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Capítulo 19 – Mulheres e flores são sinônimos. Detêm texturas, visuais e cheiros diferentes, algumas desagradáveis – parte 2

Ao acordar eu sinto uma sensação estranha. Minha bochecha está em uma superfície macia, fofa e aconchegante.

 Um livro é duro, não é fofo e muito menos aconchegante. E também não me recordo de ter pegado algum travesseiro ou almofada para dormir. Ainda mais um travesseiro cor-de-rosa.

 Outra cousa estranha eu sinto: meu antebraço está curado e limpo, não há mais dor ou sangue seco.

 Eu sou um humano normal, não tenho nenhuma capacidade regenerativa comparável a dum dragão para ele ter regenerado sozinho em tão pouco tempo.

 Aliás, «pouco tempo»? Quanto tempo eu exatamente dormi?

 Levanto a cabeça da almofada misteriosa e sou prontamente abordado.

 — Bom dia, Senhor Conflagratus — a voz é da Valeria, a minha noiva.

 Apesar da súbita abordagem, não me surpreende em nada vê-la aqui. Valeria, biblioteca, Valeria, livros…

 — Quanto tempo? E bom dia.

 — «Quanto tempo?» — com o dedo indicador no queixo e os olhos avulsos, ela me pergunta.

 — Quanto tempo eu dormi.

 — O-Oh. N-Não sei… mas o senhor já estava a dormir quando eu cheguei aqui às 6 horas. Agora já são meio-dia, por aí — ela me explica.

 Ao considerar que o último momento do qual me lembro era antes das 6 horas, então eu dormi um pouco mais que 6 horas, huh?

 Não é o ideal, mas já é o suficiente. Meu pescoço dói um pouco por dormir nessa posição estranha numa mesa cascata. A próxima vez eu pego o livro e me vou ao meu quarto mesmo…

 Espreguiço-me na cadeira e tento espantar a névoa que se encontra na minha mente, aquela névoa desnorteante típica de alguém que acabou de acordar. Valeria se encontra sentada numa cadeira para o meu lado e a olhar fixamente um livro de poemas.

 Já que aqui estamos não custa nada ter um momento de noivo e noiva. Para isso acontecer eu só preciso falar sobre algo que ela gosta. E é definitivamente melhor assim, não quero falar de noivado e casamento logo após de acordar.

 — Poemas são realmente incríveis. Seus símbolos e silogismos nos fazem deitar-se completamente no colo da história e sentir-se inspirado. Principalmente poemas épicos — sem aviso algum, eu começo a falar.

 — Algum dia espero ser especial e épico o suficiente para ter a minha própria epopeia produzida e cantada pelos cantos de Salvatoris.

 — Não sabia que tu aprecias poemas, Senhor Conflagratus — com uma leve surpresa em sua voz ela diz.

 — Que homem não aprecia? É uma arte incrível, não é à toa que a aprendemos como dever.

 — Meu… pai, ele diz que é perda de tempo — Valeria adota um semblante deprimido ao contar-me.

 «Dizer sobre o que ela gosta», eu disse… Agora ela me apresenta uma cara tristonha. Que bela atitude, Aurelius, como és considerável!

 Só que eu nem sequer posso julgá-lo também. Ao considerar o estado da Domus Deciduus é mais viável gastar seu ócio na salvação de sua casa do que em uma arte qualquer.

 Mas devo dizer que esse é um dos mal do mundo, preocupar-se tanto com dinheiro e status ao ponto de esquecer-se de apreciar as bondades desse mesmo mundo. E não falo isso somente porque sou alguém dotado de dinheiro e status em abundância.

 Este mundo nunca foi ruim, este mundo nunca foi bom. Este mundo é simplesmente real. Façamos dele o que quisermos: bom ou ruim.

 — Se tu gostas, ele também deve gostar, é de sangue, Valeria, apenas não sabe ainda. Algum dia ele saberá — tento dá-la conforto.

 — Espero que sim, espero que esse dia chegue… — a suspirar ela se força a concordar.

 — Esses poemas são sobre o quê? — retomo os poemas como foco da conversa. Meu objetivo aqui é falar de cousas que ela gosta, não de suas malesas.

 — São poemas românticos, da segunda geração romântica.

 Aos que entendem isso seria uma surpresa, um espanto, uma antítese. Uma magra garota de cabelos ruivos, baixa, bela. Uma pele extremamente branca, mais que branca: pálida. Como uma boneca de porcelana a sua aparência é.

 E essa boneca de porcelana carrega em suas mãos a expressão máxima da desgraça.

 Mal do século, decadentismo, pessimismo, cinismo, goticismo, ultrarromantismo, morte, privação de amor, medo, angústia, arrependimento, melancolia, escapismo. De tudo em que nos lamentamos, de tudo em que nos vivemos.

 O consumo da alma pelo tédio. Para todos que veem por fora, isso seria surpreendente. Só que eu não vejo por fora, eu não me surpreendo. Eu já observei muito a Valeria para captar ao menos uma mica da tua essência.

 — É a tua era preferida? — questiono-a mesmo a saber a resposta.

 — Acho que… sim, toda vez que leio um poema desse tipo eu consigo sentir satisfatoriamente o que o autor que escreveu sente, satisfatoriamente eu consigo lamentar em conjunto o que sentimos — a realizar carícias em seu cabelo, ela me confirma.

— O senhor gosta de poemas épicos, não? Acredito que da mesma forma em que o senhor se admira e vê as nuanças e semelhanças dos heróis para ti, eu também consigo vê-las em meus particulares heróis — ela conclui ao olhar para mim.

— Possível. Contudo é certeza que meu apreço é advindo também da ideia de algo que eu possa alcançar, movimento de alma.

 O que nós gostamos é o que nós admiramos, o que admiramos é o que sentimos, o que sentimos é o que queremos, o que queremos é o que gostamos. Um eterno ciclo, virtuoso ou vicioso ao depender do que aconteça.

 Mas quando seu ciclo é feito em cima de sua própria melancolia ele se torna maldoso, torna-se vicioso. Flagelo a si mesmo que mostras ao ambiente.

 E é esse o meu problema com os cultistas da desgraça.

 Reparo que ao lado dela há um caderno, sem título, e uma caneta rebuscada de cor preta, tinta preta eu diria por conta da própria cor do acabamento.

 Isso atiça a minha curiosidade, estendo a minha mão para pegar o caderno, contudo ao perceber a minha ação a Valeria, embaraçada, imediatamente coloca sua mão em cima dele. Como uma mãe loba que protege os seus filhotes.

 — O que foi? Valeria. Por que a vergonha?

 — Se for o que eu estou a pensar, não será a primeira vez que verei as tuas escritas pessoais — justifico o meu ato.

 — Fresco… está fresco…

 — «Fresco»? A tinta? — sem entender muito bem o que ela quer dizer eu pergunto.

 — É que… eu acabei de escrever alguns poemas. Estão frescos, meus sentimentos nele — Valeria diz enquanto pega seu caderno e o abraça envergonhada a olhar para o chão.

 Vergonha. Um sentimento comum de todos os que possuem sentimentos. Geralmente acontece no momento em que uma particularidade do ser é exposta, algo que tu escondes ou algo que tu não tens confiança. A deixá-lo nu, deixam-na nu. E seria estranho não tê-la.

 Apenas exibicionistas não possuem vergonha. E todos nós sabemos que exibicionistas são pessoas de caráter duvidoso! Espera, eu sinto que agora eu me contradisse com algo que eu disse no passado…

 Bah, é sem importância. Meu foco aqui é conversar e conhecer mais a minha noiva, vamos lá.

 — É comum pensarmos que «arte» é algo expositivo, de dentro para fora. Até porque de fato comumente é isso que ela é, contudo se é «comumente» significa que nem sempre é.

 — Ocasionalmente ela é introspectiva, um desabafo contra o mundo. Sem sentido, sem forma, sem razão. Isso tudo para quem não a pertence.

 E ninguém tem a obrigação de expor-se ao outro.

 — Contudo, como um desabafo eu considero que ela deve ser escutada, atenciosamente. Muitas vezes é reconfortante apenas reclamar e lamentar as adversidades da vida. Confia em mim, Valeria — termino meu discurso que de certa forma soou motivacional.

 Mas talvez seja possível achar a força e confiança que não encontramos em nós mesmos no cerne de outrem. Por que não tentar?

 Ao ouvir minhas palavras Valeria cora, mas sorri depois. Seu sorriso é tímido e pequeno, como uma criança a descobrir os pormenores de cada fato e existência em sua volta.

 Isso foi meio meloso, não foi intencional, mas não que seja errado. Em tese ela será a minha futura mulher, ser meloso assim ainda é leve.

 — Tu prometes que não irás desprezar o que eu escrevi nem sentir nojo? Senhor Conflagratus — com receio ela me pergunta.

 — Prometo, Valeria. Eu já sequer fiz isso alguma outra vez? — afirmo sem pestanejar.

 Valeria balança a cabeça em concordância e me entrega seu caderno, ainda receosa, a colocá-lo em minhas mãos. Ao abrir o caderno eu posso contestar que ele é usado, bem usado, com escritas, prosas, poemas e poesias da sua primeira página até a atual.

 O que ela me disse sobre «estar fresco» me foi impactante, então eu escolho ir até as páginas mais recentes e ler o que lá está.

 Todavia, algo me chama a atenção, nenhum dos poemas possui títulos. Por que isso?

 — Por que nenhum deles tem título?

 — Porque… eu nunca sei sobre o que vou escrever até o momento da tinta sair — Valeria desvia o olhar e sorri forçadamente ao dizer.

 É interessante, é triste. Está-se aqui o objeto, que eu faça. Começo a ler.

[E, então, tudo acontece, acontece, acontece

 O tempo a pensar sozinho, em solenidade

 Fico para trás, piedade, piedade, piedade

 Não quero ser esquecida, faço minha prece

 Chamo o tempo de pai

 Domina, doutrina

 Carnificina

 Sou a escolhida que decai

 Invejo-os por sorrir

 Constantemente, constantemente, constantemente

 Mente, mente, mente

 Motivos sempre formam obrigações

 Sembre, sembre, sembre

 Desmembre, desmembre, desmembre]

 Soneto clássico, rima do tipo interpolada, versos livres.

 Ela realiza anáfora nos primeiro e terceiro verso da primeira estrofe, ao repetir a mesma palavra o objetivo dela é a confirmação do fato? Ou talvez o realce do que aconteceu naquele ou em algum momento.

 Novamente ela se utiliza dessa técnica nos segundo e terceiro verso, mas agora nos tercetos finais. Desta vez a repetição aparenta ter como objetivo um espécime de negação ao mesmo tempo em que é recordação. «Mente, mente, mente.», «Sembre, sembre, sembre».

 Claro, isso tudo é a minha análise, poemas são abertos à incontáveis análises. Não posso dizer a verdade, mas creio eu que seja isso.

 E o que mais me chamou a atenção foi o uso duma única palavrinha de 3 letras…

 O segundo poema que irei ler também não possui nome, neste momento já não é nenhuma surpresa.

[Foi-se o dia em que o Sol brilhou

 Filho de deus

 Cuida-te apenas dos teus

 Do I ao VII se abrandou

 Luz é vista

 Luxuosa

 Glamourosa

 Obtida, somente, por quem a conquista

 E não é justo esconder a arma

 A dor causada, esquecida

 A ferida escusada, não medida

 Porque homens negam as causas

 Pois pouco importa a dor causada

 Já que pouco importa a ferida escusada ]

 Novamente os seus poemas seguem o mesmo tipo de estrutura, ela deve realmente gostar do modo clássico em sonetos. É facilmente dizível o fato de ambos os poemas estarem no esquema de rimas «ABBA CDDC EFF GHH».

 «Obtida, somente, por quem a conquista», pouco a pouco a esperança de alguém pode ser tomada. Seja pela obrigação imposta, seja pela maldade oculta. Dor e ferida, causada e escusada. A dor é indiferente para quem não a sente, uma ferida é escusável para quem não a sente.

 Empatia é a capacidade de alguém colocar-se no lugar do outro, mas isso acontece quando somos intrinsecamente diferentes? Quando minha mente e a sua são intrinsecamente diferentes? Quando nossas experiências são intrinsecamente diferentes?

 Suponho que não.

 — São introspectivos, não são?

 — Acho que… sim. Não, são sim introspectivos — a titubear brevemente, ela faz uma afirmação. Não consigo dizer se é verdade ou não.

 — A maioria de seus poemas também são?

 — Isso depende do que sinto, do que vivo. Ninguém é imutável, cada segundo que passa nos tornamos alguém diferente do que éramos no segundo passado, retrasado… — com suas mãos entrelaçadas Valeria me explica.

 — Isso é verdade. A velha história de que nenhum home passa pelo mesmo rio duas vezes — concordo com ela.

 A característica de ser imutável só é possível ao que já nasceu ou se tornou perfeito. Humanos perfeitos? Boa piada.

 — Então… o que tu achastes?

 — Sobre teus poemas?

 — S-Sim.

 — Bons, permite-me a ousadia em decifrar teus sentimentos, assim como as tuas vivências — dou o aviso prévio do que está por vir.

 — O primeiro poema me fez pensar sobre algo, eu senti como se ele fosse dito por duas vozes. Ou talvez duas faces do mesmo ser — inicio a minha opinião sobre o poema.

 — A primeira face seria o arquétipo da boa mulher. Como uma boa mulher ele é sempre prestativa, sempre obediente, sempre lá. Nos momentos de dores de seu amante, nos momentos onde sua mente se perde. Ela está sempre lá se a doar-se por inteira e a ser por inteira ela mesma.

 — Sem mentiras ou falsidades. Humanos corriqueiramente usam máscaras: para se protegerem ou para atacarem, mas não ela. Ela é a boa mulher.

 Enquanto me exprimo, Valeria escuta atentamente com suas mãos juntas. A tentar compreender minhas palavras ao ponto do irredutível.

 Apesar de ser uma simples opinião, que diferirá das opiniões dos vários outros, ela ainda assim quer escutar atentamente. É algo que ela gosta, sua paixão.

 — Só que o mundo muitas vezes é o contrário de bom, contrário de boa. E para o contrário da bondade a maldade é facilmente dita. Facilmente utilizada — faço duas colunas paralelas com as minhas mãos.

 — Talvez esse seja o problema da boa mulher, das boas pessoas, a ausência de uma máscara faz com que ela se torne previsível. E essa previsibilidade dá o conforto necessário para quem ousar praticar a judiação.

 — E assim a boa mulher vai a decair, a decair e a decair. Ao ponto dela morrer por bondade ou por virar apenas mulher — concluo a minha análise.

 Porque é detestável saber que um pingo da luz no breu não é capaz de ocorrer mudança de estado, mas apenas um pingo de negridão na luz… E assim alguém perde a sua essência.

 Ao olhar para a Valeria atesto que ela está cabisbaixa, como se a paixão que ela demonstrou há pouco se extinguiu tal como a chama duma vela sobre a chuva. Completamente.

 — … Valeria? — demonstro preocupação por ela.

— Hã? Ah, sim. Continue, por favor, o que seria a segunda face?

 Sinto que o que eu disse a afetou, não seria tão gentil de minha parte continuar a expor meus pensamentos. Contudo, seria menos gentil ainda demonstrar dó sobre a bravura dalguém.

 — Se a primeira face é a boa mulher, a segunda face é a cobra. Não poderia ser outra. «Invejo-os por sorrir», a cobra representa a vontade de obter algo que não possui, de conhecer algo que não é permitido. Ousadia pura. E tal ousadia seria revolta ou pura malevolência? Isso eu não sei.

 — Essa segunda face eu a vejo fraca, ainda, mas presente. A esperar a breve oportunidade na qual ela poderá dar o bote e assumir o lugar.

 — Bom, essa é a minha interpretação — concluo e olho para a Valeria a esperar pela sua reação.

 — Hehehe… — ela simplesmente ri.

 — O que foi? Estou errado?

 — Não! Quer dizer, talvez sim, talvez não.

 — É que te ver a explicar de maneira tão ampla e detalhada o que eu escrevo na fugacidade dum momento é engraçado.

 — Eu… eu nem sei o que eu escrevi, o que eu sentia no momento. Muitas vezes eu escrevia e num surto rasgava a página, rasurava as frases. Dá-me a impressão que tu me entendes melhor do que eu entendo a mim mesmo.

 — É falso dizer que te conheço melhor que tu conheces a ti mesmo. Ninguém conhece melhor «tu» do que ti mesmo.

 «Conhece-te a ti mesmo» no final de tudo é um axioma.

 Aproximo-me de onde ela está, coloco a palma de minha mão sobre a mão dela e aperto gentilmente.

 Sua mão é pequena e fria. Consigo sentir os finos ossos de sua mão perfeitamente. A levar-me a pensar que ela poderia quebrar no menor dos esforços sofridos. Completamente e totalmente frágil.

 E é essa fragilidade que, de modo curioso, me faz querer segurar essa mão e protegê-la.

 — Contudo, afirmo em verdade que eu quero conhecê-la mais e mais, Valeria.

 Valeria cora brevemente.

 Entender a peculiaridade da psique de alguém melhor que sua própria consciência? Não, não. Isso não me seria possível.

 Mesmo que eu tentasse o meu máximo, mesmo que eu me dedicasse ao máximo. A psique humana é única, individual e egoísta.

 Um conhecido analista humano do Império, Stagirorum, dizia que há 3 tipos de psiques, almas, essências ou animae,se quisermos utilizar a língua antiga. Em suma: Anima Vegetabilis, Anima Sensibilis e Anima Rationalis.

 A primeira psique seria uma alma de cunho elementar que todos serem possuem, até os mais simples como as plantas, é o que nutre.

 A segunda possui cunho intermediário, geralmente monstros ou animais possuem esse tipo de psique. É o que realiza a percepção com o mundo material.

 Por último, e mais importante, temos o princípio mais elevado, princípio de todos os seres feitos com base em puro æther.E o que passa o material e atinge o sensível, capacidade de pensar e racionalizar. Potência e ato. Existe sem sequer tem correspondência ao corpo.

 Tal capacidade de psique é o que nos torna tão complexos e da mesma forma tão magnânimos. A existência dalgo que nem sequer é correspondido no aspecto humano.

 Seja, pois, isso que nos momentos no qual a névoa da existência existe, cuja ideia e realidade finalmente se casam e cobrem a superfície da mente, a resposta sempre estará dentro de si mesmo, dentro da tua anima imbuída de puro æther.

 Sim, ninguém te conhece melhor do que ti mesmo.

 Todavia, não nego: possa ser que para descobrir a resposta seja necessário ajuda. Dos aspectos do reino terreno, mas principalmente do reino supra existencial.

 E é apenas isso que eu posso fazer neste momento. Oferecer ajuda terrena.

 Valeria está com uma expressão estranha que eu não consigo afirmar que sentimento a domina neste momento. Tristeza? Raiva?

 — Eu tenho medo, Senhor Conflagratus. Eu tenho medo — Valeria morde os próprios lábios e exprime sua mente.

 — Medo de não conseguir, medo de não suportar, medo de falhar. Medo de não ser o que eles esperem que eu seja — ela aperta minha mão em resposta.

 O que ela fala agora é o que o seu segundo poema me mostrou.

 — De tudo o que poderia ter acontecido, eu aconteci. E o meu acontecimento causa desprezo por todos, não importa o que eu faça.

 — Falas tu sobre as mulheres desta casa? — pergunto a ter em mente principalmente a relação dela com a Beatrix.

 — Se ao menos apenas elas fossem. O desprezo é sentido onde quer que eu esteja, aonde quer que eu vá. Principalmente em minha casa — Valeria desabafa.

 Apesar do evento de nosso noivado, eu nunca troquei uma palavra com seus pais. Sim, sou literal ao dizer isso, nem mesmo uma única palavra.

 Claro, eu possuo grande culpa nisso. No dia de meu noivado eu nem sequer sabia que iria noivar, não compareci ao local por «motivo maior», todavia não fiz esforço para comparecer.

 Após isso seria plausível pensar em que sua família viria conhecer-me, não? Conhecer o homem que irá tomá-los de sua querida, preciosa e única filha, não? Conhecer seu futuro genro, não?

 Não, não e não.

 Tamanhos acontecimentos manifestam um axioma inegável sobre a Domus Deciduus.

 Para eles a Valeria é uma moeda de troca, ou no melhor dos casos uma galinha dos ovos de ouro. A redenção duma casa de nobres decadentes através dum casamento motivado puramente por interesse.

 Que sacralidade! Consigo imaginar o quão aguardado por eles é o dote de conubium a vir duma Domus de marqueses.

 Afinal, por obrigação de lei quanto maior é a hierarquia da casa do homem, maior é o dote por questão de obrigatoriedade. Não somente, o fato de ela ser filha única da Domus a torna «mais cara» ainda aos olhos das leis imperais e sagradas do Império.

 Pondero o porquê de meu pai ter aceitado a proposta desesperada deles de noivado. É realmente benéfico ter um bando de nobres asquerosos a tornar-se seus subordinados? Em meu entendimento é apenas nojento.

 Destino ou dever? O que obriga Valeria?

 — Há vezes que eu penso em fugir, desistir, deixar tudo para trás. Um sonho seria… sonho distante.

 — Seria patético de minha parte fazer, mas não consigo deixar de pensar nisso. Cada dia me sinto mais sem esperanças.

 Valeria continua a pestear sobre si mesma e categorizar a sua infelicidade. Suas palavras são recheadas de aflito e melancolia, pois assim são suas experiências.

 Ao contrário do que seria comum pensar neste momento, não há princípio de lágrimas em seu rosto. Não sei dizer se isso é sinal duma barragem ou apenas dum rio que se secou.

 Segunda geração romântica, ultrarromantismo… Só que não há exagero em seus dizeres, característica típica dos ultrarromânticos, apenas vivência. Ou será que é isso que todos os ultrarromânticos vivem? Talvez eu devesse repensar a minha ideia sobre eles.

 A imagem da Valeria deprimida me causa aflito, não consigo suportar a imagem dalguém tão doce em melancolia. E esta hora é perfeita para oferecer ajuda.

 — Valeria, poderias dar-me a tua caneta e caderno por um instante?

 — Oh, sim…? — Valeria os entrega sem entender o motivo de meu pedido.

 Eu não sou um fã apaixonado pela escrita ou pelos poemas em geral, mas como todo bom patrício ainda assim a aprendi admirar. Bem como fazer.

 O que quer que eu vá escrever agora não ficará em pé de igualdade com os poemas de grandes escritores históricos, nem mesmo aos poemas que a Valeria escreve. Contudo, isso não me impede de tentar expressar sentimentos e pensamentos.

 Versos livres e brancos, afinal, não sou exímio nessa arte e quero algo na prontidão deste momento.

 Com a caneta que recebi em minhas mãos começo a escrever. Não pretendo demorar muito.

 Valeria me observa atentamente, como uma criança a olhar sua mãe preparar seu doce favorito na cozinha.

 Penso, escrevo, penso, transfiro, penso, crio, penso.

 Após alguns minutos o meu humilde poema se termina. Pego o caderno e entrego de volta a Valeria.

 Ela toma o caderno em suas mãos e o observa.

 — O teu poema também não tem título…

 — Sim, escrevi sem saber o que ele se tornaria.

 Enquanto eu escrevia a única cousa que eu sabia é que quero fazê-lo chegar até ti, Valeria.

 — Nas profundezas de uma gruta há sombras — Valeria começa a recitar meu poema.

 — De tudo aquilo que sentimos, que vemos, que odiamos.

 — E o grupo do ego, alter e super sempre observam.

 — Imagem aqui, imagem ali, imagem acolá.

 — Imagem de esperança.

 — O que é a verdade? Aquilo que eu agora sei.

 — Fora das profundezas há outrem.

 — Olho e vejo o que não sabia.

 — Luz.

 — Não mais sombra. Imagem.

 — O Ego, o Alter e o Super agora vivem.

 — Não mais observam.

 Ao chegar ao final do poema Valeria começa a rir, embora essa risada em instantes se torna um choro.

 — É tão simples e besta, até mesmo malfeito. Mas, mesmo assim… — de maneira chorosa ela diz.

 Não há mais barragem, o rio também não se secou.

 — Olá, … meu nome é ES-PE-RAN-ÇA! — ela termina de recitar meu singelo poema.

Valeria p115

 As lágrimas de Valeria começam a manchar o papel. Ela olha para mim e sorri. Há contraste entre seu sorriso branco com a vermelhidão da esclera de suas pupilas amarelas escuras. É belo.

 É, também, genuíno: seu sorriso e o que eu agora senti.

 — Obrigada… Aurelius.

 Tenho esperanças que neste momento eu tenha feito algo bom.

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Olá, eu sou Abner!

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