O primeiro cômodo da casa era uma sala incrivelmente decorada com uma estante cheia de pergaminhos e livros, quatro sofás, tapete e quadros.
Uma peça de madeira era usada como enfeite para abrigar os lampiões para iluminação.
Um retrato específico, pintado a mão, chamou a atenção de Anayê. Era uma pintura dela, adulta, com um belo e longo vestido púrpura claro que combinava com seus olhos, destacados de maneira quase viva no quadro.
De início, ela ficou maravilhada com a pintura e todos os seus detalhes. Porém, em seguida, começou os questionamentos.
Quem havia pintado aquilo? E como alguém tinha uma noção tão específica dela? Além do fato de que ela parecia um pouco mais velha no quadro.
— Gostou do nosso trabalho?
Ela tomou um susto e se afastou dois passos, instintivamente.
Um homem barbudo, robusto, vestindo roupas sujas de ferrugem e serragem entrou no cômodo.
— Seja bem vinda, Anayê — ele falou em tom entusiasmado. — É muito bom ter você aqui.
— Você é…?
— Eu sou o Inventor, mas alguns podem me chamar ferreiro, oleiro ou pintor — ele estendeu a mão.
Anayê percebeu várias pulseiras ao longo do braço largo do homem, além da cabeleira presa em um rabo de cavalo.
— Por favor, sente-se. Os outros se juntarão a nós em breve.
Ela encontrou um lugar no sofá e sentou, sem se acomodar muito. Ainda estava desconfiada e curiosa por conta do quadro.
— Fico feliz que tenha gostado do quadro — ele comentou ao se sentar.
Ela desviou os olhos para ele, retirando sua atenção da pintura.
— Então, me conte, por que você está aqui?
— Algumas pessoas me disseram que eu poderia me livrar disso — ela mostrou a runa.
— Oh! Claro! Podemos ajudar.
— E o que eu preciso fazer? Tem algum custo?
Ela só tinha se dado conta de valores naquele momento. E se fosse cobrado? Como pagaria?
Talvez pudesse pedir para pagar depois, quando conseguisse dinheiro.
— Esqueça isso, não cobramos.
A boa notícia trouxe tanto alívio quanto constrangimento.
Então, ela seria livre de seu maior pesadelo, seu maior fardo, sem nenhum custo?
— Gostamos de libertar as pessoas desse tipo de fardo. É uma das nossas especialidades.
Aquilo soou como música aos ouvidos de Anayê. Alguém que não apenas queria libertar, mas gostava de libertar as pessoas de Astaroth.
— O escriba está chegando e fará a remoção da marca.
— Muito obrigada.
— E o que você pretende fazer depois disso?
Anayê imaginou se a resposta poderia anular a remoção da runa, mas resolveu falar a verdade.
— Se for possível, quero me tornar uma ceifadora.
O Inventor esboçou um sorriso.
— Isso é um objetivo e tanto.
— É possível?
— Sim, com certeza. O mestre irá te ajudar com o treinamento e você será uma ótima ceifadora.
Naquele momento, outro homem entrou na sala. Possuía uma compleição física acima do peso e a cabeça raspada.
— Ora, finalmente nossa convidada está aqui — ele disse em alto tom.
Anayê fitou a característica mais marcante daquele homem, seu corpo estava repleto de pinturas de marcas e runas. Da cabeça careca até os pés descalços, não havia um pedaço sequer de seu corpo sem runas.
— Muito prazer, Anayê. É muito bom ter você aqui — ele estendeu a mão. — Pode me chamar de escriba.
Ela cumprimentou-o.
— Inventor, você não ofereceu chá para nossa convidada?
— Esperava por você para fazer isso — respondeu o outro.
E então o Escriba se apressou para o outro cômodo e voltou com uma bandeja com chá e bolinhos.
Anayê se serviu do delicioso chá e de um dos bolos.
— E o que achou da nossa pintura? — perguntou o Escriba.
A moça revisitou o quadro novamente e a cada olhar parecia admirá-lo mais ainda. Mesmo assim, a curiosidade perdurava e ela não sabia se soaria ofensivo perguntar a respeito dele.
— Você pode falar qualquer coisa, querida — o Inventor encorajou.
Anayê suspirou e tomou coragem.
— Como conseguiram me desenhar tão bem? Até onde sei nós nunca nos encontramos.
O Escriba soltou um risinho como se a pergunta soasse inocente.
— Nós sabemos tudo sobre você, Anayê.
— Como assim?
— Você nasceu no vilarejo conhecido como Primavera, certo?
De repente, uma lembrança foi desbloqueada na mente dela, o nome do vilarejo. Há tempos havia esquecido como se chamava.
Anayê franziu o cenho ao ouvir a informação.
— Estamos te observando há anos — o Inventor revelou.
Isso não era exatamente possível. Como Anayê não percebera que era observada? Como ela nunca tinha visto aqueles homens em sua vida? E qual era o interesse deles?
Sem perceber, ela estava se encolhendo no sofá e o chá em suas mãos estremecia.
— Também sabemos sobre o seu irmão que infelizmente escolheu o caminho perverso de Astaroth.
Era realmente doloroso ouvir a verdade sobre Zafael.
— Você sofreu muito, querida criança — o Escriba falou com tom tranquilo. — Mas ficamos felizes por Boyak ter cumprido seu propósito de trazê-la até nós.
— Oh sim, eu gosto da ousadia dele — o outro afirmou.
— Mas como isso é possível? Quem contou tanto sobre mim? — Anayê questionou com a voz carregada de certa indignação.
— Não é necessário que ninguém nos conte nada — uma terceira voz soou vinda da porta por onde a moça havia entrado.
Era um terceiro homem, mais baixo e mais magro, de rosto quadrado e queixo pontudo, com olhos castanhos escuros.
A sua voz era poderosa e grossa como um tambor, o que deixava tudo mais intrigante para Anayê, pois não combinava com a estatura do homem.
— Anayê, conheça o Guerreiro — o Escriba apresentou.
— É muito ter você aqui — o homem cumprimentou-a.
O seu cumprimento era firme e Anayê conseguiu sentir calos em seus dedos.
Ele trajava uma calça preta e uma camisa alaranjada. Seu cabelo era curto e seus braços compridos.
A moça ficou em silêncio por alguns segundos enquanto o Guerreiro se acomodava, questionando a natureza daquela experiência.
— O que você dizia, querida? — o Escriba a encorajou.
— O que isso significa? Quer dizer, eu não estou entendendo nada. Uma ilha flutuante, uma pintura minha e todo esse conhecimento a meu respeito. O que está acontecendo? — ela disparou e se sentiu constrangida por ir direto ao ponto daquela maneira.
— Nós somos uma representação simples do Deus Sem Face — o Guerreiro respondeu.
— Somos como uma pintura — o Escriba apontou. — Não é a pessoa real, mas uma forma de conseguir contemplar.
— Seria impossível para você vislumbrar a nossa completude nessa realidade — o Inventor incrementou.
Para Anayê, a situação havia piorado. Então Deus era um homem? Ou estava disfarçado de um?
— E qual de vocês é a representação de Deus?
Os três levantaram a mão.
— Somos os Três Que São e o Um Que É Três — o Escriba explicou.
— São três deuses então?
— Não — o Guerreiro respondeu. — Somos um Deus que é três.
Anayê estava ainda mais confusa.
— Vocês três são uma coisa só?
— Somos um e somos três ao mesmo tempo — o Inventor disse.
— Isso não faz muito sentido para mim — ela revelou e ficou surpresa por ter compartilhado a sua sinceridade.
— Dentro do mundo material, não há nada como nós. Estamos além da sua compreensão e da sua noção de fazer sentido — o Guerreiro comentou.
— Este é o modo como decidimos nos revelar para você, Anayê. E mesmo assim ficará confuso, pois eu não posso ser explicado em minha totalidade por sua mente.
Ela estava se esforçando para acompanhar a explicação, mas era uma informação muito complexa para assimilar.
A própria noção de Deus nunca tinha sido explorada por sua mente. Na fortaleza, Astaroth era deus. E, com tantas preocupações e privações, ela não tinha se importado em pensar a respeito disso.
— Mas, por enquanto, desejamos apenas uma coisa de você.
— O quê?
— Quero ser seu amigo — o Escriba disse.