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Sala do Laboratório, 11h35am.

O local, que os Pesquisadores ingenuamente batizaram de Laboratório Cinco, era uma ilustração do caos ordenado. As janelas imundas no alto da parede norte deixavam a luz entrar, mas a sala nunca estava clara. Sob a luz verde intermitente de um reostato, partículas de poeira rodopiavam no ar, com o interior exposto como um besouro agonizante. 

Um espectrômetro de bioluminescência pesava sobre uma estação de trabalho no lado oposto da sala, com sua superfície cromada corroída por anos de negligência. Havia béqueres empilhados uns sobre os outros, alguns com nuvens de misturas esquecidas e outros com os distintos anéis de arco-íris de materiais desconhecidos. Havia cálculos escritos à mão em todo o fundo amarelo desgastado, juntamente com imagens de símbolos não identificados.

No entanto, em meio a essa cena de caos administrado, havia indícios de uma tentativa corajosa de restaurar a ordem. Um caroço de maçã parcialmente consumido repousava no peitoril da janela, dando um toque de cor contra os tons cinzentos industriais. Uma caneca rachada com um gato de desenho animado desbotado segurava o café frio, seu vapor era uma resistência momentânea ao frio que se aproximava. Esses eram os restos de pessoas cujo único e insaciável desejo era o conhecimento, mesmo às custas de sua sanidade.

— Aumente a frequência de ressonância em mais 20 hertz.

Olivia Grant, uma pesquisadora de ponta, estava no centro desse pandemônio orquestrado. Olhos azuis vividos por trás de seus óculos de aro grosso refletiam sua mente afiada. Seu jaleco branco tinha marcas de uma dúzia de experimentos distintos, uma tela manchada de verde-esmeralda de uma reação química errônea e uma mancha carmesim de uma amostra de sangue. 

— Uhm… certo.

Seu assistente, Evan Hayes, recostou-se em sua cadeira. Vestia um jaleco limpo, tinha cabelos castanhos-escuro bagunçados e olhos pretos. 

Apesar do adiantado da hora, a energia nervosa crepitava ao seu redor como eletricidade estática. Operando os mostradores de console, o tremor que sacudiu a sala com a vibração de baixa frequência fez com que ele estremecesse um pouco, mas seu olhar permaneceu fixo nos monitores. 

Um cubículo-prisão confeccionado com vidro reforçado extraordinariamente espesso, que estava no centro da sala, foi sacudido até os alicerce. O Mephisto aprisionado não era mais apenas uma sombra; em vez disso, ele se transformou em uma paródia obscena de um ser humano. Seu corpo, uma confusão de ossos e carne retorcidos em combinações insondáveis, pulsava com um brilho sobrenatural. 

Os membros retorcidos, com suas extremidades farpadas batendo no vidro inflexível, faziam um som semelhante ao de pregos em um quadro-negro. Os monitores começaram a emitir mais sons de alarme, como se o próprio ar ao redor do objeto estivesse saturado de energia negativa.  

As mãos de Evan tremiam ligeiramente enquanto ele mantinha os ajustes, com o olhar obscurecido por uma centelha de preocupação genuína. 

— Você realmente acha que podemos controlar essa coisa? Cada tentativa até agora foi um… bem, um desastre, para dizer o mínimo.

A fadiga marcava linhas no rosto dela, linhas que refletiam a crescente rede de rachaduras que serpenteavam pelo vidro da câmara de contenção. Uma mistura de apreensão e exaustão guerreou em sua expressão.

— Controlar isso? — Ela repetiu, sua voz rouca por falta de sono. — Evan, esse navio partiu há muito tempo. Não estamos brincando de Deus aqui, mas sim tentando entender a mecânica. Precisamos saber como um Mephisto interage com uma alma humana, como ele explora as lacunas, as vulnerabilidades. Essa é a chave para a prevenção, não para o controle.

O olhar deles se deslocou para o outro extremo da sala, onde ficava outra câmara. Dentro havia um outro Mephisto, uma cobaia humana, com os olhos vidrados, no meio de um experimento de possessão. Eletrodos foram presos ao seu corpo, ligando-o a uma infinidade de máquinas que traduziam sua atividade neurológica em dados nas telas.

— Observe os padrões das ondas cerebrais. — disse Olivia, apontando para um pico particularmente errático em um monitor. 

Cobaia de Teste Humano H-3

Experiência de Possessão de Mephisto – Dados em Tempo Real

Atividade de ondas cerebrais (EEG):

Frequência (Hz): Amplitude (μV)

Delta (0,5 – 4 Hz): 3 (Normalmente 50-100 μV) – Significativamente suprimido, indicando um estado profundo de inconsciência e atividade cerebral mínima.

Teta (4 – 8 Hz): 25 (Normalmente 20-40 μV) – Elevado, sugerindo um estado dissociativo e possível vulnerabilidade à possessão.

Alfa (8 – 12 Hz): 8 (Normalmente 30-60 μV) – Moderadamente suprimido, indicando ainda falta de vigília ou relaxamento.

Beta (13 – 30 Hz): 12 (Normalmente 15-30 μV) – Linha plana com picos ocasionais, sugerindo uma luta pelo controle entre o Mephisto e a própria consciência do sujeito.

Gama (30+ Hz): OFF CHART – Rajadas extremamente altas e erráticas, excedendo os limites normais. Isto sugere um influxo avassalador de informações ou estímulos bombardeando o cérebro do sujeito, possivelmente a partir da presença do Mephisto.

Dados Adicionais:

Frequência cardíaca: 180 bpm (extremamente alta, indicando estresse intenso ou esforço físico)

Pressão Arterial: 190/120 mmHg (crise hipertensiva, potencialmente fatal)

Condutância da Pele: ↑ (Aumento significativo, o que equivale a uma maior estimulação emocional)

EMG (Atividade Muscular): ↑ (Picos erráticos, sugerindo contrações musculares involuntárias ou tremores)

Notas:

  • O córtex pré-frontal e a amígdala, em particular, exibem um alto grau de sincronização, de acordo com a análise de coerência. Essa estranha coerência pode indicar que Mephisto está tentando manipular as emoções e os processos de pensamento de ordem superior do sujeito.
  • A latência da onda P3001 é visivelmente estendida, o que normalmente está relacionado ao tempo de resposta e à tomada de decisões. Isso aponta para um possível conflito entre a vontade do sujeito e a de Mefisto, o que pode ter causado um atraso na capacidade do sujeito de processar informações e responder a estímulos.

A testa de Olivia franziu enquanto ela estudava os dados. 

— A ausência de ondas gama é preocupante. Na cobaia recém-capturada, isso sugeria uma amplificação de algum processo desconhecido. Neste caso, a ausência completa… poderia ser uma supressão. O Mephisto pode estar amortecendo ativamente as funções cerebrais superiores para manter o controle. 

Evan coçou o queixo, a barba por fazer refletindo a forte luz fluorescente. 

— Talvez esse seja o jogo dele, Liv. Como um rádio, você tem que encontrar a frequência certa para abafar a estática e transmitir seu próprio sinal. O Mephisto está sequestrando as frequências centrais do cérebro, tentando transformá-lo em seu próprio aparelho de som pessoal.

— Então, a posse não é apenas uma aquisição. É uma fusão. O Mephisto alinha sua energia negativa com a frequência única da alma. É assim que ele ganha controle.

— Bingo! — Ele estalou os dedos, um sorriso genuíno dividindo seu rosto. — Se pudermos interromper esse alinhamento…

— … podemos quebrar a posse. — concluiu Olivia, com os olhos arregalados de compreensão. 

Por um momento, os seus olhares ficaram fixos, um acordo silencioso entre eles. As implicações eram inquietantes, mas algo se tinha acendido dentro deles, uma esperança que não ardia há muito tempo. Podiam não saber tudo, mas pelo menos tinham um alvo e uma frequência para interferir. Por enquanto, isso bastava. 

— Cacete, Liv. — Riu-se e passou a mão pelo cabelo já bagunçado. — Isso não é um exorcismo de filme ruim, é? Não estamos falando de um demônio que está apenas pegando carona. Isso é algum… Algum tipo de fusão.

— É como… bem, você já viu aqueles documentários sobre a natureza onde um parasita toma conta de seu hospedeiro? Como uma formiga zumbi ou algo assim?

Evan fez uma careta. 

— Uh… bom, sim, isso faz muito mais sentido. Como um jogo de Tetris.

Olivia bufou. 

— Tetris? Sério?

— Ei! Foi a primeira coisa que me veio à cabeça! — Se defendeu, com um brilho brincalhão nos olhos. — Embora, pensando bem, talvez mais como um Xenomorfo de Alien? Você sabe, como ele sai do peito e assume o controle?

— Ugh… — Estremeceu dramaticamente. — Agora você está apenas me dando nojo. 

Ouviu-se da câmara de contenção um grito agudo e inesperado. A coisa começou a se mover de forma errática e frenética. A frequência do Mephisto e a da alma começaram a se distanciar nos monitores, e uma oscilação ameaçadora apareceu.

— O desestabilizador! — Evan gritou.

— Mantenha sua posição, porque estamos testemunhando o ponto de ruptura! Documente tudo!

Um grito esfuziante encheu a câmara quando a forma do Mephisto começou a se desfazer, com os tentáculos escuros se retraindo e se tensionando. O corpo da cobaia tremia ferozmente, imprensado entre o material e o espiritual.

— Frequência em níveis críticos. — relatou ele, sua voz mal mascarando seu medo. — Precisamos desligá-lo!

— Ainda não! — Grant insistiu, com os olhos fixos na criatura que se debatia. — Precisamos ver o que acontece a seguir.

Em um último e excruciante minuto, o Mephisto desapareceu, deixando um resquício cintilante que se agarrou ao ar como uma névoa. A cobaia parecia estar morta quando caiu.

Um silêncio se abateu sobre o laboratório. Tanto o monstro quanto o homem exibiam linhas planas nos monitores.

Olivia caminhou em direção à câmara de contenção, prendendo seu cabelo em um coque, escapando pontas ao redor de seu rosto, emoldurando o sulco persistente em sua sobrancelha.  

— Conseguimos. — sussurrou. — Está mal otimizado, mas conseguimos.


Toc Toc

Após duas batidas, o recém-chegado abriu a porta. 

— Nicholas, que bom que veio.

O homem franziu a testa com uma ponta de apreensão. Ele não era capaz de tirar conclusões precipitadas, mas a urgência da convocação da vice-líder o fez imaginar o pior.

Inalou profundamente e se forçou a manter a calma antes de entrar. Havia um sabor enjoativo no lugar do aroma familiar que normalmente o recebia – uma combinação de canela e couro. Isso o gelou até os ossos e deixou uma sensação amarga no fundo de seu estômago.  

Com um estalido suave, ele fechou a porta. Caminhou até a mesa onde ela estava sentada enquanto olhava para o rosto dela, procurando respostas.

— Sente-se, por favor. — Apontou para a cadeira à sua frente.

Como pedido, Nicholas acomodou-se no assento.

— Fomos contatados recentemente com uma denúnica. Aparentemente, um Mephisto se manifestou em um estúdio de animação independente em Portland. Wonderheart Studios, pelo nome.

Nicholas fez uma expressão de surpresa, com um lapso de reconhecimento em seu rosto. 

— Wonderheart? Não eram eles que estavam ultrapassando os limites ultimamente? Tentando integrar alguns… elementos não convencionais em seu trabalho?

— São eles, mas as coisas ficaram um pouco fora de controle.

— Isso é… inesperado. Essas coisas geralmente preferem palcos mais grandiosos, lugares de poder ou desespero. De qualquer forma, uma manifestação é uma manifestação, independentemente do local. Eles deram algum detalhe?

— Os detalhes são vagos, mas a pessoa que ligou afirma que os funcionários estão desaparecendo em circunstâncias perturbadoras.

Com as sobrancelhas franzidas de preocupação, Darcy arrastou uma fotografia pequena e amassada e a deslizou pela mesa em direção a Nicholas.

A imagem exibia o que deveria ser uma cena inofensiva: O gato fofo do desenho animado da Wonderheart Studios, Copy the Cat, correndo alegremente atrás de um novelo de lã. Mas havia um problema significativo. O novelo de lã era brilhante e colorido, mas na ocasião estava quebrado e vazando um líquido espesso e preto. Copy exibia patas cravejadas de unhas pontiagudas para brincar, e seus olhos grandes e cativantes brilhavam em um vermelho vivo.

— E parece que não são apenas os funcionários que estão tendo problemas, mas até mesmo os desenhos são vítimas de algo nunca antes visto.

Nicholas manteve o olhar fixo na imagem. Isso era muito pior do que um animador maluco por excesso de trabalho. A informação o deixou curioso de uma forma mórbida, e a empolgação se aproximava perigosamente do pavor que o atormentava. 

Ele levantou a cabeça e eventualmente encontrou os olhos da vice-líder. 

— Isso significa que…

O rosto de Darcy fez-se nebuloso, com um indício de algo parecido com temor transparecendo em seus olhos. 

— Os personagens estão ganhando vida.

  1. Potencial Evocado Auditivo de Longa Latência, é um exame neurofisiológico que avalia o processamento auditivo central e outras funções cognitivas, como atenção, memória e discriminação auditiva.[]
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