Na entrada ao edifício, notaram cuspes de restos queimados e vazamentos de combustível indicavam um desfecho cruento. A extensão da devastação ainda estava sendo investigada, mas os corredores outrora vibrantes foram reduzidos a um labirinto em ruínas.
Como resultado da instabilidade interna, houve falhas periódicas de energia que deixavam os arredores em uma escuridão perturbadora e refletiam o desespero interno.
No entanto, o verdadeiro mistério estava situado além dos destroços tangíveis.
Os agentes que entraram nessa casca estéril e desapareceram, suas últimas transmissões deram a descrição de uma estrutura que combinava com a fachada dilapidada, mas o layout de suas transmissões não tinha nada em comum com qualquer projeto de piso conhecido a partir do ponto de vista de Nicholas e Emilly. Parecia que eles haviam entrado em uma versão diferente do estúdio, e não apenas em uma forma destruída.
Nicholas traçou uma imagem desbotada na parede descascada com a ponta do dedo. Era uma sereia, sua cauda turquesa brilhando mesmo na penumbra.
— Aquamarine. — disse ele. — Minha irmã costumava dizer que gostaria de poder respirar debaixo d’água como ela. Acordávamos todos os sábados pela manhã para assistirmos com tigelas de cereal que nossa mãe fazia.
Ele passou a mão pelo cabelo, lançando uma cascata de partículas de poeira no ar. Uma tosse oca escapou de seus lábios, ecoando no vasto vazio.
— Não sabia que tinha uma irmã. Como se chama?
O olhar de Nicholas voltou para Emilly.
— Lily. — respondeu, com a voz carregada de uma mistura de tristeza e frustração. — Lily costumava se identificar com os personagens que se sentiam diferentes. Aquamarine, com sua voz que só os golfinhos podiam entender, ou o vaga-lume solitário que não acendia como os outros.
— Oh, ela deve ser uma gracinha. Como Lily está?
Havia um grande peso no ar entre eles enquanto Nicholas permanecia em silêncio. A consciência compartilhada de uma infância caracterizada por uma perda que ia além da ausência física de uma pessoa foi expressa por meio do que foi dito em sua ausência.
— Ah… Desculpa.
Um olhar compreensivo se estampou no rosto de Emilly.
— Isso foi no dia 12 de Setembro.
Nicholas não sentia falta apenas da infância, ela percebeu. Era a conexão que ele tinha criado com sua irmã durante aqueles dias alegres e luminosos, a experiência que compartilharam. Uma conexão que, sem Lily, provavelmente se desvaneceu, se não desapareceu completamente.
Eles prosseguiram. O silêncio se alongava como uma melodia perdida.
A testa de Emilly se enrugou em preocupação.
— Você já encontrou… — Ela começou, hesitando com a frase que parecia desajeitada em sua língua. — Você também se encontrou com esses personagens?
Com uma janela fechada com tábuas deixando entrar uma luz fraca e empoeirada, Nicholas permaneceu como uma figura muda. Seus olhos se detiveram no corredor à frente deles, que, presumivelmente, jazia movimentado com as conversas dos animadores e o barulho dos materiais de arte.
Eles ficaram em silêncio por um longo tempo, um longo momento repleto de sentimentos não expressos.
— Talvez. — respondeu, mas sua voz mal era um sussurro que parecia carregar o peso de anos. — Às vezes, eu me sentia como um vaga-lume solitário, vacilando nas periferias, incapaz de se conectar de verdade.
Um lampejo de empatia suavizou as feições de Emilly.
— Mas você não estava sozinho. Acredito que Lily estava sempre contigo.
Um lampejo de surpresa afugentou momentaneamente as sombras em seus olhos. Ele hesitou por um instante, como se estivesse vasculhando um sótão empoeirado de lembranças.
— Sim. Éramos uma equipe, resolvendo os mistérios do Captain Sunshine e os segredos que Luna escondia. O engraçado é que ela era sempre melhor que eu. Antes mesmo de eu conseguir raciocinar, Lily já tinha a resposta na ponta da língua.
Um leve sorriso tocou os lábios de Emilly enquanto ele falava, um sorriso que parecia reconhecer o absurdo das buscas de sua infância, mas que continha o calor de uma experiência compartilhada.
Seu olhar voltava para o corredor, como se procurasse uma memória específica entre a pintura descascada.
— Sempre a mente mais rápida. — Nicholas riu brevemente, o som era um farfalhar seco como o vento através das folhas caídas.
Uma pitada de amargura tingiu suas palavras, quase imperceptível, mas Emilly captou mesmo assim. Seu olhar desviou-se para uma cicatriz desbotada que dividia sua sobrancelha esquerda, um ponto de interrogação silencioso.
— Aí, você vê? Seu ponto forte é o seu combate do que sua inteligência.
Os lábios de Nicholas se contraíram.
— Tá me chamando de burro?
— Ah, não! Jamais!
Ele bufou, uma forte expulsão de ar.
— Minha irmã era um foguete, efervescente com ideias que não ficavam engarrafadas. Como uma fonte de refrigerante descontrolada. — Um sorriso triste surgiu no canto de sua boca, mas não chegou a alcançar seus olhos. Uma sombra, fugaz, mas pesada, cruzou suas feições, uma sugestão de um poço mais profundo de inseguranças não ditas.
Emilly, percebendo a mudança de humor, inclinou-se para frente, com a preocupação gravada na testa.
— Alguma vez você já desejou ser mais parecido com ela?
— Lily era uma estrela, por isso não posso dizer que a invejei. Ela estava destinada a deixar sua marca no mundo e nasceu para brilhar. Mesmo que isso significasse viver principalmente à sua sombra, eu ficava feliz por ser a lua, refletindo sua luz. Havia momentos em que eu desejava compartilhar os holofotes com ela, principalmente quando trazia para casa outro prêmio ou uma realização notável. Mas essa inveja desaparecia assim que eu via como seus olhos brilhavam de alegria. O importante era vê-la ter sucesso e não o fato de eu não ser bom o suficiente.
Ele riu, um som seco e desprovido de humor.
— Além disso, alguém tinha que garantir que as contas fossem pagas.
Um traço de admiração brilhou nos olhos de Emilly.
— O fato de ser a lua, na verdade, não deixa de ter seus frutos. A lua proporciona um brilho suave ao nos guiar durante a noite. Embora seja um tipo diferente de luz, ela ainda é bastante significativa. Lily pode ter sido o centro das atenções, mas você foi a força despercebida que manteve a órbita do mundo dela.
Um lampejo de surpresa se transformou em um sorriso calmo e genuíno quando eles se olharam novamente. Pode ser que, justamente, ele não tenha visto as coisas da maneira correta durante todo esse tempo. Ele sentiu a órbita de décadas como uma nave espacial em torno de sua irmã e a autoimposição deprimente começou a se dissipar.
Nicholas abriu uma porta rangente, o carvalho robusto grunhindo contra suas dobradiças corroídas. Os grãos de poeira dançavam nos feixes de luz do sol que se filtravam por uma janela fechada com tábuas, iluminando o espaço esquecido que um dia foi a Sala de Tintagem, que antes abrigava o brilho colorido do processo de animação.
Outrora repletas de personagens pintados à mão, pilhas de folhas de celuloide transparentes estavam esquecidas em prateleiras empoeiradas, semelhantes a sonhos desbotados que aguardavam ser reacendidos. No meio do espaço havia uma caixa de luz solitária, com sua lâmpada antes brilhante reduzida a uma concha oca que criava sombras horríveis nas paredes descascadas.
As mesas manchadas de tinta estavam desalinhadas, com suas superfícies cobertas por poças secas do que pareciam ter sido cores brilhantes em um determinado momento. Uma cadeira havia tombado e estava esparramada no chão, com o estofamento vermelho vivo como uma lembrança desbotada de seu esplendor passado.
— Parece que aqui tá uma bagunça — disse Emilly.
— Não brinca. — zombou. — Nem notei.
A petulância em sua resposta irritou Emilly. Com um movimento do pulso, ela deu um tapa brincalhão, mas firme, no ombro dele, fazendo-o estremecer.
— Maldito.
Eles andaram ao redor da sala, um refúgio outrora vibrante para expressão criativa, agora um deserto desolado de tinta lascada e sonhos esquecidos.
Nicholas folheou os storyboards empoeirados, com a testa franzida.
— Espere um pouco. — disse ele, parando em um painel particularmente colorido. — Pensei que o Captain Sunshine tivesse terminado depois da terceira temporada. Por que tem storyboards para um novo vilão aqui?
Emilly olhou por cima do ombro dele, observando a confusão de papéis presos a uma prancheta enferrujada. Ela os examinou, um sorriso irônico brincando em seus lábios.
— Lembre-se, os estúdios raramente cancelam shows porque querem. Geralmente é uma questão de necessidade, não de criatividade.
— Sim, ordenhando a vaca leiteira com todo o valor, é mais provável. — Apontou para uma prateleira lotada de mercadorias do Captain Sunshine. — Essas coisas estão em todas as lojas que você entra. Sunshine deve ser uma mina de ouro para eles.
Emilly levantou os olhos do storyboard e pegou alguns papéis com desenhos de Luna que estavam sobre a mesa. As cores de seus cabelos eram escuras como o crepúsculo e contava alguma coisa a uma flor brilhante, cujas pétalas brilhavam em um roxo sonhador.
— Uma mina de ouro, claro. Mas por quanto tempo? Eles podem continuar produzindo episódios até que ninguém se importe mais?
Nicholas bufou.
— Tem que haver um limite, certo? Quer dizer, até as piadas do Bob Esponja ficam um pouco cansadas depois de… o que? Duas décadas no ar? Talvez não seja sobre a queda na qualidade, talvez seja só… — Parou, procurando a palavra certa.
— Nostalgia? — Completou ela, colocando o desenho de Luna de volta na mesa. Uma carranca pensativa apareceu em sua testa. — Ver esses personagens novamente, mesmo em uma nova história, é como se um pedacinho da infância voltasse. Mas isso é suficiente? É justo para os personagens, ou para a história, manter arrastando para fora só porque dá dinheiro?
— Não é que eles precisam ganhar no Pulitzers ou precisam de dinheiro, mas se um desenho bobo sobre um super-herói mantém as pessoas entretidas, quem somos nós para julgar? Contanto que as histórias sejam decentes e a animação não pareça ter sido desenhada por um aluno do jardim de infância com alto teor de açúcar, tá valendo.
— Uma parte de mim gostaria que eles simplesmente abandonassem tudo. Que o programa terminasse com uma nota alta, em vez de transformá-lo em uma máquina de marketing sem alma.
Em outro canto esquecido, uma turquesa familiar brilhava.
— Olha ali, Nick.
Um bicho de pelúcia esfarrapado, uma sereia turquesa com olhos de botão incompatíveis, estava empoeirado.
Nicholas se aproximou e se abaixou para pegá-lo.
— É a Aquamarine. Lily amaria tê-la.
Com um lenço de papel, Emilly limpou cuidadosamente a sujeira que estava incrustada no tecido da sereia.
— Bem melhor assim.
Ele reposicionou a pelúcia em uma mesa, com as escamas azul-turquesa captando a luz fugaz do sol.
— Nenhum sinal de Mephisto ou qualquer coisa relacionada por aqui. — concluiu, com um suspiro desapontado. — É melhor irmos para outra sala. Talvez eles guardem algo em um depósito.
— Espere. — interveio Emilly, com as sobrancelhas franzidas ao olhar para a mesa. — Você viu isso?
— Vi o que?
— A pelúcia… — Apontou um dedo para ela, que estava no chão. — Simplesmente caiu.
Nicholas pigarreou, tentando parecer indiferente.
— Talvez você tenha batido na mesa?
Mas ambos sabiam a verdade. A pelúcia não estava nem perto da borda e a sala estava silenciosa. Não houve nenhum solavanco, nenhuma rajada de vento, nada que explicasse sua queda repentina.
Emilly estendeu a mão e a pegou. Colocando-a de volta na mesa, desta vez mais perto do centro, ela manteve o olhar fixo nela.
Um som pontuado por um rangido suave veio de algum lugar no fundo da sala. Parecia vir de uma pilha de células de animação empoeiradas, precariamente apoiadas em uma parede distante.
Emilly trocou um olhar preocupado com Nicholas.
— Devemos dar uma olhada?
— Deixe de lado, vamos logo.
— Olha, viemos aqui em busca de respostas, certo? Não vamos recuar ago…
A sala mergulhou em uma escuridão repentina. O grito de Emilly, agudo e assustado, atravessou a quietude. Nicholas, com o coração pulando na garganta, deu meia-volta, momentaneamente mais assustado com o grito dela do que com o próprio apagão.
A única luz vinha do fraco brilho azul que emanava da tela de um tablet. Ao se aproximarem, na tela, uma única imagem dominava a tela. Intitulada simplesmente era…
— Ruth? — Nicholas perguntou-se. — Desde quando isso existe?
— Deve ser um desenho novo.
A imagem mostrava um personagem em preto e branco, diferente de tudo o que eles haviam encontrado. Ruth se estendia além da borda do quadro, uma figura nitidamente angular com um semblante assombrosamente vazio. Sua postura não era de alcançar, mas de arranhar, com o rosto torcido em um sorriso macabro que causou arrepios na espinha de Emilly.
No canto inferior esquerdo do tablet, desbotada pelo tempo, havia uma inscrição: “Wonderheart Studio”.