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— O mestre mandou me seguir.

A criatura ergueu-se sobre as patas traseiras e iniciou sua caminhada para fora da construção, sem fazer ruído sobre o chão coberto de poeira. Zoe, logo atrás, a seguiu.

Nicholas permaneceu imóvel, com a mente em conflito tentando assimilar o que acabara de escutar. A presença de um ser como aquele, cuja natureza ele ainda não podia classificar claramente como Regular ou Mortal, e que falava de maneira tão despretensiosa, provocou-lhe uma sensação de desconforto.

— Essa coisa fala? Deve ser isso que Emilly tem observado. A evolução dos Mephistos desde aque– opa!

Antes de conseguir completar seu pensamento, Nicholas sentiu uma força invisível dominar seu corpo. Seus pés iniciaram um movimento autônomo, seguindo a rota determinada pela criatura.

Ela, percebendo sua aproximação, girou a cabeça o suficiente para que um de seus imensos olhos dourados capturasse a luz tênue, fitando-o com uma curiosidade quase pueril. 

“Eu… não tô controlando isso. O que tá acontecendo?”

Nicholas fez um esforço hercúleo para resistir ao impulso que o impelia adiante, mas foi em vão. Sua mente clamava para que ele parasse, para que se virasse e fugisse na direção contrária, mas seu corpo simplesmente não respondia. Uma força maior, invisível e irresistível, parecia ter tomado as rédeas. 

— Para.

Eles paralisaram imediatamente quando a criatura parou, como se a energia que os impulsionava tivesse sido desativada. Estavam do lado de fora da construção. A criatura examinou o ambiente, seus olhos dourados cintilando com uma inteligência incomum, como se calculasse cuidadosamente seu próximo passo.

De repente, ela se virou e apontou sua pequena pata para Nicholas.

— O mestre mandou você ir ali.

Ela fez um gesto com a pata em direção a uma árvore solitária, com a casca escura coberta de musgo e fungos. 

“Não, não…”

Antes que ele pudesse resistir, seu corpo começou a se mover involuntariamente, como se uma força invisível o estivesse manipulando como uma marionete. 

A superfície áspera da árvore se assemelhava a uma pele envelhecida, com sulcos que se cruzavam como veias pulsantes. Nicholas observou um buraco oval aberto cujas bordas grossas e irregulares lembravam lábios enrugados e inchados. 

A casca ao redor do buraco estava rachada e matizada de verde, marcada por veias de resina preta que se assemelhavam a secreções viscosas, escorrendo lentamente como pus de uma ferida infectada. 

Em seu interior, havia uma textura áspera, quase como carne viva, como se um tecido pulsante estivesse escondido sob a superfície inerte da madeira, esperando para devorar qualquer coisa que se aproximasse.

— Pega.

Seu braço se moveu involuntariamente, impulsionado para o abismo, colocando a pele em contato com uma textura pulsante e crua no interior da madeira, com a sensação de ter mergulhado a mão em um ser vivo.

“Não é possível, porra!”

A sensação era repulsiva, como se estivesse submergindo a mão em um ânus, percebendo seu interior palpitar com um derradeiro alento de vida. 

“Quando eu descobrir um jeito de sobressair a essas merdas, vou matar cada uma dessas coisas!”

Como se reagisse ao seu toque, a pressão em torno de seus dedos aumentou e depois soltou em uma direção irregular, dando a impressão de que ele estava rasgando carne viva.

Ao puxá-la para trás, Nicholas sentiu sua pele se agarrar à borda do buraco como se tivesse sido arrancada, presa à substância viscosa que impregnava o interior da árvore. 

Uma onda de alívio misturada com nojo percorreu sua garganta.

— Hm?

Ele segurava uma caneta-tinteiro coberta por uma substância espessa e escura escorrendo lentamente por seus dedos, como muco de uma ferida infectada.

“Isso é antigo. Como veio parar aqui?”

Ao redor dela, pequenas manchas escuras de sangue se destacavam, como cicatrizes antigas deixadas por algo esquecido. Ele sentiu um calafrio, uma sensação incômoda de reconhecimento que veio à tona com uma memória turva.

“Não, espera. Essa é a caneta que Joseph usava.”

O mesmo objeto que desenhou os contornos dos personagens, que deu cor às suas emoções e nuances, também era capaz de apagar tudo.

“Já descobri uma forma. Agora é só saber como usar.”

— Muito bem. Encontrou para mim.

Onde Zoe e a criatura estavam, Nicholas avistou algo diferente, onde a realidade se desfez em borrões.

Tinha um corpo amontoado e denso de sombras, que pareciam se evaporar e escorrer em longas lágrimas negras, semelhantes a tinta. Seus olhos reluziam como duas fendas brancas e vazias, que não piscavam, apenas fitavam ele. 

— Agora me entregue.

Estendeu o abraço com a mão aberta. O líquido escuro gotejava de suas longas garras.

O que quer que estivesse diante dele, já não era Zoe, e não era simplesmente uma criatura. Era algo muito pior, algo que Nicholas sabia, instintivamente, que jamais deveria ter sido encontrado.

Imobilizado, ele sentia o peso de uma decisão ressoar em seus ossos. Era um convite para a ruína, uma promessa de um abismo infindável. E, mesmo contra sua vontade, seus pés o levavam adiante.

— Todas as cores que já existiram e todas as que ainda surgirão se fundirão em meu ser. Vermelho como a paixão, azul como o céu, verde como a esperança… 

Com a caneta-tinteiro em mãos, ele sorriu.

— Enxergo elas em todos. Nas suas memórias, sonhos e nos seus medos. No entanto, elas não me pertencem. Sou apenas uma sombra, um vazio. Você, por outro lado, está transbordando delas.

As garras negras cavaram no centro de seu peito. A dor era avassaladora, como um lampejo de agonia rasgando seu corpo, mas o que se seguiu foi pior. Era como se um vórtice se abrisse por dentro, sugando o que restava de sua essência. Uma parte de si mesmo que ele nunca imaginou que poderia ser arrancada estava sendo removida à força.

— Deixe-me absorver tudo isso também.

As palavras ressoaram em sua mente, vibrando como o som de uma lâmina cortando o ar antes de se cravar na carne. O medo o imobilizou. As cores em sua visão começaram a desbotar, as emoções a se esvair e as memórias – as que o definiam, que o vivificavam – eram arrancadas, uma após a outra. 

Ele sentiu sua essência se fragmentar, cada fragmento se convertendo em cinzas, desfazendo-se ao contato da entidade que o devorava.

— Tudo isso me pertence por direito.

Sua pele ficou cinza, o sangue fluía lentamente, frio. Seu cabelo escureceu como carvão ardente e seus olhos perderam todos os vestígios de vida. O vazio o consumia, mas uma centelha teimosa de raiva e desespero permanecia.

— Não… Não te pertencem porra nenhuma.

A frieza do aço da Glock 19 pressionava contra seu queixo. Ele não pensava mais; não havia espaço para isso. Somente ação. 

“É agora.”

O dedo contraiu no gatilho, e o som da bala reverberou em seu crânio. Gotas de líquidos escuros salpicaram o ar. 

O impacto fez Mephisto recuar, soltando o peito de Nicholas, que caiu no chão como um corpo desprovido de alma.

Entretanto, ele não estava morto. Ainda não.

Com o corpo debilitado e tremendo, se esforçou para levantar-se. 

“Essa coisa… Ele é igual àquele que desmembrou a Zoe. Se for o mesmo, se eu conseguir matá-lo aqui e agora, talvez eu possa pôr fim a todo esse inferno.”

Nicholas ponderava suas alternativas, com a mente agitada pela adrenalina. A única arma à sua disposição era sua Glock 19, claramente insuficiente. Contudo, ele se lembrou dos experimentos de Olivia, sua segunda opção. Ela falava a respeito de uma assinatura energética que, teoricamente, poderia ser alterada para gerar uma perturbação nos Mephistos.

“Ainda tenho mais uma chance para tentar, mas mesmo com uma única oportunidade de aniquilar essa criatura, essa tarefa vai ter que acabar.”

Ao tentar levantar o braço, percebeu que suas forças se esvaíam rapidamente, drenadas pela presença sufocante do inimigo. Seus músculos não respondiam, e seu corpo estremecia incontrolavelmente. O fardo esmagador do desespero o consumia, enquanto a sensação de impotência o sufocava.

“Merda… eu não consigo…”

A cabeça do Mephisto havia sido regenerada. Ele fixou o olhar em seus dedos, agora manchados com o vermelho-sangue, um ponto solitário de cor na vasta escuridão. 

A cor simbolizava vitalidade, paixão e ira, todas canalizadas através dos dedos. Entretanto, a cor começou a mudar, tornando-se gradativamente escura. Era como se a cor em suas mãos estivesse se esvaindo, ofuscada pela escuridão que o envolvia.

— Toda cor se apaga, como se eu não fosse digno dela. Mas talvez, com o tempo, eu possa aprender a amá-la.

O corpo da criatura pulsava, como se uma força lutasse para surgir, intensificando-se urgentemente e prenunciando um poder inefável prestes a ser liberado. Subitamente, uma luz branca e cegante irrompeu do núcleo de seu ser, semelhante a uma estrela a ponto de detonar em uma supernova.

“Ele vai fazer isso de novo!”

A luz intensificava-se exponencialmente. Tornou-se insuportável, queimando os olhos mesmo através das pálpebras fechadas, enquanto a energia negativa vibrava no ar.

— Vai ficar tudo bem.

Ele ouviu uma voz, suave, familiar, ecoando em meio ao caos.

— Não se preocupe, estou aqui com você.

E assim, em um único momento, a luz irrompeu, desencadeando uma onda de energia pura que varria tudo em seu caminho, uma força devastadora e irresistível que reduzia a pó tudo o que encontrava pela frente.

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