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O que não foi dito, Emilly sabia. Embora ela soubesse que, talvez para sua mãe, o mundo seria um lugar melhor sem a presença dela. E, ocasionalmente, nos momentos mais sombrios, Emilly sentia a mesma coisa.

No entanto, algo diferente surgiu dentro dela, uma sensação estranha. Uma raiva, uma faísca de resistência. O medo e a culpa que a consumiam começaram a dar lugar a uma dor crua e intensa. Ela olhou para cima, encarando a mãe com uma garra que nunca havia demonstrado antes.

— Eu não escolhi ser assim. — disse, com a voz trêmula, mas resoluta. — Não escolhi ter esse… poder. E eu… lamento muito. Lamento por tudo que aconteceu, pelo bebê, por você, por mim… Mas eu estou aqui, e estou me esforçando. Só… não sei como fazer dar certo.

— Eu só queria uma filha normal. Uma filha que eu pudesse amar sem medo. Uma filha que não fosse… isso.

— Você me culpa por isso? Eu nunca quis ser essa coisa. Mas é o que sou. E você nunca tentou me ajudar. Só me afastou, como se eu fosse uma doença, algo que você não queria tocar!

— Como eu poderia? Como eu poderia abraçar uma filha que traz morte com um simples toque? Você acha que é fácil? Que eu não acordo todas as noites em pânico, com medo do que você poderia fazer? — Ela fez uma pausa, pressionando a mão contra o ventre. — Eu tinha tanto medo. Tanto medo de você.

Emilly sentiu o chão desabar sob seus pés ao ouvir essas palavras. Ela sempre teve consciência, de certa forma, que sua mãe a temia. Mas escutar aquilo dito em voz alta e com tanto desespero foi como receber uma punhalada. Ela engoliu em seco, esforçando-se para conter as lágrimas que ameaçavam transbordar.

— Eu… eu nunca quis que você tivesse medo de mim. Só queria que você me visse, que me enxergasse além desse… poder, maldição, seja lá o que for. Eu sou mais do que isso. Eu sou sua filha. Eu só queria que me amasse de verdade. Será que não consegue ver que eu também estou assustada? Eu vivo com isso todos os dias. E não sei o que fazer. Eu não sei como parar isso.

— Não é só sobre você, Emilly. Não é só o que você fez ou faz. É sobre o que você é. Eu senti isso desde o início… quando você ainda estava dentro de mim. Algo estava errado. Uma escuridão, um frio que não era natural. Eu devia ter feito algo.

Isso evocava lembranças amargas de sua infância. O toque de Emilly sempre fora diferente, como se sugasse a vida das coisas, como se seu calor natural estivesse invertido, transformando em gelo o que deveria ser reconfortante. 

— Eu sempre soube que era diferente… mas eu não sou um monstro. Não sou! Não posso ser… porque… — As palavras morreram em sua boca, e ela engoliu em seco, sentindo as lágrimas ameaçando brotar. — Porque eu ainda sou sua filha.

O olhar de sua mãe a observava com uma expressão que misturava dor e amargura, acompanhada de uma nova onda de dor abdominal que a fazia se contrair sutilmente. Era uma sensação visceral, de que alguma coisa dentro dela estava lutando para se libertar daquela tensão insuportável.

— Eu nunca quis… te machucar. Nunca quis ser isso! — A voz dela falhou novamente, agora cheia de angústia. — Eu só queria… queria ser amada. Queria ser normal, como qualquer outra pessoa. Mas eu não sei como… eu não sei como ser diferente.

O seu olhar se suavizou por um breve instante, antes de endurecer novamente. 

— E como posso amar algo que destrói tudo o que toca? Como posso… como posso amar o que matou seu próprio irmão antes mesmo de nascer?

A dor abdominal retornou, mais intensa do que antes, como se o ser que ela gestava estivesse em conflito com ela. Inclinou-se para frente, segurando o ventre, e o lamento que se libertou de seus lábios estava saturado de sofrimento. 

Emilly observou e levantou da cadeira. Andou para próximo dela, com os braços abertos por instinto, mas sua mãe recuou.

— Não… não me toque. Não toque em mim… ou no bebê.

— Caramba, passei minha vida inteira tentando entender e controlar! — disse, com a voz embargada, respirando fundo para reunir as forças que lhe faltavam. — Por favor… 

A mãe apertou os dentes. O olhar que dirigiu a Emilly já não era de aversão, mas de uma tristeza devastadora, como se estivesse encarando uma verdade que nunca quis aceitar.

— Você fala como se eu não estivesse ciente disso. Me questionando onde falhei, o que fiz para merecer esse destino. 

Ela tentou se apoiar em uma prateleira, mas a dor em sua barriga se intensificou, forçando-a a curvar-se novamente. Sua face tornou-se ainda mais pálida. 

— Eu me esforcei… Lutei para te amar, quando meu único desejo era escapar de você. E agora… — Seu olhar desviou para a barriga, perdido em um futuro incerto. — Agora tenho mais um filho para proteger. Preciso resguardá-lo… inclusive de ti. E agora, eu sinto… isso de novo. Essa criança… vai matá-la também. 

Estremeceu violentamente. As mãos agarravam à borda da prateleira com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Um som gutural escapou de sua garganta, uma mistura de gemido e grito.

Emilly deu um passo à frente, o coração disparado, mas congelou no lugar quando viu o que estava acontecendo. O vestido da mãe começou a se manchar de um vermelho escuro, o líquido grosso e viscoso escorrendo lentamente pelas suas pernas. 

A bolsa havia estourado, mas o líquido que deveria ser transparente estava tingido com um vermelho profundo, quase negro.

— Mamãe! 

Ela estava em um estado de pânico, seus olhos arregalados, a respiração irregular e desesperada. Ela tentou falar, mas as palavras não saíam, a dor se intensificando a cada segundo. O sangue continuava a fluir, agora formando uma poça ao redor de seus pés. 

O cheiro de ferro no ar era quase insuportável, misturando-se com algo mais, algo podre, como se a vida que estava prestes a emergir de dentro dela trouxesse consigo uma maldição ainda mais sombria.

Emilly aproximou-se outra vez.

— Sai!

Afastou-se dela, tropeçando ao sair da cozinha e entrando na sala de estar. O rastro de sangue seguia seus passos, manchando o caminho. 

Ao chegar finalmente à sala, seu corpo desabou, ajoelhando-se no centro. Emilly a acompanhou, paralisada pelo que testemunhava, sem saber como agir, como se a realidade ao seu redor estivesse se torcendo.

— Por favor… — A voz da mãe era um fio de desespero, uma súplica, enquanto ela sentia o que estava dentro dela se movendo, rasgando-a por dentro, uma força que não deveria existir. — Não… não deixe… não deixe que isso aconteça…

Mas já era muito tarde. As contrações vieram rápidas e violentas, forçando sua saída a qualquer custo.

Entre gemidos e gritos abafados, o corpo da mulher foi tomado por espasmos incontroláveis. 

Finalmente, veio o alívio. Mas não era o tipo de alívio que ela esperava. Algo escorregou para fora, um peso inerte e pesado, quente ao toque. Ela olhou para baixo. O que viu fez seu coração parar por um breve momento.

A coisa que repousava entre suas pernas era algo que ela não podia identificar como humano. Possuía uma pele translúcida e viscosa, com ossos nitidamente aparentes por baixo. Seus olhos eram fendas vazias, tão negras quanto a noite, e uma boca desprovida de lábios se estendia em um sorriso insano, revelando fileiras de dentes afiados.

Ela tentou se afastar, mas seu corpo estava fraco, exaurido de energia. O toque gelado da criatura em sua pele trouxe uma sensação que a preencheu de repulsa profunda e visceral. 

Aquilo produzia um som, um gorgolejo suave, que logo escalou seu corpo, parando sobre seu peito. Ela sentiu o peso viscoso pressionando-a, o cheiro pútrido de carne podre invadindo suas narinas.

Ao perceber sua fraqueza, o comportamento dele mudou instantaneamente. O sorriso torto se expandiu. Ele inclinou a cabeça para o lado, como uma criança intrigada, observando a mãe enquanto a vida dela se esvaía.

— Mama. — Sua voz era distorcida, como se tentasse imitar uma palavra que não entendia. No entanto, havia um prazer malicioso naquela palavra, como se zombasse do sofrimento da mulher que o trouxera ao mundo.

A mãe emitiu um gemido abafado. Lágrimas misturavam-se ao sangue que descia pelo seu rosto, tremendo intensamente à medida que a hemorragia se intensificava. A dor era insuportável, mas o terror superava tudo. 

Saber o fato de que sua vida estava sendo ceifada por algo que ela própria deu à luz, que o agressor era o filho que Emilly arruinou, constituía uma tortura inimaginável para qualquer ser humano.

A garota, incapaz de assistir à cena por mais um instante, recuou um passo, com o coração batendo descompassado, pulsando em sua garganta. Ela desejava fazer algo, qualquer coisa, para acabar com aquele pesadelo. No entanto, seus pés pareciam raízes fixas ao solo, e a escuridão que emanava do ser a cercava, asfixiando seu ânimo.

— Mama… — repetiu a criatura, mas desta vez, sua voz estava carregada de uma fúria contida, um ódio inexplicável.

Então, num movimento súbito e violento, a criatura atacou a mãe com uma ferocidade inimaginável. Seus pequenos dentes afiados cravaram-se profundamente na carne já mutilada, rasgando-a com uma força que não deveria ser possível para um corpo tão pequeno. O sangue espirrou em todas as direções.

A mãe soltou um grito estrangulado, mas logo seu corpo começou a se debater de forma errática, os olhos revirando nas órbitas enquanto ela finalmente sucumbia à perda de sangue e ao choque. O som de carne sendo rasgada, ossos quebrando, e o gorgolejo final de uma vida que se extinguia preencheram o ar, criando uma sinfonia grotesca e inescapável de horror.

A última esperança se extinguiu ali, afogada no mar vermelho que cobria o chão. 

Quando tudo acabou, a criatura levantou-se de seu corpo. Seus olhos se cravaram em Emilly, e desta vez, a fúria que ele carregava era indiscutível.

“Eu fiz isso contigo. Me desculpa.”

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