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A luz matinal do sol adentrava pela janela da cozinha, banhando a mesa de madeira antiga, mas sem trazer calor ao ambiente.

Emilly estava sentada à mesa, com as mãos cruzadas sobre o colo. Seus dedos trêmulos esbarravam na borda do tecido da cadeira, hesitantes em tocar algo mais firme. À sua frente, o café esfriava na xícara, esquecido. 

Do outro lado, sua mãe, grávida de oito meses, comia lentamente um pedaço de pão. O cheiro de manteiga queimada ainda estava no ar. Era uma manhã como qualquer outra, mas para Emilly, o peso era quase insuportável.

O silêncio se impunha como um terceiro ocupante à mesa, mais palpável que as duas presentes. Cada gesto ecoava como um som abafado no espaço confinado. Emilly lançava olhares furtivos à mãe, notando o contorno do ventre sob o vestido folgado. A barriga era uma presença constante e opressiva. 

Sua mãe agora raramente falava com ela, e quando o fazia, as palavras eram secas e desprovidas de carinho.

— Você deveria comer alguma coisa. — disse, sem tirar os olhos do prato em sua frente.

Emilly hesitou antes de responder. Um nó em sua garganta a detinha. Ela sabia que deveria obedecer, que deveria estender a mão para pegar um pedaço de pão, mas a mera ideia de tocar em algo na mesa a deixava imóvel. Parecia que cada item ali possuía uma energia invisível, algo fora de seu controle.

— Não tô com fome.

O som de suas palavras era tão delicado que ela temia que até sua respiração pudesse dissipá-las no ar. 

A mulher suspirou, um som pesado e exasperado que percorreu a cozinha como uma lufada de vento gelado. Finalmente, ergueu os olhos e fixou-os em Emilly, mas seu olhar não continha o calor materno que a filha secretamente desejava. Eram olhos sombrios e distantes, como se estivesse encerrada em uma armadura de mágoa e ressentimento. 

— Você nunca tem fome. — disse, com um tom incisivo, e desviou o olhar novamente, desta vez para o prato. — Sempre se escondendo, sempre… apática.

Emilly sentiu uma fisgada no peito, mas permaneceu em silêncio. Como poderia ela explicar à mãe o medo que a devorava por dentro? O temor de tocar, de se aproximar demais. Tudo ao que tocava definhava, deteriorava-se. Às vezes, sozinha em seu quarto, examinava as pontas dos dedos, buscando algo anormal. Pareciam mãos comuns, mas ela sabia que não eram. Era como se portassem uma maldição oculta, invisível a todos, mas que arruinava tudo ao seu alcance.

A mãe suspirou mais uma vez e pousou a mão sobre o abdômen, afagando a barriga proeminente. 

— Seu irmão vai nascer em breve. Espero que, pelo menos, ele… — Ela interrompeu a frase e mordeu o lábio, como se tivesse dito mais do que pretendia.

Emilly baixou o olhar, esforçando-se para conter a enxurrada de emoções que tumultuava seu interior. 

“Pelo menos ele… o quê?” 

A pergunta ficou suspensa no ar, pois ela não ousava vocalizá-la. Conhecia a resposta. Sua mãe colocava todas as esperanças naquele bebê, uma nova vida que poderia compensar todas as desilusões que o mundo lhe impusera. 

E Emilly? 

Sentia-se como um espectro naquela casa, um fardo, algo que a mulher apenas suportava por obrigação.

— Você ainda… — começou Emilly, mas a voz falhou. Ela engoliu em seco e tentou de novo. — Você ainda me ama?

O silêncio subsequente foi opressivo. A mãe ficou parada por um instante, como se a pergunta tivesse tocado um ponto profundo que ela não queria enfrentar. 

Depois, devagar, levantou os olhos para a filha, e o que Emilly viu naquele olhar apertou seu coração. Não havia ira, nem tristeza, somente um vazio abissal, como se todas as emoções tivessem sido sugadas, restando apenas uma exaustão amarga.

— O que você acha? 

Foi uma resposta dolorosa, mas Emilly concordou com um lento aceno de cabeça. Ela não sabia o que estava esperando ouvir. Talvez uma mentira consoladora, ou uma repreensão direta. Qualquer coisa que a fizesse sentir algo diferente do esvaziamento que a estava consumindo gradualmente.

Aquela manhã, a casa estava imersa em uma densa escuridão, da qual as paredes haviam sugado toda a luz. As cortinas impediam a entrada do sol e, por um momento, Emilly se perguntou se a atmosfera sombria era um reflexo de algo interno. Tudo estava se deteriorando lenta e silenciosamente.

Assim como o bebê.

O pensamento invadiu sua mente de repente e, embora ele tentasse repeli-lo, ele voltou, persistente, como um sussurro que se recusava a ser silenciado. Tudo ao seu toque se deteriorava, murchava. 

A visão daquela pequena forma, ainda tão vulnerável, em um útero que não oferecia mais proteção, era um pesadelo do qual ela não conseguia se livrar. E agora, olhando para sua mãe, aquele útero que ela deveria proteger, ela estava imobilizada pelo pavor.

“Eu posso te machucar.” Ela pensou, mas as palavras nunca foram ditas.

— Emilly? Está me ouvindo?

Ela balançou a cabeça, piscando rapidamente para afastar os pensamentos sombrios.

— Desculpe. Eu… Eu só tava pensando.

— Pensando no quê? 

Emilly hesitou, com o peso das palavras não ditas na ponta da língua. Então, olhou para as mãos e o medo tomou conta de seu peito.

— Nada importante.

A mulher a observou por um longo momento antes de soltar um suspiro final e cansado.

— Está tudo bem, Emilly. Está tudo bem.

Mas não estava tudo bem. E talvez nunca estivesse.

Sobre a mesa, uma delicada flor no vaso de vidro murchava lentamente. Emilly observava-a, sem conseguir desviar o olhar. As pétalas começavam a perder sua cor nas extremidades, como se um veneno invisível percorresse suas veias. 

Ela não tinha certeza se era realidade ou apenas um reflexo de seus pensamentos, mas a cena fazia com que ela contraísse os dedos em seu colo, apertando as mãos uma na outra, como se tentasse evitar qualquer contato.

“Será que a culpa é minha?”, perguntou-se, com o medo se insinuando em sua mente como uma cobra. “Será que até as flores morrem na minha presença?”

— Por que você está olhando dessa maneira? Qual é o problema agora?

Emily piscou, voltando à realidade com um sobressalto. Sentiu as bochechas avermelharem sob o olhar perscrutador da mãe e desviou apressadamente o olhar da flor, quase como se tivesse cometido uma ofensa culposa.

— Nada… Eu só… — As palavras se embaralhavam na sua mente, tropeçando umas nas outras, incapazes de formar uma frase coerente.

A mulher soltou um suspiro pesado, carregado de exasperação. Seus dedos tamborilaram nervosamente na mesa, um som rítmico que parecia marcar o tempo naquele ambiente estagnado.

— Emilly, às vezes eu não sei o que fazer com você. Eu tento… Tento entender o que se passa na sua cabeça, mas você é tão… distante. Parece que você está sempre em outro lugar, como se estivesse fora de si. Nunca está realmente aqui comigo.

Essas palavras a atingiram com mais intensidade do que qualquer acusação explícita. Ela sentiu seus olhos queimarem, mas se recusou a deixar as lágrimas caírem. Não diante dela.

— Mas eu tô aqui, mãe. Tô aqui contigo.

Os olhos dela a fitaram intensamente. Havia algo naquela expressão que Emilly não conseguia interpretar completamente, algo que beirava o desdém, mas também sugeria uma tristeza velada, escondida sob camadas de ressentimento acumuladas ao longo dos anos.

— Não, você não está e nunca esteve. Nem quando era criança, nem agora. É como se… — Ela parou, como se reconsiderasse o que estava prestes a dizer, mas então soltou as palavras com uma dureza que fazia o ar na cozinha parecer ainda mais rarefeito. — É como se você fosse uma sombra. Sempre à margem. Nunca de verdade.

A comparação golpeou Emilly como um soco no estômago. Abaixou a cabeça, fitando as mãos sobre o colo. Consciente da verdade naquelas palavras, ouvi-las em voz alta e com aquele tom de desaprovação só intensificava a dor, como um nó que não se desfazia.

— Eu… não escolhi ser assim.

— E você pensa que eu escolhi? — Levantou uma sobrancelha, e por um instante, pareceu à beira de um colapso, mas o que se seguiu foi um riso amargo e seco, como se risse de uma piada cruel feita pelo destino. — Você acha que eu quis ter uma filha que se esconde de mim? Que nunca se abre de verdade? Que parece… apodrecer por dentro?

A palavra apodrecer ecoou como uma maldição. Sentiu o estômago embrulhar, e uma náusea súbita a invadiu. Essa palavra entrelaçava-se com as memórias do que havia feito. Do toque que trouxe o fim. Do corpo da mãe se desfazendo sob seus dedos, e o bebê… que nunca chegou a respirar.

Por um momento, achou que vomitaria ali mesmo, à mesa, diante da mãe. Mas conteve-se, respirando profundamente, buscando estabilizar os pensamentos. 

Ela fechou os olhos, tentando repelir a imagem que insistia em surgir na escuridão de suas pálpebras. As lembranças surgiam em flashes — a pele da mãe perdendo o viço, as unhas de Emilly cravadas no tecido fino do vestido, o cheiro doce e nauseante da morte se espalhando pelo ar.

Mas aquilo não havia acontecido. Não ainda.

— Olhe para mim quando eu falo com você! — exclamou, batendo a mão na mesa.

Emilly ergueu a cabeça lentamente. Seus olhos encontraram os dela, mas rapidamente se desviaram, incapazes de aguentar o olhar por muito tempo.

— Você sempre foi assim. Estranha. Esquisita. Desde pequena… sempre teve algo errado contigo.

A garota ficou de boca fechada. Qualquer palavra que proferisse agora só contribuiria para piorar a situação, para inflamar a ira contida que sua mãe mantinha reprimida em seu ser.

— E eu tentei, Emilly, tentei de tudo para te ajudar. — continuou, o tom aumentando conforme a tensão na sala crescia. — Mas você não quis. Você… você preferiu se entregar a essa… coisa horripilante que você carrega dentro de ti.

O silêncio voltou a reinar, pesado e sufocante. Emilly compreendia as palavras dela. Ela reconhecia a coisa horripilante mencionada. Não se tratava somente da força que fluía de suas mãos, capaz de fazer apodrecer e secar tudo ao redor; era também o fardo da culpa, o peso do fracasso em não corresponder às expectativas de sua mãe.

— Me desculpa, mãe.

— Não me chame assim. Não depois do que você fez.

Ela mordeu o lábio, sentindo o gosto metálico do sangue na boca. Queria dizer algo, se defender, mas como poderia? Como poderia justificar o que aconteceu naquela noite?

— Acha que eu posso simplesmente apagar da minha memória a imagem de te encontrar… naquele estado? — A voz dela falhou por um momento, mas logo voltou, mais dura. — Você, com os pulsos cortados, sangrando no chão do banheiro, como se a vida que eu te dei não tivesse nenhum valor. Como se… como se fosse lixo.

Engoliu o seco e uma única lágrima escapou de seus olhos. Ela se lembrava daquela noite com uma clareza assustadora. Não era um desejo de morte, não exatamente. Foi apenas… uma tentativa desesperada de parar de sentir, acabar com a dor incessante, a sensação de ser um fardo, um erro, uma maldição.

— Você é uma amaldiçoada e é culpa sua. Toda essa maldição, tudo isso… você trouxe isso para dentro da nossa casa. Eu deveria ter percebido antes. Deveria ter visto os sinais. Sempre havia algo… podre ao seu redor. E aquele dia, quando você era só uma criança, e tentou tocar o bebê da vizinha… — Ela estremeceu ao lembrar. — Você se lembra, Emilly? Aquele bebê que chorava sem parar até que você o tocou, e então, ele parou… para sempre.

Para tentar repelir as lembranças, Emilly fechou os olhos com força. Sim, ela se lembrava. Como poderia se esquecer? O pânico nos olhos da vizinha, o terror ao ver o pequeno corpo inerte em seus braços. 

Desde aquele dia, sua vida mudou para sempre. Sua mãe começou a tratá-la cada vez mais friamente, como se sua filha fosse um monstro em roupas de criança.

— E agora, você acha que pode simplesmente continuar vivendo aqui, ao meu lado, ao lado do seu irmão? Você é perigosa, pequena. É um veneno, uma praga. E eu… eu estou presa contigo porque sou sua mãe. Mas, às vezes, me pergunto se teria sido melhor se você tivesse… 

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