A resposta a pegou de surpresa e a sua reação natural foi franzir o cenho e cerrar os lábios.
Amizade? Será que havia entendido corretamente? Então, aqueles três que juravam ser alguma representação do Deus sem face de Boyak, queriam ser amigos dela? Ora, não fazia nenhum sentido. Com certeza, havia algum engano.
Agora a sua confusão tinha triplicado mesmo. Por que um suposto deus gostaria de ser seu amigo? O que ela tinha para oferecer? O que ela tinha de especial? Ela não era ninguém, nem tinha dons, nem tinha feito algo surpreendente como derrubar a torre do maquinário ou conduzir fugitivos através dos reinos devastados.
O que faria uma divindade olhar para um ser passageiro senão por causa de um talento?
— Existem muitos porquês na sua cabeça — o Guerreiro falou.
A moça se encolheu no sofá outra vez e se sentiu envergonhada por ser tão transparente. Sim, Thayala já tinha falado sobre isso, mas era simplesmente inevitável.
— Se pergunta como um Deus poderia ser seu amigo, não é? — o Inventor comentou. — A resposta é muito simples, é porque queremos.
— Você acha que só gostaríamos de ser amigos de pessoas especiais? — o Guerreiro perguntou.
Anayê quase respondeu com um sim, afinal, a sua vida toda era rodeada de exemplos assim. Talvez, com exceção do ceifador.
— Esqueça a questão de méritos — disse o Escriba. — Sua mente está pensando a partir dos termos impostos por Astaroth e pelos homens, mas comigo não funciona assim. O que alguém poderia me dar que eu já não tenha? O que alguém poderia fazer por mim que eu mesmo não faça sozinho?
Os questionamentos deixaram Anayê um pouco pensativa. Quem poderia oferecer algo a um deus que ele mesmo já não tivesse? Nisso, eles tinham toda a razão. Porém, sua mente se recusava a acreditar na possibilidade de uma amizade sem trocas.
E os três aguardaram enquanto o Inventor servia mais chá para a convidada.
— Por isso, esqueça a maneira humana, aceite o fato de que queremos a sua amizade porque amamos você — o Escriba continuou.
— Eu… — ela hesitou e engoliu a saliva.
Pensou por um instante nas palavras a seguir. Seria uma resposta dura demais depois de toda a cortesia recebida?
— Sabemos o que está no seu coração agora — o Guerreiro revelou. — Você não se sente amada por ninguém.
Anayê franziu o cenho. De fato, aquilo passara por sua mente. E como sua mente parecia estar transparente, ela resolveu falar:
— O único amor guardado em mim é um resquício de lembrança dos meus pais — ela disse, devagar, ponderando bem as palavras. — E, talvez, o cuidado do meu irmão nos primeiros anos na fortaleza. — Suspirou. — Mas até mesmo ele me abandonou — disse aquilo para si mesma. — Eu sempre estive sozinha, abandonada, presa e refém desses medos e traumas. A minha vida dentro daquelas muralhas era ausente de qualquer tipo de amor e carinho…
Naquele instante, ela chegou a conclusão de que não sabia exatamente o significado do amor. Sua noção era um resquício longínquo e distorcido, uma fagulha ao ar de uma fogueira há muito apagada.
— Eu não sei o que é ser amada — confirmou e esperou por um minuto observando as reações dos três.
Os olhos deles transpareciam uma espécie de encorajamento e entendimento, e por isso, ela se sentiu impelida a continuar.
— Então, me desculpe, mas não acredito que um dia alguém tenha me amado. — Apontou o dedo para eles. — Muito menos vocês.
Ao mesmo tempo em que sentia raiva, Anayê também era abraçada por alívio vindo do fato de poder falar abertamente. Jamais tivera uma discussão como aquela com ninguém.
Os três não esboçaram semblantes raivosos ou frustrados, mas de tranquilidade e respeito.
— Você não nos ofende por falar como se sente — o Guerreiro admitiu.
— Embora do seu ponto de vista seja impossível ver, não há nenhum lugar desse mundo que não esteja abraçado pelo meu amor. Eu estava com você em cada noite naquela fortaleza, ouvi cada choro, senti cada surra, cada arrepio de medo, cada tremor, cada incerteza e cada lamento — o Escriba disse de modo calmo mas firme. — E fiz isso por todos lá dentro. Estou com eles exatamente agora, assim como estou com você aqui.
— Todo esse processo te moldou e te trouxe até mim, neste momento. O lugar onde eu quis que você estivesse desde que nasceu — o Inventor declarou.
Novamente, os questionamentos inebriaram a mente dela e, ainda impulsionado por esse misto de sensações, ela falou:
— Então meus pais precisaram ser mortos para que eu estivesse aqui? — suas palavras duras saíram com um tom de remorso — Precisei ser humilhada e abandonada para te conhecer?
— Isso faria de mim uma espécie de monstro, não? — o Inventor questionou.
— Essa é uma forma simplista de ver os fatos — o Guerreiro falou.
— Querida, existe uma complexa teia de escolhas a ser levada em consideração. As escolhas dos seus pais, do seu irmão, dos escravos, dos ceifadores e até mesmo das aberrações. Há muitas coisas acontecendo no mundo que não gosto, mas eu trabalho nessas escolhas de uma forma que você não consegue sequer imaginar para que tudo convirja para a minha vontade ser realizada e assim, todas as situações ruins ou dolorosas se convertem em bem por minha causa — o Escriba explicou falando de modo pausado para deixar seu ponto claro.
— O mundo está cheio de tragédias terríveis, mas eu trabalho para transformá-las em força, coragem e esperança. Sem mim, tais qualidades seriam apenas ilusões, pois ninguém é capaz de reverter essas calamidades — o Inventor comentou.
Eles esperaram enquanto Anayê tentava digerir toda a explicação. Era a primeira vez que procurava enxergar o mundo daquela maneira. Talvez fosse por causa deles que Boyak era tão esperançoso e corajoso, porque ele via algo diferente dos outros.
— Não é fácil compreender, nem aceitar essas questões — foi o Guerreiro quem falou — Para tal discernimento é necessário uma confiança natural em mim, mas para confiar você precisa me conhecer primeiro. Não existe confiança sem relacionamento. Portanto, para começar, só desejamos a sua amizade.
— Ou melhor, para começar, vamos remover essa runa.
O Escriba fez um movimento rápido com a mão e tudo o que Anayê conseguiu ver foi um vulto avermelhado atravessando a sala até a mão do homem. Aquela sombra se impregnou na pele dele e, tal qual um inseto, perambulou por seu braço até se tornar uma das marcas em seu corpo. No entanto, ele não pareceu se incomodar.
A moça tocou a testa e procurou algum lugar para enxergá-la. Por um momento, ansiou de modo desesperador ver seu rosto como se fosse morrer caso não o fizesse, mas então o Inventor se aproximou com um espelho moldurado e entregou-lhe.
Seus olhos arregalados buscaram sua imagem e suas mãos estremeciam como espigas de milho na tempestade.
Quando viu sua testa livre daquela runa era como se tocasse um sonho de infância, como se algo totalmente vindo de sua mente se tornasse real.
Ela levou uma das mãos até o local outrora ocupado pela marca e sentiu a pele lisa.
Emoções brotaram e transbordaram do fundo de seu coração machucado e, com elas, um misto de sorrisos e lágrimas, alívio e euforia, liberdade e alegria.
Por mais que imaginasse e sonhasse muitas vezes com aquele momento, nunca tinha passado por sua mente estar livre, de verdade, da runa de Astaroth. E, para sua total surpresa, agora estava.
Sua voz se perdeu no choro e no riso, e o espelho se encheu de gotas grossas de lágrimas.
O semblante dos três também se encheu de alegria enquanto viam a moça emocionada. O Guerreiro se aproximou e deu um lenço para ela.
Anayê assentiu em agradecimento e continuou fitando o próprio rosto no espelho por um bom tempo, admirando e apreciando o momento.
Ninguém comentou nada. Deixaram a moça ficar com seu silêncio pelo tempo necessário.
De repente, Anayê ergueu o rosto como se tivesse sido atingida por uma ideia repentina. Ela fitou o corpo do Escriba outra vez notando as marcas de vários formatos e tamanhos, e compreendeu a verdade sobre aquilo, e essa noção se juntou aos outros sentimentos fervendo dentro de si.
O Escriba olhou e acenou com a cabeça, e Anayê, por sua vez, também assentiu. Os dois não precisavam dizer nenhuma palavra. Ela estava eternamente satisfeita por estar ali, e o sentimento era recíproco.
Então a moça devolveu o espelho para o Inventor e observou com olhar atento para cada um daqueles homens, as representações de um Deus. Não tinham nada de divinos, nem no modo de vestir ou de falar. Facilmente confundidos com um aldeão qualquer. Poderia um Deus se vestir de homem? E se ele se fantasiasse de humano, escolheria o mais comum?
Ela não possuía todas as respostas, mas o fato de estar liberta da runa contribuiu para o princípio da confiança.
— Muito melhor agora, não é? — o Inventor comentou.
Ela balançou a cabeça e esboçou um sorriso.
— Obrigado — falou, por fim. — Muito obrigado.
— O que acha de mais chá com bolinhos?
— Seria ótimo — Anayê respondeu.