Conforme meus pés tocavam os primeiros degraus da escada em espiral rumo ao terraço, a luz do entardecer banhava o ambiente com tons de laranja e violeta. A cada giro, a luz intensificava-se, filtrando-se pelas janelas e banhando o espaço com um fulgor dourado.
Ao alcançar o cume, empurrei a porta de metal, parcialmente aberta e emitindo um rangido suave. Ela se abriu com um leve gemido, desvendando uma paisagem de cortar a respiração.
O céu se desdobrava à minha frente, um vasto manto de azul celeste salpicado por nuvens que pareciam flocos de algodão, flutuando indolentes no horizonte. Uma brisa leve brincava com meus cabelos, carregando o aroma adocicado da grama fresca que revestia o teto.
Meus olhos se fixaram em Mandy, encostada na grade com sua katana em mãos, cuja lâmina reluzente capturava a luz do sol como uma brasa que se apaga, destacando-se nessa serenidade envolvente.
Embora sua postura habitualmente vibrante estivesse um tanto desfalecida, era compensada por uma tensão silenciosa que se irradiava de sua figura esbelta. Seu respirar descompassado se fazia ouvir em suspiros ritmados. Em sua testa, o suor reluzia como gotículas de orvalho em uma pétala de rosa.
— E aí.
Ela virou-se para mim, revelando um sorriso tênue.
— Ah, oi, Krynt. — falou ela, com a voz rouca de cansaço. — Tô… praticando um pouco.
Ao me aproximar, percebi os tremores leves em suas mãos e o jeito como ela manuseava a katana para envainhá-la, além dos cortes e arranhões superficiais marcados no concreto.
— Parece que você se dedicou bastante. — comentei, um tanto impressionado.
Porém, em seus olhos, persistia uma força conhecida, um brilho de determinação que se negava a ser apagado pelo esgotamento.
— Eu tenho que melhorar. Preciso ficar mais forte.
Ela recostou-se no corrimão e desceu suavemente até se acomodar no chão. Ao me aproximar, a paisagem urbana de Eugene se desdobrou diante de nós. Torres e edifícios recortavam o horizonte, enquanto o rio Willamette se entrelaçava por entre eles, uma faixa cintilante de prata. No horizonte, a imponente Hood Mountain erguia-se majestosa, seu topo nevado.
Era um panorama de tirar o fôlego, uma fusão harmoniosa da beleza natural com a urbana.
— É linda, não é? — ela perguntou, com um leve sorriso nos lábios.
— Linda é pouco. — disse, me sentando ao seu lado. — A vista daqui é incrível.
— Quando estou aqui, me sinto renovada. É como se todas as minhas preocupações simplesmente desaparecessem.
— Eu sei o que você quer dizer. Esse lugarzinho me acalma também.
Meu olhar se desviou para os cortes superficiais espalhados pelo concreto e os apontei com meu dedo indicador.
— Você sempre é tão dura consigo mesma, não é?
Mandy deu uma risadinha, um som seco e sem humor.
— Talvez um pouco. — admitiu, limpando uma camada de suor da testa. — Mas eu não consigo evitar. Eu só…
Sua voz se arrastou, deixando a frase inacabada.
— Não se sente forte o suficiente? — terminei por ela.
Ela me encarou, uma centelha de vulnerabilidade atravessou seu rosto antes dela se recompor.
— Isso. Quero ser um escudo para as pessoas com quem me preocupo, uma força do bem diante desse mundo bagunçado. Mas às vezes… — Ela apertou a mandíbula, frustrada. — Às vezes sinto que não estou nem perto, que sou apenas uma garota comum, com fraquezas e medos como qualquer outra.
Seu olhar, recaído sobre os meus, buscavam consolo em minha compreensão. A menina resiliente que havia por baixo foi exposta pela quebra de sua fachada obcecada pela força.
— Na verdade, só o fato de ser forte o suficiente para se levantar quando cair já é o bastante.
— Você acha? — perguntou, com a voz hesitante, como se estivesse testando a validade da minha afirmação.
— Sim, acho que sim.
Inclinei minha coluna levemente para frente, apoiando os antebraços sobre os joelhos e fixando meu olhar no chão. Uma onda de nostalgia me invadiu enquanto as palavras saíam de meus lábios:
— É um pouco estranho dizer isso, Mandy, mas você me lembra muito a minha irmã mais velha.
Ela ergueu uma sobrancelha, um vislumbre de surpresa cruzando suas feições antes que um sorriso brincalhão surgisse em seus lábios.
— Nossa, sério? Como ela é?
Hesitei por um momento, buscando as palavras certas para descrevê-la.
— Difícil, com certeza. Alguém com quem eu sempre podia contar, não importava o que acontecesse. Teimosa como uma mula também, às vezes.
Balancei a cabeça, com uma lembrança agradável brilhando em meus olhos.
— E inteligente. Bom, talvez não tão inteligente quanto eu. — acrescentei, virando meu rosto para ela e dando uma piscadela.
Uma risadinha genuína escapou dela, com um som encorpado e rico, diferente das risadas secas anteriores.
— Parece que você a admira muito.
— Mais do que você imagina. Ela é alguém que eu sempre admiro, alguém que me inspira a ser uma pessoa melhor, a me esforçar mais.
— Então é isso que você pensa de mim?
Um nó se formou em minha garganta. Encontrar as palavras certas era como tentar domar um turbilhão de pensamentos.
— Vocês duas… vocês têm algo em comum, Mandy. — Finalmente consegui articular. — Uma visão negativa de si mesmas.
As sobrancelhas dela se ergueram de surpresa.
— Visão negativa? — repetiu, com confusão evidente em sua voz.
— Sim. Vocês duas se cobram muito, se colocam para baixo, se comparam com os outros.
Mandy se conteve por um momento, absorvendo minhas palavras, seus olhos se desviando para o chão enquanto processava o que eu havia dito.
— A Kate sempre se acha insuficiente. Pra mim isso não faz sentido.
Com um abraço apertado, ela parecia estar correndo para sua arma em busca de segurança. Com os ombros curvados, ela deu a impressão de ser uma garota indefesa.
— Eu só me sinto fraca. Lewis ainda está inconsciente, lutando por sua vida, e eu deveria estar lá em seu lugar. Ele sempre me protegeu, sempre me salvou, e eu nunca fui capaz de fazer o mesmo por ele.
As palavras saíram como um lamento. Ela se sentia desamparada e culpada, como se fosse uma mortalha grossa.
— Sempre fui a protegida, a que precisava ser salva. E agora, quando chega a hora de retribuir, de ser a sua fortaleza, eu sou incapaz de fazer qualquer coisa.
As palmas das suas mãos, calejadas pelo treinamento e pelas batalhas, apertavam com força o cabo da katana, buscando um conforto que não vinha. Suas unhas estavam pressionadas contra sua pele, enquanto ela fechava os punhos.
— Se eu estivesse lá, se eu tivesse sido mais rápida, mais ágil… — Ela contraiu os lábios, tentando conter as lágrimas que teimavam em cair. — Ele não estaria assim.
Mandy desejava sentir dor física para escapar de sua situação de impotência. Queria chorar, gritar e se quebrar em um milhão de pedaços.
— Gostaria que as coisas fossem de outro jeito.
Ela teve um súbito surto de vertigem, fazendo-a sentir como se o mundo estivesse desmoronando ao seu redor.
— Você é a pessoa mais próxima da Raven, né? — perguntei, tentando trazer um pouco de lucidez à sua mente. — Imagina como ela se sentiria vendo você assim.
Mandy ergueu a cabeça, seus olhos marejados encontrando os meus. Havia uma mistura de dor, confusão e esperança em seu olhar.
— Raven…
Ela murmurou seu nome e as lembranças dela surgiram em sua mente como um farol em meio à tempestade.
— Seja sua própria força.
A faísca se acendeu, uma pequena brasa que se prendeu na brasa seca da determinação de Mandy. Com uma respiração trêmula, ela enxugou as lágrimas com o dorso da mão.
— Vou treinar até meus músculos gritarem e meus pulmões queimarem. Vou melhorar a cada dia. Vou me tornar a melhor agente que esta agência já viu.
Ao levantar-se, seu olhar encontrou o meu. Levou a ponta da bainha de sua katana acusadoramente em minha direção.
— E você, novato… — continuou, com um tom soando com autoridade recém-descoberta. — Você não poderá desistir de nós. Nem você, nem nunca. Entendeu?
O peso de suas palavras recaiu sobre mim. Eu não poderia decepcioná-la, não depois de ver o sinal de esperança que eu havia acendido em seus próprios olhos.
— Não, Mandy. Eu não vou desistir.
Um lampejo de algo semelhante à aprovação passou por suas feições.
— Ótimo. Amanhã vamos ter um treinamento com o pessoal e é pra você estar lá também.
O momento frágil se desfez quando Mikael chegou ao terraço, passando pela porta que eu havia deixado entreaberta.
— Aí está você! Desculpe interromper seu flerte, mas precisamos de você, Krynt.
O rosto de Mandy ficou em polvorosa. A vermelhidão começou no pescoço, subiu pelas bochechas e finalmente chegou às pontas das orelhas, pintando-a com um rubor furioso.
Ela se virou em direção à Mikael, seus olhos brilhando como um fio elétrico prestes a entrar em curto-circuito.
— Flerte?! — esbravejou. — Não houve flerte nenhum!
Mikael, alheio à tempestade que se formava ao seu redor, caiu na gargalhada.
— Tá, tá bom. Espero que os dois pombinhos já tenham terminado de cantar. Vamos, Krynt, precisamos de você lá embaixo.
Levantei-me, com a pergunta não dita pairando no ar. Antes que eu pudesse expressá-la, ela encontrou meu olhar:
— Vou descer em um minuto.
A raiva que coloreava seu rosto se dissipou gradualmente, dando lugar a um leve rubor de constrangimento. Com uma respiração profunda, ela se esforçou para recuperar a compostura.
Assenti com a cabeça, confirmando que a havia entendido. Em seguida, andei em direção a Mikael.
— Já está tudo pronto?
— Pronto quando você estiver. Ele está te esperando.