Anayê acordou com o cântico dos pássaros, abraçada por uma sensação tranquila e quase mágica.
Continuou deitada por algum tempo ouvindo a canção alegre deles e apreciando o momento de calmaria.
Em seguida, se levantou, saiu do casarão e encontrou Thayala sentada próxima a um poço.
— De pé tão cedo — a ceifadora disse.
— Faz parte de um costume antigo.
Ali fora, diante do céu azulado manchado de tons alaranjados, o mundo parecia uma vastidão sem fim. Para onde quer que seus olhos virassem o horizonte se alastrava por milhares de quilômetros.
Thayala a observava com curiosidade. O brilho de fascinação nos olhos púrpuras de Anayê deixavam várias perguntas na mente da ceifadora e ela tentava imaginar o que a garota teria passado durante os anos na fortaleza.
Para Thayala, criada cercada por todo luxo possível, era um exercício difícil de fazer. Nunca lhe faltara nada. Nem amor, nem comida, nem roupas.
Apenas durante seu treinamento tivera algumas restrições ou repreensões, mas entendia o propósito daquelas provações.
Como seria não ter o abraço gentil da mãe a qualquer momento ou a presença protetora do pai?
Ela lutava para se colocar em tal situação, mas ainda era difícil.
— Está com fome? — perguntou Thayala.
Anayê assentiu.
As duas foram para a cozinha e prepararam uma refeição com pão, frutas e queijo, e devoraram rápido em silêncio.
Antes de terminarem, algumas crianças começaram a chegar e se juntaram a elas.
As crianças também fizeram muitas perguntas para Anayê. Curiosas de sua origem e das aventuras vividas ao lado do ceifador. Até mesmo os pequenos tinham ouvido sobre a queda da torre, mas escutar a história de uma pessoa deixou a todos extasiados.
Aos olhos deles, Anayê era um tipo especial de sobrevivente. Já para ela, aquele tipo de admiração era novidade. Ter vários olhinhos brilhando em sua direção e vibrando com as suas histórias era uma situação ímpar.
Infelizmente, vieram as perguntas que ela não queria ou não estava disposta a responder ainda. Nesses momentos, Thayala interrompia a curiosidade dos pequenos e Anayê ficava grata por isso.
Ela não era hábil na arte de fugir de uma conversa desconfortável, muito menos com crianças com as quais tivera tão pouca interação durante a vida.
A pergunta em particular sobre seu irmão a pegou desarmada. Há tempos ela fizera questão de treinar sua mente para fingir que Zafael estava morto, porém, todo esse esforço parecia estar ruindo depois do reencontro. E com tantos acontecimentos complicados em sequência, ela não tivera tempo para digerir o significado do retorno dele como general de Astaroth.
O mestre surgiu alguns minutos depois e após os cumprimentos casuais, se sentou e se serviu da refeição.
Ele revelou ter passado para ver Boyak e garantiu que o ceifador estava se recuperando bem.
— Louvado seja Os Três Que São Um pela resistência desse garoto — o mestre regozijou.
A notícia deixou tanto Anayê quanto Thayala mais tranquilas.
A ceifadora se sentia levemente culpada por não ter chegado a tempo de evitar seu amigo de fazer esforço.
— Após a refeição, eu te levarei até eles — o mestre se dirigiu a Anayê.
Os olhos roxos vibraram de ansiedade e curiosidade, alívio e desconforto, tranquilidade e agitação.
— E você ficará livre da runa de Astaroth de uma vez por todas.
Anayê levou a mão até a marca na testa. Era incrível pensar como havia esquecido daquele símbolo desde a sua chegada aos reinos livres.
A partir dali, ela foi possuída por inquietação, navegando por perguntas nebulosas.
E se não quisessem tirar sua marca? E se ela não fosse bem recebida? E se algo fosse cobrado?
Muito embora quase todas essas questões tivessem sido respondidas por Thayala e Boyak, ela não conseguia parar de temer. A sua vida inteira fora rodeada de medo e agora ela parecia abraçada por ele.
A refeição, enfim, terminou.
O mestre deixou as crianças aos cuidados de Thayala e elas adoraram.
— Venha comigo — o velho chamou.
Anayê seguiu-o para fora e por trás do casarão. Seus olhos se depararam com uma nascente na fenda de uma grande rocha. Entretanto, não era água que fluía dela e sim um líquido azul. Anayê se lembrou do frasco de Boyak e reconheceu o fluido de oração.
O mestre se aproximou da rocha e Anayê notou um prato pequeno em sua mão. Ele usou o objeto para coletar um pouco do fluido e voltou-se para ela.
— Beba apenas um gole.
Anayê bebeu e devolveu o prato ao mestre.
Por um instante, nada aconteceu. O líquido tinha gosto de água, mas quando descia ao estômago deixava um gosto de frutas mistas.
Foi então que ela viu uma ponte de corda se estendendo até uma ilha suspensa no ar.
Surpresa, a moça esfregou os olhos para ter certeza da visão, e mesmo assim, a ilha continuava lá, flutuando, como se estivesse segura por uma mão invisível.
— Agora a sua vontade será provada. Mas não importa, continue andando.
O mestre seguiu a passos lentos e vagarosos rumo à ponte de corda sem explicar o significado da frase.
Anayê caminhou atrás dele, um pouco inebriada por conta da visão.
Por fim, entraram na ponte e continuaram rumo à ilha flutuante.
O vento era suave e a construção não balançava muito. Mesmo assim, Anayê deu uma leve espiada abaixo e o chão estava tão distante que a floresta por onde ela, Boyak e Thayala passaram parecia uma porção de gramado.
Seu estômago embrulhou por um instante e ela quis voltar imediatamente. E se caísse? Teria sido tudo em vão?
Suas pernas bambearam. É melhor manter a marca do que perder a vida, a voz de seu irmão falou em sua mente.
Ela assentiu e paralisou. E, de repente, um vento forte estremeceu a ponte fazendo seus olhos arregalarem.
Se voltou para o mestre e viu-o prosseguindo tranquilamente como se o balançar da ponte não importasse.
Ele a esquecera? Sim, a deixara para trás sem se importar. O que ela faria agora?
O vento sussurrava uma mensagem: desista e retorne para a segurança da montanha.
Seu irmão berrava em sua mente com uma ordem: saia antes que seja tarde!
Anayê fechou os olhos e uma lembrança acertou sua cabeça, mas não era aquela que normalmente atingia.
Viu Boyak lutando contra a criatura invocada por Rom. Abatido, exausto, sem poder. Mas, por parte dele, ela nunca sentia um sinal de desistência. Ele sempre avançava.
E na ruína? Ele estava sozinho e cercado de inimigos, mas havia saído daquela situação e ainda a trouxera consigo.
O exemplo do ceifador era do tipo que valia a pena seguir e era o que ela desejava imitar com toda a sua alma.
Com os olhos fechados, Anayê moveu um pé devagar, silenciando as vozes em sua mente e mantendo apenas uma ordem: não importa, continue andando.
Deu o segundo passo confiante nisso e almejando ser como aquele ceifador, o destruidor da torre do maquinário.
Sua perna se moveu outra vez e então uma mão tocou a sua mão.
Ela abriu os olhos e viu o mestre sorrindo.
— Muito bem.
Então percebeu que já estava na ilha. Espiou atrás de si e viu a ponte, ainda estendida por longos metros.
Como havia chegado tão rápido?
Retornou o olhar para a ilha.
Havia uma grande casa feita de blocos com um jardim bem cuidado cheio de rosas e plantas coloridas.
Anayê acompanhou o mestre pelo caminho pavimentado até a entrada da casa e notou que a construção não tinha porta.
— Eles aguardam você — o mestre disse indicando para que ela entrasse.
— Você… não vem?
— Por enquanto, o encontro é apenas entre vocês. Teremos outros momentos para falarmos.
Anayê assentiu. Cerrou o punho, mais confiante depois da experiência na ponte.
Prometeu a si que seria mais forte e enfrentaria seus medos com mais coragem.
Deu um passo à frente e entrou na casa.