Aquelas palavras soaram como um veredito.
— Não, não!
Tomado pela urgência, ele se lançou da cama com tanta pressa que os pés se enrolaram no cobertor, derrubando-o no chão frio.
— Merda…!
A dor se espalhou pelo seu corpo, mas foi ignorada.
Com esforço, se levantou e cambaleou até a maçaneta. Seus dedos tremiam enquanto tentava girá-la. Uma, duas, três vezes. Em vão.
— Por favor, não vai… — Sua voz tremia. Ele pressionou a testa contra a porta, sentindo o frio da madeira em sua pele, enquanto seus dedos se agarravam à superfície lisa. — O papai… ele vai…
As palavras morreram em sua garganta, sufocadas pelo medo que o dominava. Ele não conseguia completar a frase, como se dar voz aos seus medos os tornasse ainda mais tangíveis.
Por um momento, Nicholas ficou parado, com o olhar fixo na madeira fria da porta. Ele alimentou a esperança, desafiando toda a lógica, de que ela se abriria mais uma vez, que Lily surgiria, o abraçaria e lhe asseguraria que tudo estava bem, que tudo não passava de um terrível pesadelo.
No entanto, a dureza da realidade o atingiu com força impiedosa.
Ele reconheceu a clareza dessa noite. A data gravada em sua memória, o peso opressivo em seu peito, não significava nada para ela.
Para sua irmã, era apenas mais uma noite. Para Nicholas, era um abismo de solidão e pavor.
Um grito rasgou o silêncio da noite.
— Lily!
A voz grave, familiar, o fez estremecer. Era ele. O pai. A figura que estava fora, voltou para casa.
Nicholas agarrou o batente da porta, os nós dos dedos branquejando. O coração batia em seu peito como um martelo.
— Outra vez com essa cara de cachorra coitada. Você acha que me comove com suas palhaçadas? Você é a única responsável por tudo o que está acontecendo nessa casa.
— Mas, pai…
— Não me interrompa enquanto eu tô falando, caralho!
O grito ressoou, transformando o ambiente, fazendo as paredes parecerem mais próximas, como se estivessem se fechando ao redor de Nicholas.
— Acha que tudo gira ao seu redor, não é? Que seus caprichos e fraquezas merecem a atenção de todos nós. Mas deixa eu te dizer uma coisa, sua vagabunda. O mundo não tem paciência para fraquezas. E eu não vou permitir que você arraste essa família ainda mais para baixo.
Um estalo ecoou alto e forte. Nicholas rapidamente compreendeu e tentou mais uma vez abrir a porta.
— Já olhou ao redor? Já viu o que fez? Essa casa… esse lar… tudo desmoronando, e você está no centro disso, espalhando seu veneno, infectando cada parte com suas mentiras e intrigas. Você é um fardo, Lily. Um peso morto que eu carrego porque não tenho escolha.
Nicholas um nó se formar em sua garganta. A crueldade nas palavras do pai era sufocante, como se cada sílaba fosse uma pedra sendo colocada sobre seu peito, dificultando sua respiração.
— Eu dei tudo por esta família, sacrifiquei meus sonhos, meu futuro, e o que recebo em troca? Uma filha ingrata que conspira contra mim dentro da minha própria casa! Você acha que eu matei a sua mãe!?
Houve uma pausa, seguida por um ruído abafado. Nicholas imaginou que o pai segurava Lily com força, talvez a sacudindo, como se ela fosse uma boneca de trapo.
— Eu já disse uma vez que, quando descobrisse mais uma de suas mentiras, você desejaria nunca ter nascido. Porque agora, não descansarei até te ver pagar por cada gota de vergonha que trouxe para a porra da minha vida!
Com as mãos tremendo, Nicholas golpeava a porta freneticamente. O som estridente da madeira rangendo se misturava aos seus grunhidos.
O suor descia pela sua testa, turvando sua visão por instantes. Com cada esforço, sentia os músculos dos braços esticarem-se ao máximo, mas a porta se mantinha inabalável.
“Não consigo!”
Ele olhou para suas mãos. As palmas das mãos estavam úmidas de suor e as unhas fincadas na pele devido ao esforço intenso. Marcas vermelhas adornavam seus dedos, resquícios de uma força que, por um momento, parecera capaz de aniquilar qualquer obstáculo à sua frente, mas que agora estava desaparecendo, cansando-o e deixando-o fraco.
O que estava acontecendo?
Ele viu a porta se abrir lentamente, como se estivesse dando um último suspiro. Nicholas balançou a cabeça, tentando dissipar a névoa de confusão que o envolvia.
Caminhou hesitante para fora do quarto em direção à sala de estar, sentindo a frieza do piso contra seus pés descalços.
A voz do pai ecoou novamente, dessa vez mais baixa e tristonha. Nicholas parou abruptamente, o peito apertado. As palavras flutuavam no ar, carregadas de um peso que ele não sabia como suportar.
— Droga…
Finalmente chegou à sala. A luz da televisão ainda tremulava. Ele ficou parado por um momento, tentando ajustar a respiração, mas o ar estava pesado demais, difícil de puxar para dentro dos pulmões. A cena à sua frente não fazia sentido.
— O que foi que eu fiz?
Os móveis estavam ligeiramente deslocados, como se alguém os tivesse empurrado sem muita força, mas o que realmente chamou sua atenção foi o olhar do pai, sentado no sofá, as mãos cobrindo o rosto e os ombros tremendo levemente.
Nicholas entrou na sala hesitante, com o olhar percorrendo o ambiente em busca de algo que pudesse esclarecer a situação. Foi quando ele a viu.
No chão, bem à frente do sofá, jazia o corpo de Lily.
O choque paralisou seu corpo, e por um momento, Nicholas achou que estava vendo coisas. No entanto, o horror à sua frente era inegavelmente real.
Lily jazia de lado, seus cabelos castanhos em desalinho parcialmente cobrindo seu rosto, mechas embebidas em sangue coagulado. Seu corpo estava disposto como uma boneca despedaçada, abandonada de forma grotesca no chão.
A camiseta branca que ela usava estava rasgada, expondo cortes profundos e irregulares em sua carne. O sangue, já coagulado, formava crostas escuras ao redor das feridas. Suas mãos estavam dobradas, com os dedos entortados, como se tivessem lutado até o último momento.
Havia sinais claros de violência – mandíbula deslocada, olho esquerdo inchado e arroxeado, quase fechado, e os lábios rachados, tingidos de vermelho escuro.
O estômago de Nicholas se revirou quando viu o pescoço dela, marcado por hematomas em forma de dedos. As pernas dela estavam dobradas de uma forma não natural. A visão do sangue seco no chão frio o fez recuar involuntariamente.
Ele mal conseguiu respirar. A cena era meramente o pesadelo que havia se tornado realidade, algo que não poderia ser desfeito, não importa o quanto ele quisesse.
Sua respiração era abafada pelo som da televisão, que continuava sua transmissão indiferente à tragédia que se desenrolava ali.
As lágrimas de Nicholas queimaram nos cantos dos seus olhos, mas ele não podia chorar. Sua mente estava em choque, incapaz de compreender completamente a brutalidade do que via.
Ele desejava gritar, correr até Lily e acordá-la, mas, no fundo de sua alma, sabia que isso era impossível. Porque não havia Lily para despertar. Ali estava apenas o corpo destruído de sua irmã.
— O que foi que eu fiz?
O que Nicholas mais temia se concretizou. Lily estava morta. Definitivamente morta.
— Pai…?
Lentamente, o homem abaixou as mãos, revelando um rosto que Nicholas mal reconhecia.
A criatura se levantou do sofá. Sua pele era de um tom escuro, púrpura, reluzindo úmida sob a luz tênue da televisão. O torso era musculoso, com veias pulsantes sob a pele tensionada, como se o corpo fosse estourar a qualquer instante.
Onde deveria estar a cabeça do pai, havia um emaranhado de tentáculos longos e pegajosos. Cada um destilava uma substância negra e densa, formando poças pequenas no chão. Os tentáculos, com pontas afiadas semelhantes a garras, moviam-se com vida própria, ondulando no ar como cobras à espreita.
— Você… — Sua voz reverberou em múltiplos tons, como se viesse de várias gargantas ao mesmo tempo. — Você fez isso…
Ele se virou para Nicholas. Os olhos, ou o que sobrava deles, eram cavidades profundas e escuras, vazias como um abismo. Algo pulsava dentro delas, como se fossem buracos negros que devoravam a própria luz.
Sua boca era uma fenda curva e desigual, de onde dentes pontiagudos emergiam em ângulos aleatórios, como espinhos brotando da carne.
Mephisto. O nome irrompeu em sua mente como um pensamento intruso. Era esse o ser à sua frente, o verdadeiro rosto do pai que pensava conhecer.
Nicholas recuou. Tentou repelir o pânico crescente, mas a visão daquela coisa era insuportável. Seus lábios se moveram, mas nenhum som emergiu. Como poderiam existir palavras para tal visão?
A criatura caminhou em sua direção, o chão rangendo sob o peso de sua forma imponente. Tentáculos se agitavam ao redor de sua cabeça, como uma coroa pulsante de serpentes, cada um sondando o ar, como se saboreassem o medo que Nicholas exalava.
“Isso tem que acabar. O homem que matou a minha família também precisa morrer.”
Ele tinha perdido tudo – sua irmã, mãe, sanidade e agora seu pai. Mas não perderia a si mesmo.
“Não fui capaz de proteger vocês, me desculpem.”
Não havia mais espaço para luto ou arrependimento. Apenas uma necessidade crua de pôr um fim àquilo.
Se aquela coisa, aquela abominação, fosse a causa de sua dor, então ele enfrentaria o monstro com toda a força que ainda restava em seu corpo.