acaba e é preenchido apenas com o som abafado da água se mexendo. Caio lentamente e chego até o fundo, onde cruzo minhas pernas para aproveitar o silêncio.
O dia parece tão longo, tanta coisa já aconteceu ontem e hoje, é diferente de cuidar da pousada, a única agitação que tinha lá era quando um bêbado tentava arrumar briga e a Friggia ou a Metys batiam nele, elas sempre são mais rápidas do que eu em agir, penso muito antes e isso me atrasa. Pensar muito… é interessante eu falar isso, sendo que tento não pensar a maior parte do tempo. As únicas vezes que realmente não penso é quando luto, pensando bem, mesmo assim, penso bastante, porém só no que está acontecendo na luta. Antes desse treinamento, fazia muito tempo em que não lutava, às vezes, o Kynigos lutava comigo, mas isso não era frequente. O meu ar começa a acabar, só que eu não subo para respirar, meu corpo tenta forçar a respiração, porém não deixo ele fazer isso, se não me afogo. Sinto o sufocamento na minha garganta. Agora toda a minha atenção está sobre uma coisa. Nada mais importa, se não o ar; o foco todo do meu corpo, nesse momento, é o oxigênio para meus pulmões, tudo o que aconteceu, todas as memórias, acontecimentos, passado, não importam. Tudo se apaga e a única prioridade do meu corpo é sobreviver. O presente. Se eu pudesse só se importar com o presente. Eu me importo com o presente, tenho que ajudar o Kynigos, a Metys e a Friggia. Mas isso é o futuro, não o presente… Eu me importo com o presente? O meu presente? Quando minha falta de ar atinge níveis críticos, descruzo minhas pernas e subo para respirar.
Voltando para acima da água, o barulho atinge meus ouvidos, os cochichos de reclamações e os tremores dos queixos. Abro meus olhos e, com meus cabelos atrapalhando a visão, vejo o céu nublado, as árvores balançando na beira do rio por causa do forte vento e os alunos se espremendo de frio. — Pensei que ia morrer lá embaixo — fala a Demcis.
— Só dando um mergulho.
Espero o treinador mandar a gente sair enquanto mantenho meus braços cruzados embaixo d’água.
— Voltem! — ordena o Kayatos após vários minutos.
Os alunos suspiram de alívio e correm até a borda do rio. Lá, eles fazem de tudo para esquentar seus corpos. Ouço vários espirros e tosses. Nado tranquilamente até a margem e depois caminho até onde a Demcis e o Temmos estão.
A garota se contorce e treme de frio. — Aqui parece estar pior do que dentro d’água — fala ela.
Eu retiro meu casaco molhado e o coloco no meu ombro. Ficar com uma roupa molhada só vai piorar a minha situação. O Temmos olha fixamente para frente, seu corpo dá uma tremidas periodicamente, parece que ele quer tentar não fazer seu corpo tremer.
Melhor eu aquecer meu corpo. Faço uma concha na mão e sopro ar quente nela, após isso, a esfrego. Me ajoelho no chão cheio de pedra e grama, então começo a fazer flexões, faço elas rapidamente e sem prestar atenção na técnica, é só para esquentar o corpo. Alguns alunos me vêm fazendo flexões e também tentam. Faço várias até perder a força, me levanto e faço alguns polichinelos.
Acho que está bom. Paro de me mover e descanso. Após minutos em pé, o treinador manda todos de volta para o rio. Os alunos que pensavam em voltar para a cabana soltam suspiros de cansaço. No momento em que volto para a água, o mesmo processo se repete, sinto o frio que parece congelar os ossos, os alunos com os queixos batendo, inclusive eu, e meus pensamentos focados em tentar se acostumar com o frio ou ignorá-lo.