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Nicholas acordou subitamente, com o coração martelando em seu peito. 

Ele se viu deitado no sofá da sala de estar, diante da televisão piscando com imagens de um filme de terror que ele mal conseguia acompanhar. A paisagem à sua frente, com alguma sombra da cena sombria na tela, misturava-se à perturbação momentânea dela. Era possível que fosse tão difícil distinguir onde terminava o pesadelo e começava a realidade? 

Ele realmente não conseguia descobrir em que direção estava indo quando saiu, mas uma voz suave rompeu o manto de escuridão que o envolvia:

— Estou aqui contigo, garotinho.

Virou a cabeça. Piscou os olhos, tentando dissipar a névoa que ainda lançava dúvidas sobre a situação.Olhou para cima e o rosto familiar apareceu, parcialmente emoldurado pelo brilho azulado da televisão.

Ela abaixou a cabeça, com os olhos voltados para Nicholas.

— Você é bem mais medroso que eu, né?

Seus cabelos castanhos caíam quase até os ombros de Nicholas e brilhava como seda na luz fraca. Embora os óculos de aros finos encobrissem levemente seu rosto, os grandes olhos âmbares dela irradiavam uma mistura de calma e preocupação. 

— Lily… 

Foi capaz de reconhecer as pequenas sardas que suavemente salpicavam em volta do nariz, contrastando contra sua pele levemente morena. 

Lily sorriu. Era quase invisível, mas um sorriso suave que exalava calor e conforto. Era como se de alguma maneira, eles tivessem o poder de amainar a tempestade de medo que ainda fraquejavam em Nicholas. 

Algo de mágico no sorriso tímido do qual ela era capaz de expressar, em como eles eram verdadeiros apesar de tudo, ao ponto de trazer um calor esperançoso no coração acelerado dele, voltando ao estado de segurança que sua presença trazia. 

— Sim, sou eu. — respondeu com sua voz doce.

Com a cabeça de Nicholas em seu colo, Lily começou a acariciar seus cabelos na mesma doçura com que falava. Seus dedos deslizavam pelos fios em um movimento que era familiar a ele e ao mesmo tempo tranquilizante. 

Ela olhou para a tela da televisão, onde o filme de terror continuava a desfilhar suas cenas sombrias e perturbadoras, e suspirou levemente. 

— Você sempre faz isso, sabia? Finge que vai assistir a um filme de terror, mas na primeira cena de susto, ou já está dormindo ou quer sair correndo. Acho que você não nasceu pra isso, Nick.

Ele fez uma careta, como se já esperasse a provocação dela.

— Não é isso… — murmurou, tentando justificar-se, embora soubesse que ela estava certa. — Eu só… só não gosto muito do jeito que esses filmes são… previsíveis.

Lily soltou uma risadinha, sacudindo a cabeça enquanto continuava a mexer em seus cabelos.

— Previsíveis? — repetiu, incrédula, desviando o olhar para a televisão, onde uma mulher escapava de uma criatura grotesca. — Previsíveis são os desenhos do Captain Sunshine que você adora. Já se sabe que, no final, o Sunshine vai vencer no fim, não importa o quanto tudo pareça ir mal. Aqui, ao menos, nunca se sabe quem vai sobreviver até o fim… Se é que alguém vai.

— Esse é o problema, Lily. — Ele virou ligeiramente a cabeça para olhá-la. — Não gosto de me sentir ansioso sem necessidade. Esses filmes me causam isso. Depois, fico com essas cenas na cabeça por dias. Lembra da semana passada? Sonhei com aquelas criaturas terríveis do filme… Qual era mesmo o nome daquela mulher horrenda?

O Chamado. Sim, eu lembro. Você me acordou no meio da noite, falando que a sombra no canto do quarto parecia se mover.

Nicholas sentiu o calor subir ao seu rosto, parcialmente envergonhado pela lembrança, mas incapaz de conter um sorriso.

— Uh, talvez eu esteja exagerando um pouco. Mas você também se diverte com isso, eu sei.

— Com certeza. — Ela o olhou afetuosamente, seus dedos desenhando círculos preguiçosos no couro cabeludo dele. — Mas é porque você torna tudo tão fácil. 

Seus olhos se desviaram brevemente para a tela, onde um grito alto ecoou, seguido por uma música carregada de tensão. Ela arqueou uma sobrancelha, suprimindo um riso. 

— Sabe, eu penso que, no fundo, você teme o que pode acontecer quando está sem controle.

Ele bufou, um sorriso surgindo no canto da boca.

— Ou talvez eu simplesmente não encontre sentido em me assustar de propósito. Prefiro filmes que me façam refletir, ou que me deixem de bom humor, tipo… sei lá, aqueles com finais felizes.

Lily ergueu uma sobrancelha, um sorriso sarcástico se formando em seu rosto.

— Ah, claro. Porque assistir ao reencontro do casal no aeroporto após todas as adversidades é infinitamente mais empolgante do que lutar contra monstros. Nada supera uma boa dose de realidade alternativa. — Piscou, indicando que estava só brincando.

Nicholas deu de ombros, acomodando-se melhor a cabeça no seu colo.

— Ora, eu gosto do que gosto. Não tem nada de errado em gostar disso.

— Ah, claro que não. Eu entendo completamente. A vida já é complicada o suficiente, pra quê adicionar mais drama, né?

— Não dá pra ficar reclamando pra sempre.

Ela deu de ombros, voltando os olhos para a tela onde o filme agora mostrava uma cena toda tensa e silenciosa. 

— Mas, sabe, às vezes eu acho que os filmes de terror são tipo… uma maneira diferente de lidar com nossos medos. A gente encara esses monstros e sustos por alguns minutos, e é como se a gente lembrasse que, no fundo, é tudo ficção.

— Sim. Acho que sim.

— Aí, quando desligamos a TV, percebemos que na vida real não tem monstro debaixo da cama… Só boletos pra pagar e um chefe que parece saído de um pesadelo.

Nicholas riu, quase involuntariamente, admirando como Lily possuía a habilidade de tornar o simples em algo profundo, mantendo um tom casual. Ela tinha o dom de enxergar as coisas sob uma perspectiva diferente, como se estivesse sempre um passo adiante de suas preocupações. 

— Nunca tinha pensado nisso… — disse, lançando um olhar discreto para o rosto tranquilo dela. — Você provavelmente está certa. Ainda assim, prefiro os finais felizes do Captain Sunshine.

Ele expressou isso com um sorriso reservado, reconhecendo que talvez fosse um tanto ingênuo esperar que tudo acabasse bem. 

— É por isso que estou aqui, Nick. — Ela disse, com uma voz tão suave que mais parecia um sussurro, destinado somente a ele. — Serei sua heroína para garantir que você tenha o seu final feliz, mesmo quando os monstros decidirem surgir.

As palavras ressoaram de maneira inesperada em Nicholas. Não era apenas a promessa subentendida nelas, mas também o modo como ela o encarava, como se realmente pudesse cumprir o que dizia. Era como se ela possuísse a habilidade de amenizar qualquer circunstância, não importa quão assustadora, e torná-la mais tolerável.

Ele a havia perdido há muito tempo, mas naquele breve momento, parecia que nada disso havia ocorrido. Observou cada detalhe do rosto dela, desejando eternizar cada traço em sua memória.

Nicholas sentiu um nó no peito, uma mistura de alegria e tristeza que o impelia a estender aquele momento ao infinito. Ele desejava dizer algo, qualquer palavra que expressasse a imensa falta que ela lhe fazia, como sua ausência havia formado um vazio que nunca conseguira preencher. No entanto, as palavras lhe fugiam. Sua voz ficou suspensa no limiar entre a vontade de falar e o medo de quebrar a magia e vê-la desvanecer.

— Lily… — começou, com a voz rouca, quase um sussurro. Queria expressar tantas coisas, mas estava incerto por onde iniciar. Tudo era tão delicado, como um balão à beira de estourar. — Eu…

— Não, não. Tá tarde.

Antes que pudesse prosseguir, Lily o interrompeu com uma suavidade que o deixou surpreso, como se ela já conhecesse suas palavras, como se já as tivesse ouvido inúmeras vezes antes.

— Você precisa ir para a cama.

Nicholas piscou, confuso.

— Mas… 

Não queria que aquele momento terminasse. Não queria perdê-la novamente. 

— Eu ainda… — Colocou-se sentado ao lado dela. — Ainda quero falar contigo.

Lily inclinou levemente a cabeça. Passou os dedos pelos cabelos dele mais uma vez, suavemente, como se quisesse gravar aquele momento para sempre, assim como ele.

— Eu sei, eu sei. Mas não se preocupe, eu sempre estarei aqui, mesmo que você não possa me ver.

As palavras dela cortavam com uma verdade crua, desarmando-o de todas as defesas que ele ainda tentava manter. Nicholas sentiu o peso das lágrimas pressionando contra os olhos, mas as conteve com esforço. 

Mostrar fraqueza diante dela era o último gesto que desejava, mesmo sabendo que ela enxergaria além disso. Ela sempre o enxergou como ninguém mais.

Lily levantou-se do sofá, com sua sombra estendendo-se pelas paredes enquanto a luz da televisão tremulava nos derradeiros momentos do filme. 

— Vem logo. 

Ao se levantar, eles caminharam em silêncio até o quarto.

Lily abriu a porta e entraram. As paredes de um azul desbotado estavam adornadas com pôsteres antigos de filmes. 

A cama era simples, coberta por um edredom gasto, mas confortável, de um tom verde musgo. Sobre a mesa de cabeceira, uma pequena luminária em formato de lua, presente de Lily em algum aniversário distante, espalhava uma luz suave pelo ambiente. Livros estavam empilhados ao lado da cama, a maioria com as páginas marcadas por objetos aleatórios — um pedaço de papel, um fone de ouvido velho, até mesmo um bilhete de cinema.

Lily ajudou Nicholas a se deitar, puxando as cobertas para trás. Ela se inclinou e lhe deu um leve beijo na testa, como fazia todas as noites quando ele era mais jovem.

— Durma bem, garotinho. — sussurrou, se afastando devagar, como uma sombra suave que desaparecia na luz fraca do abajur.

— Espera.

Ela parou no limiar da porta. Virou-se para ele.

— Eu não vou dormir contigo, isso é esquisito demais. 

— Ah… Quê?

Lily riu baixinho, sacudindo a cabeça.

— Tô brincando, besta. — disse, cruzando os braços e se encostando na moldura da porta. — O que foi?

Nicholas hesitou por um momento, mexendo nas pontas do cobertor.

— Que dia é hoje?

— Uhm… É 12 de setembro.

Seu rosto empalideceu como se todas as palavras que ele queria dizer tivessem se perdido no ar. Ele olhou pela janela, evitando o olhar dela, e tentou controlar sua respiração pesada e difícil. 

Levantando uma sobrancelha em sinal de suspeita, os olhos dela rapidamente se estreitaram quando.

— Por que a pergunta? Você nunca foi de ligar muito pra datas. Tá esquecendo de alguma coisa?

Quando ele olhou para cima para encontrar os olhos dela, engoliu com dificuldade.

— Porque…  — Sua voz vacilou. 

Essa foi uma data marcada como uma cicatriz na alma deles. O dia em que o riso de Lily se calou para sempre. 

Com franzir a testa como se quisesse perguntar o que havia acontecido de repente, ela simplesmente deixou essa ideia de lado. 

— Olha, é melhor você dormir. Boa noite. — disse ao fechar a porta.

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