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Perto do Parque dos Lagos, na Rua Augustus, tinha uma casa azul ciano. Grandes janelas com vista para o quintal adornavam a residência.

Ao lado havia outra casa, de dois andares. O jovem a observava da janela de seu quarto. As paredes eram escuras. As janelas pequenas estavam sempre fechadas.

O garoto se distraía com tudo do outro lado, perguntando-se sobre seu estranho vizinho: a pele vermelha, o rabo pontudo e os dentes afiados eram completamente comuns na sociedade, e ainda assim o homem que vivia ao lado sempre dava calafrios.

Ele se concentrou e, nada surpreso, mas ainda assim intrigado, ouviu novamente aqueles sons estranhos. Às vezes pareciam gritos, às vezes o som de um facão batendo em madeira e outras lembravam panelas caindo ao chão.

Desta vez foi o ranger da porta de seu quarto que o assustou. O garoto se levantou bruscamente, olhando para a mulher em sua frente. Ela sorriu.

— O almoço tá pronto.

Enquanto comiam arroz carreteiro, o garoto decidiu retomar o assunto que sempre acabava voltando uma hora ou outra.

— Eu ouvi os sons de novo, mãe. Sei que você também pode ouvi-los, tenho certeza que o Carnival tá fazendo coisas escondidas lá na casa dele.

— Miguel, você sabe que isso é preconceito contra os demônios, ele sempre foi nosso vizinho e nunca arranjou problema nenhum. Ele deve só ter deixado a TV ligada, ou outra coisa.

— Aquilo não é som de TV, e não é preconceito, sei que você luta contra isso, mas eu tenho certeza que tá rolando algo estranho na casa dele.

A mãe ficou em silêncio um instante. Apenas o som dos talheres se chocando contra os pratos foram ouvidos. Miguel quase nem tocava em seu arroz.

A expressão dela mostrava que estava pensando sobre a conversa. Sua mãe não era uma pessoa que gostava de atrapalhar os vizinhos ou de chamar a polícia, mas também não gostava do que ouvia vindo da casa.

— Tudo bem, olha, para não termos mais essa discussão eu vou chamar a polícia. Eles vão investigar. Se for algo grave eles mesmos irão resolver, e se for apenas um mal entendido, eu e você vamos pedir desculpas pelo incômodo. Não gosto de vizinhos que ligam para a polícia por qualquer coisa e não vou ser um deles.

Miguel foi se vestir enquanto ouvia sua mãe do outro lado da porta falando com a polícia. Depois disso, ela avisou que eles já mandaram alguém ir conferir.

Depois de se vestir, desceu até a cozinha, passou pela sala e se despediu da mãe. Na rua, viu uma viatura parando na frente da casa ao lado e não conseguiu evitar dar um sorriso.

Quando o policial desceu do carro, o sorriso se desfez e Miguel franziu a sobrancelha. O indivíduo também era um demônio, rechonchudo demais para ser um oficial, na opinião do garoto.

Viu o homem entrando e se virou novamente para seguir seu caminho, embora aquilo não o agradasse nem um pouco. Sentiu um calafrio na espinha, “Não é preconceito, juro”, pensou.

Na volta da escola, Miguel já sabia o que esperar. Não achou que teria que fazer isso, mas ele e sua mãe foram até o seu vizinho Carnival.

Tocaram à porta quatro vezes antes de escutarem os passos vindo em direção à eles. O demônio abriu e permaneceu em pé com uma mão escondida atrás da cintura, como um cavalheiro.

— Boa tarde, Carnival… — Enquanto sua mãe falava, Miguel não conseguiu deixar de reparar em sua aparência.

Seus olhos eram amarelos, muito profundos, como se ele enxergasse coisas que os humanos não viam. Era magro, mas não parecia nada fraco. Usava roupas que lembravam as de um açougueiro.

— Por isso pedimos desculpas pelo incômodo. Não é mesmo, Miguel? — Nessa última frase, o garoto voltou a si, e sem jeito concordou com a cabeça.

— Er, sim, nos… nos desculpe pelo incômodo — repetiu.

O demônio os observou penetrante, com um sorriso de orelha a orelha, mostrando seus dentes afiados. Miguel jurou ver uma mancha de sangue em seu dente, ou talvez fosse apenas vinho.

— Oh não, não, não. Não é necessário se desculpar, senhorita Evanlyn. A senhorita não fez nada de errado. Agiu segundo o que julgou ser o melhor a se fazer e não se escondeu. Admiro isso. Além disso, eu é que deveria pedir desculpas pelo barulho, não sabia que os incomodavam. Verei o que posso fazer para resolver.

Pela primeira vez, Miguel ouviu sua voz, áspera e metálica, como se passassem um canivete por uma barra de ferro. Embora formal e gentil, algo nele causava incômodo.

— Muito obrigado pela compreensão, Carnival. Espero que nossa relação como vizinhos permaneça agradável. Tenha um bom dia. — Evanlyn olhou para o filho, esperando que dissesse algo, o que não aconteceu.

— Ah sim, tenho certeza que será… ótima.

Depois de se despedirem voltaram para casa. Miguel recebeu um sermão da mãe e após escurecer, quando estava em seu quarto, se pegou novamente pensando no assunto.

Olhou pela janela e percebeu algo que nunca tinha visto antes: uma fresta aberta. A janela do vizinho estava destrancada. Seus olhos passaram pelo quintal da frente, não tinha nenhum carro. Carnival com certeza não estava em casa.

Miguel desceu as escadas, devagar, abriu a porta do quarto de sua mãe e confirmou que estava dormindo, pois ela acordava muito cedo para trabalhar. Se ele saísse de casa, Evanlyn nunca perceberia.

Calçou o tênis e atravessou a rua iluminada pelos postes. Observou todos os lados diversas vezes, imaginando que a qualquer momento Carnival ou o policial demônio apareceriam.

Foram poucos passos até chegar lá e a espera na frente do portão foi maior do que o trajeto até chegar ali. Até que ele pulou o pequeno portão e já estava no quintal do vizinho.

Caminhou rápido até a lateral da casa, sentindo olhares inexistentes à sua volta. Miguel se pegou prendendo a respiração e se manteve assim até abrir a janela.

“Merda, o que eu to fazendo?” Pulou para dentro e ligou a lanterna do celular. Eram 00:58, pelo que viu de relance. Se virou novamente e fechou a janela, se perguntando o que aconteceria se o descobrissem.

 O lugar era completamente normal, não havia nada suspeito. A sala era totalmente arrumada e limpa, sem mesmo uma cadeira torta ou um talher fora de lugar. Passou pelo corredor, depois por um banheiro. Nada.

Estava indo em direção ao quarto quando viu uma escada que descendia. Se existia algum lugar com coisas escondidas naquela casa, com certeza era no porão.

O primeiro degrau rangeu. Miguel sentiu um calafrio na espinha e um medo crescente. Outro passo e o som da madeira se repetiu.

No final havia uma porta de madeira resistente, ao girar a maçaneta a porta emperrou. Estava trancada. O pequeno estalo o assustou, deixando-o sem fôlego por um momento.

Parte dele não queria estar ali, queria fugir e voltar para casa. A outra parte queria entrar no porão e descobrir o que estava escondido lá, mas não tinha chance, já que não sabia onde estava a chave.

Começou a subir para voltar para casa quando notou algo estranho: o primeiro degrau parecia estar com marcas de arranhão em 90° nas paredes.

O garoto pensou por um momento, aproximou a lanterna e se abaixou. Ele ergueu a madeira, como se abrisse um baú, dentro havia muita poeira, teias de aranha e uma pequena chave.

Sentiu uma pontada de orgulho e a curiosidade subindo. Se alguém esconde a chave de uma porta, o que tem do outro lado não deve ser visto. E o que não deve ser visto é o que atrai.

Girou a chave e abriu a porta, devagarinho. Ele colocou o dedo na frente da lanterna, com medo de que tivesse alguém ali e entrou, fechando a porta atrás de si.

Vendo que estava seguro tirou o dedo e com a lanterna apontada para o chão percebeu manchas, não reconhecendo do que seria. Subiu com a luz lentamente, tremendo.

Estava frio ali dentro, o lugar causava arrepios. Também era difícil de respirar pelo ar rarefeito do porão, embora não tivesse poeira.

Viu fios amarelos que a princípio não reconheceu, talvez sua mente não queria fazê-lo. Iluminou a testa escorrendo vermelho e o rosto de uma mulher de cabeça para baixo foi mostrado pela lanterna.

Um dos olhos estava estourado, de onde escorria o sangue. Um odor horrível pairava no ar, moscas pousavam na boca do cadáver. Seu corpo estava nu, pendurado por correntes até um gancho no teto.

Um corte extremamente profundo iniciava, abrindo uma fissura da altura da cintura em uma linha perfeitamente reta até o início do pescoço. Se podia ver a carne vermelha por dentro, embora não se via os órgãos.

Miguel ficou paralisado. A ânsia de vômito cresceu nele e cobriu a boca com a mão. Se agachou bruscamente e manteve ambas as mãos na cabeça.

“Isso não pode ser real, mas que porra é essa!”, tentava manter a mente sã, seu estômago se revirou. Por algum motivo, Miguel imaginou sua mãe pendurada ali, com o estômago aberto e presa às correntes.

Tentou se controlar, se levantou e passou a lanterna rapidamente pelo lugar. Pelo menos dez ou doze pessoas estavam presas e mortas ali, penduradas como porcos em um açougue.

No canto esquerdo havia uma mesa de metal, e outra pequena ao lado, com diversas ferramentas, sobre tudo facas.

Na mesa maior havia um cadáver preso, nu como os outros. Este não parecia tão antigo. Miguel o observou, o único lugar que parecia cortado era sua boca, pois estava manchada de sangue.

O cadáver girou a cabeça e o olhou, arregalando os olhos em pânico. Abriu a boca para gritar, ou tentar, mas apenas um som baixo e desesperado saiu.

Miguel soltou o celular, deixando-o cair. Não conseguiu evitar de soltar um grito, não tão alto, mas curto. O que via era um pesadelo.

Entrou em desespero, o homem preso na mesa de metal começou a se sacudir, fazendo as correntes se debaterem. “Eu vou chamar a polícia”, pensou Miguel.

O garoto correu até a porta, a abriu e começou a subir, quando ouviu um som. Não vindo de baixo, mas de cima. Eram passos, a luz acendeu no corredor.

Miguel sentiu um arrepio por todo seu corpo. Lágrimas se formaram, não acreditando no que acontecia, suas pernas ficaram bambas. Por um segundo pensou que ficaria ali paralisado para sempre.

A chave foi depositada pelo garoto no último degrau novamente, ele não teve outra escolha a não ser voltar para o porão.

Fechou a porta e buscou por seu celular, que estava no chão, embora a escuridão total fazia ser impossível que o encontrasse rapidamente.

— Mas que porra de barulho é esse! — Era a voz do demônio, Carvinal. O garoto olhou para a porta, ou para onde ela estava, já que não a viu pelo escuro.

Miguel se jogou no chão e tateou até encontrar o celular, depois se levantou e se apoiou em alguma coisa gelada. Uma mesa. Sentiu o homem atrás de si se debatendo.

— Faz silêncio! Para, para! Eu não vou te machucar, por favor, faz silêncio! — Era uma espécie de grito e sussurro ao mesmo tempo, mas o homem continuou se debatendo, até mais do que antes.

Ouviu o ranger dos degraus e a luz passando pelas frestas da porta. Miguel correu, com as mãos para frente. Havia tentado ligar o celular assim que o pegou, mas com a queda acabou desligando. Decidiu que não o ligaria até ficar seguro, já que ao fazer isso o som o denunciaria.

Com a luz passando pela fresta da porta, Miguel conseguiu enxergar no fundo da sala dois baús grandes de metal, quadrados. Correu até o primeiro deles.

— Porra, cadê a chave?! — Ouviu o demônio.

Ao abrir o baú, o que viu foi kilos e kilos de órgãos humanos. Pulmões, corações, fígados, tripas, rins e até mesmo pedaços de gordura e órgãos sexuais.

A porta foi aberta com um estrondo. Miguel entrou no segundo baú, sem ver o que tinha dentro. A luz do porão foi ligada e o demônio entrou furioso.

— Mas que porra é essa, heim? Você se acha muito esperto né. Pensou que se safaria assim?

O coração disparava, Miguel perdeu toda sua força. “Me descobriram!”. Sem perceber estava tampando a respiração, com o celular na mão, ainda desligado.

O barulho das correntes havia cessado, e o único ruído que se ouvia era de uma faca arranhando metal. Enquanto mais o som se aproximava, mais Miguel se preparava para o que estava por vir.

— Seu porco de merda, já falei que gritar e se debater não faz diferença. Ninguém vai te ouvir daqui. — Quando Carnival terminou de falar, ouviu-se a faca cortando carne e o berro silencioso do homem preso.

As correntes se agitaram mais do que nunca. A cada segundo o som traumatizante penetrava a mente de Miguel. Tanto que mal teve tempo para perceber onde estava escondido.

O garoto, ainda escondido, ouviu o som de uma chamada sendo realizada. A ligação foi atendida e a voz áspera tomou conta do lugar.

— Gullar, já falei pra não esquecer a porra da porta destrancada. Você vem, leva os corpos e tranca a maldita porta. É o único que você tem que fazer.

A voz do outro lado da ligação era baixa demais para ser ouvida, embora Miguel já tinha uma ideia do que seria respondido por ela e isso o assustava.

— Não, é claro que não foi você — continuou a voz metálica. — Foi a putinha da sua mãe quando veio me pagar um boquete ontem. Se você esquecer a porta aberta novamente, vou te colocar no lugar dos porcos.

A chamada terminou e Carnival o amaldiçoou mais. Com certeza não parecia ser o mesmo vizinho gentil e cavalheiro que tinha se mostrado ser.

— Agora, vamos continuar de onde paramos. Já tirei a sua língua, agora que tal as unhas…

Carnival conversava com a vítima e a amaldiçoava, dizendo que ele era apenas um humano e que aquele era seu lugar. O garoto ficava inquieto pois pareciam horas de tortura.

Na escuridão, Miguel sentia em baixo de si pele, carne e membros completos. O baú estava cheio de cadáveres humanos, disso tinha certeza. E ele estava deitado sobre eles.

Muitas horas se passaram, os gritos do homem ainda ressoavam na sua mente. Carnival parecia ter saído, pois o silêncio tomou conta do lugar e a fina linha de luz que passava pela porta se apagou.

Tentando não fazer barulho, Miguel abriu a tampa do baú. Só aí percebeu o quão rarefeito estava ali dentro, sendo difícil de respirar. Ele retomou o fôlego e juntou coragem para se erguer.

Saiu de dentro e agarrou seu celular, pressionou o botão para ligar e esperou. O símbolo apareceu, trazendo luz e até machucando seus olhos, pois estavam acostumados com o escuro.

“O que foi isso?”, Miguel ouviu os passos voltando, o ranger dos degraus. O som que o celular faria ao terminar de ligar seria alto o suficiente para o delatar.

Sem pensar duas vezes, o garoto virou o aparelho e arrancou a bateria. A porta se abriu e não somente Carnival entrou, se não que mais dois demônios o acompanharam.

Pelo desespero, Miguel acabou deixando a bateria cair de suas mãos, depois a chutou para baixo do baú de metal. Entrou novamente e enquanto o fechava a luz foi acesa.

— Vocês chegaram pontuais hoje. São 3:27, dois minutos adiantados. Espero que continue assim — disse Carnival.

— Sim chefe.

— E Gullar, venha, quero ter uma conversinha com você.

O estrondo da tampa de metal se abrindo fez Miguel quase ter infarto. Dois demônios de cerca de dois metros de altura e ternos bordô o encontraram.

Um deles era gordo e mostrava as presas, sorrindo. O outro era forte e sério, com uma cicatriz no olho. Ambos de pele vermelha e olhos amarelos.

O garoto paralisou de medo e algo fez com que se mantivesse assim quando o mais forte o agarrou e o colocou em seu ombro.

O outro fez o mesmo com um dos cadáveres do baú. Miguel prendeu a respiração e tentou olhar fixamente para um lugar só. Sem mover um músculo.

O demônio subiu as escadas e, quando virou de costas, o garoto viu de relance seu vizinho de costas. Passaram pelo corredor e chegaram na garagem fechada.

— Porque só esse garoto está com roupas? — perguntou o gordo.

— Vai saber — respondeu o outro e colocou Miguel dentro de uma van preta, sem janelas na parte de trás. — Acho que ele foi descartado, porque também não foi aberto.

— Não dá pra entender o Carnival…

Quando os dois saíram, Miguel se levantou, saiu da van e caminhou até o portão da garagem, mas estava fechado. Não teve escolha a não ser voltar onde estava.

Os demônios trouxeram mais cadáveres e jogaram junto do garoto. Um deles caiu em cima de Miguel, que se segurou para não fazer barulho.

O corpo em cima dele era pesado, fedido e acima de tudo agoniante. Os olhos mortos estavam a centímetros dos de Miguel, com seus lábios tocando os dele. Até que ele virou o rosto e ficou tocando o cabelo do morto.

Outro cadáver foi jogado em cima, fazendo o corpo de Miguel começar a doer pelo peso. Estava torcendo para que tudo terminasse rápido para voltar para casa, se é que algum dia voltaria.

Todos os quatro demônios se encontraram na frente da van, Carnival disse qualquer coisa e fecharam a porta. Miguel agradeceu pelos cadáveres em cima dele, pois o camuflou e não foi visto pelo vizinho.

O ronco da van começou e segundos depois já estavam na rua. Miguel sentiu câimbra na sua perna. Cerca de 15 minutos se passaram. 

A van estacionou e a porta traseira foi aberta novamente. Os dois demônios pegaram um corpo cada um. Enquanto se afastavam, Miguel reconheceu onde estavam: O Parque dos Lagos.

O parque era muito grande. Tinham sete lagos, alguns profundos, outros nem tanto. Ao redor tinha grama e árvores, até chegar na cidade novamente.

Estava muito escuro, pois a lua pouco iluminava, e os dois demônios começaram a descarregar os corpos no lago. Carnival também saiu para fumar.

Miguel aproveitou o momento em que os dois demônios estavam de costas para fugir. Tirou os corpos de cima e saiu tentando não fazer barulho.

Havia árvores perto. E se tivesse sorte, poderia se esconder até eles irem embora. O garoto correu sem olhar para trás, com o coração disparando veloz.

— Mas o quê?! Tinha a porra de um muleque vivo no carro! Peguem ele! — gritou Carnival, sendo o primeiro a começar a correr.

Miguel não olhou para trás, apenas correu. Faltava muito para chegar a cidade, ele sabia que seria alcançado. Sentia o demônio correndo atrás de si.

A unha pontuda fez um corte profundo no braço de Miguel quando foi alcançado por Carnival. O garoto pensou como fugir dele estando tão perto e só chegou a uma conclusão: o lago.

A água era profunda, só haviam pedras na beira e o único problema seria a altura. O lago naquela parte estava a 10 metros abaixo, com uma pequena mureta para proteção.

Ele fechou os olhos e saltou. Prendeu a respiração no ar, o vento batendo contra seu rosto. Esticou as pernas para a queda e seus pés tocaram a água, seguido por todo seu corpo, que se afundou no lago.

Sentiu seus ossos vibrarem e seus pulmões vacilarem, tudo o que pensava era em sobreviver. Sua curiosidade e audácia o tinha levado a essa situação. 

Miguel conseguiu voltar à superfície e começou seu nado até a beira do lago. Seu corpo já estava cansado, mas tinha que continuar.

Ao seu lado, Carnival caiu, salpicando a água, e afundou por tempo suficiente para Miguel se afastar. Ele viu de relance que os outros três demônios ficaram observando de cima, com lanternas.

Seus pés finalmente tocaram a terra e quando a água estava na altura da canela Carnival o alcançou.

— Você achou que ia fugir tão fácil? Porco de merda. — Agarrou o garoto pelo braço, apertando com a unha pontuda e fazendo sangrar. Com a outra mão o agarrou pelo pescoço e com ajuda da perna o derrubou na água.

— Morra, humano!

Miguel prendeu a respiração segundos antes de ter sua cabeça submergida. Sentiu a pressão que o demônio fazia para mantê-lo assim.

O garoto se debatia, atacava, tentava se soltar e não conseguia. Estava chegando no limite, perdendo o ar. As garras do demônio tiravam sangue de sua pele, fazendo com que se misturasse com a água.

Queria nunca ter saído de casa, nunca ter ouvido nada e nunca ter visto o que tinha naquele porão. Nesse momento ele pensava que seria mais um dos cadáveres empilhados. Seu corpo seria jogado no lago, como fizeram com os demais e ele seria esquecido.

Suas forças se esvaíram junto de sua esperança enquanto sentiu a água invadindo seu estômago e seus braços caindo. Quando parou de se debater e suas mãos tocaram o chão, Miguel sentiu uma pedra no fundo.

Suas forças voltaram mais uma vez e acertou com tudo a cabeça do demônio. Ele caiu para o lado e o garoto finalmente subiu e encheu o pulmão de ar. No processo, vomitou muita água.

Enquanto ainda tossia e cuspia, Miguel se levantou cambaleante e voltou a correr. Sua visão estava ofuscada, a câimbra voltou, mas ainda assim seguia correndo.

Finalmente conseguiu enxergar a rua, aliviado. Mas percebeu que Carnival ainda o perseguia. Não dava para ver direito pela pele vermelha, mas Miguel podia jurar que sua testa sangrava muito.

O garoto tentou se misturar com as pessoas, embora não fossem tantas, pois era o meio da noite. Quando virou uma rua, entrou em um beco e viu um grande contentor de lixo.

De lá dentro, o garoto ouviu Carnival se aproximar. Sua voz estava distante, misturada a de muitas pessoas e ao som dos carros, mas ainda assim era inconfundível.

— Eu perdi o garoto — disse ele, aparentemente no telefone. — Voltem para o carro… descarregar os corpos… casa. — Miguel não conseguiu ouvir tudo o que ele disse.

O cheiro do lixo era insuportável, sentia vontade de vomitar muitas vezes. Mas o medo de sair era maior do que o nojo, assim como no baú de ferro. Comparado a isso, a sensação do lixo era mil vezes melhor.

Miguel permaneceu escondido, estava faminto e com muito sono, já que não tinha dormido a noite toda. Agora seria mais ou menos 4:00 da manhã, pelo que Miguel deduziu.

Ainda estava lá dentro quando teve um pensamento aterrorizante. O que seu vizinho faria depois de perdê-lo? Com certeza não chamaria a polícia, então por que voltariam para casa?

A não ser que Miguel tivesse ouvido errado, ou que Carnival não voltasse para a casa dele, pois não faria sentido fazer isso enquanto não se desfizesse de Miguel. O garoto ligava os pontos, algo não batia.

Então as coisas fizeram sentido, o garoto agarrou seu celular, saiu do contentor de lixo e correu com todas as suas forças. O garoto deduziu que Carnival iria em busca de um refém, e que seria Evanlyn, sua mãe.

Ao sair do beco, deu de cara com um senhor de idade, se esbarrou nele e pediu o celular para chamar a polícia aos gritos. O velho o entregou e quando Miguel começou a correr novamente, o chamou de ladrão.

O garoto ignorou tudo o que o velho disse e continuou correndo e foi à ligação. Em uma fração de segundos decidiu que chamaria sua mãe antes da polícia.

A ligação foi recusada, provavelmente pelo número estranho. Mas isso significava que sua mãe estava com o telefone em mãos.

Arrancar a bateria de um celular e colocar em outro não foi tão fácil pelo desespero, ainda mais correndo. Após ligar o celular, discou o número da mãe rapidamente.

— Mãe! Foge de casa agora, não tenho tempo pra expli… — Antes de terminar a frase, ouviu um grito alto e uma voz de fundo.

— Miguel! Não venha para casa, Carnival enlouqueceu, entrou aqui e me atacou! Eu estou presa no banheiro, tentei te ligar, mas você não atendeu! — Falou aos gritos, claramente desesperada.

No fundo se ouvia os xingamentos de Carnival, chutes fortes na porta e o choro da mãe de Miguel. Ao mesmo tempo, o garoto continuava correndo, logo viraria a esquina e estaria na rua Augustus. 

— Eu vou matar você, porco de merda, e também a sua mãe se você não aparecer agora! Vou matar os dois e comer os seus malditos órgãos, está me ouvindo?!

— Mãe, você já chamou a polícia? — perguntou Miguel, nesse mesmo momento uma viatura com a sirene ligada passou. Ele a seguiu com os olhos e viu ela entrar na rua dele.

— Chamei! — Evanlyn continuou gritando, dizendo que Carnival estava quase quebrando a porta.

Quando Miguel virou a esquina, com as pernas doloridas como nunca e a respiração ofegante, conseguiu ver o policial que desceu do carro segurando um machado de bombeiro em uma das mãos.

Ele reconheceu o indivíduo como o mesmo policial que havia visitado seu vizinho quando fizeram a reclamação, um demônio gordo.

Finalmente chegou em casa, suando, e chutou a porta. Foi direto para a cozinha, desesperado, e agarrou a maior faca que achou, ainda ouvindo os gritos de sua mãe, mas desta vez não pela ligação.

Ele não sabia em que momento havia soltado o celular. E nem se importava. Seguiu para o banheiro e por um segundo ficou completamente paralisado.

Carnival havia destruído a porta completamente com o machado de bombeiro, e sua mãe havia se atirado para a banheira.

O garoto atacou a parte de trás do ombro de Carnival, fazendo ele urrar de dor e impedindo seu ataque à sua mãe. Miguel não sabia de onde tinha tirado tanta força, mas a faca cravou profundamente na carne, espirrando sangue para todo lado.

Evanlyn empurrou o demônio contra a parede, agarrou a mão de Miguel e correu. Os dois fugiram passando pelo policial demônio que correu até o banheiro, ignorando eles.

— Me dê a maldita arma, eu vou matar os dois porcos de merda! — gritou Carnival enquanto os outros dois corriam. Miguel olhou para trás e viu ele pegando a pistola do policial.

Ao sair da casa, Miguel e Evanlyn viram três carros da polícia além da viatura do demônio. Todos estacionados em frente de sua casa, com pelo menos oito ou dez policiais armados, todos na rua indo em direção do quintal da frente.

Os dois correram na direção deles para a rua e quando estavam quase chegando nos policiais, Miguel olhou para trás novamente e viu Carnival na porta.

— Largue a arma! — gritou o oficial, apontando a pistola.

— Morram! — berrou Carnival.

Três tiros são ouvidos por todo mundo, misturados aos gritos e advertências de todos ao redor. Maldições e xingamentos vinham da casa.

Dois disparos foram de uma arma e um de outra. Os primeiros acertaram Carnival, ambos no peito. O outro foi em direção de Evanlyn, embora no último segundo um dos oficiais se jogou na sua frente e recebeu a bala.

O homem caiu no chão ao mesmo tempo do demônio. Carnival morreu instantaneamente e largou a arma.

— Oh meu Deus! O que foi isso?! — exclamou Evanlyn, abraçando seu filho. Miguel retribuiu, apertando fortemente. Os dois choravam, e o garoto não conseguia tirar a imagem dos cadáveres de sua mente.

Miguel olhou o policial caído na sua frente, o homem que salvou a vida de sua mãe, se mexendo e percebeu que estava usando colete a prova de balas.

Os dois se viraram e observaram seu vizinho morto no chão, além de mais policiais entrando armados na casa. Depois olharam para o oficial que os salvou.

Miguel apenas acenou com a cabeça, aquele agradecimento dizia mais do que muitas palavras. O homem retribuiu e seus companheiros o ajudaram, perguntando se estava bem.

— A casa dele… — começou Miguel, soluçando. — Tem… tem cadáveres no porão… Na casa dele…

— Entendido — disse o policial que efetuou os disparos e começou a falar no rádio.

De dentro da casa o outro demônio, cúmplice de Carnival, foi algemado e levado para o carro, que saiu rapidamente. O resto dos policiais entraram na casa do vizinho.

Apenas um oficial ficou, acompanhando os dois e tentando acalmá-los. Pouco tempo depois começou as perguntas, embora Evanlyn tivesse brigado ele momentos antes por ser inconveniente.

Miguel tentou descrever tudo o que aconteceu e enquanto mais falava, mais se lembrava, e enquanto mais se lembrava, mais a ânsia de vômito e o choro cresciam.

As imagens dos órgãos no baú, a visão dos corpos pendurados, o cheiro da podridão e a sensação de ter ficado tanto tempo junto a cadáveres jamais o abandonariam.

Aquele acontecimento ficaria gravado em sua mente para o resto de sua vida, assim como o corte que logo se cicatrizaria e deixaria uma marca em seu corpo.

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