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— Imprudente como sempre — Marcius a repreendeu mesmo que fosse tarde demais. 

— Esse salto foi muito longe para alguém com pouca prana filtrada — ressaltei.

Vie nunca poupou esforços quando se tratava de ajudar o próximo, mas se continuasse nessa intensidade seu corpo não aguentaria suportar filtrar tanta demanda de prana.

— Ela gastou toda sua reserva testando seu Marco? 

Na tentativa de responder, descobri que sua pergunta era retórica — cara chato.

— Não precisa se explicar por ela. Eu sei que foi isso — Marcius massageou suas têmporas.

Depois de poupar saliva, observei minha companheira se distanciando cada vez mais. Enquanto ela seguia seu caminho, seus olhos encontraram o último poste dos três que pontuavam a encosta. Sem hesitar, ela agarrou o suporte de ferro com determinação, como se fosse um galho que ela poderia facilmente se pendurar. No entanto, exibida como sempre, aproveitou a oportunidade para dar uma pirueta antes de se soltar.

Péssima ideia.

Seus longos cabelos se enroscaram. Eu senti uma breve onda de dor percorrer minha cabeça. E se não bastasse, Vie afundou seu rosto num profundo beijo contra a grama.

Que desperdício…

— Ela desmaiou? — O ex-marcado se atentou com sua aluna que ainda não se levantou.

— Nah. Acho que ta com vergonha e quer esconder isso da gente — me debrucei contra a cerca.

Ele suspirou em indignação. Às vezes fico propenso a comparar ele com uma chaleira, sai tanta pressão que uma hora vai estourar. 

Ampliei minha visão para as plantações de cânhamo que cercavam o vilarejo nessa época do ano, eram altos e finos, mas sua quantidade exorbitante davam um aspecto de uma densa floresta. A leste a plantação já estava sendo recolhida, então não houve muito estrago, entretanto todo o restante do nosso minifúndio estava arrasado pelo impacto do estrondo.

— Theo, vou ser simples e direto. Eu não possuo mais o Marco do Égide.

Eu sei, ele sabia, na realidade nós sabíamos sobre o aparente roubo, mas não era hora nem lugar para tocar no assunto.

“Pegaria mal fingir estar surpreso? Ah…”, um brando sopro escapou de meus pensamentos.

Sinto que essa conversa é uma perda de tempo.

— A habilidade de meu Marco, a Barreira Cruzada. Não será erguida esta noite, talvez nunca mais — aos poucos sua postura desmoronou com a melancolia de seu tom.

— Desencana.

Ele segurou sua fala por um momento, provavelmente havia percebido que eu não estava muito interessado em algo tão importante quanto sua perda.

Nesse meio tempo, a bolsa me oferecia alguns dos insetos que ela estava capturando com a língua. Por mais que fosse nojento, era o início de nossa camaradagem. Entretanto, rejeitei sua oferta balançando minha mão, comer coisas bizarras era trabalho dela, não meu.

— Tem algo de errado com você. Theo — sua mão pesada pressionou meu ombro.

“Droga… ele percebeu.”

— Impressão sua…

Meu ombro foi puxado, antes de qualquer coisa.

— Olhe para mim quando estiver falando com você! Você perdeu a noção do perigo?! — Ele me fulminou com o olhar — Estamos diante duma incursão, sua companheira está desmaiada, sua mãe está batalhando de frente com um Tecelão, e você vai ficar com essa cara de defunto?! 

Me encarar deixou ele mais irritado, meu olhar vazio era apenas reflexo do pouco apego que me restava por todos.

— Desgraçado! Sabe quantos infelizes estão desamparados lá embaixo?! Trinta e seis Theo! Trinta-e-seis infelizes que vão morrer! — Ele pressionava com força seu dedo contra meu peito, isso já estava me desgastando. — Como você acha que eu me sinto vendo todas as pessoas que jurei proteger prestes a morrer?!

Sua histeria me pegou desprevenido, nem mesmo Vie conseguiu essa façanha.

— Impotente? — respondi sem temor.

— Sim, Theo. Me sinto impotente! Eu não passo de um aleijado agora! Você e Esvie são a nossa única linha de frente contra qualquer ameaça sobre a vila. Entende porque estou te cobrando isso?!

Estava errado. Essa conversa valeu a pena.

“Você não faz ideia de como eu queria que a Vie estivesse aqui para escutar isso.”

Nesse momento eu percebi a sinfonia caótica que estabelecemos.

Suas emoções eram como grãos de cânhamo agitados em um simples ganzá.

Quanto a mim, estou mais próximo de um tambor. Revérbero bastante mesmo que por dentro esteja vazio. 

— Eu não sinto nada.

Marcius recuou sua mão.  

— Do que você está falando?

— Raiva, tristeza, compaixão, são só palavras agora. Eu não sinto nada, além de picos de emoções que nunca são o suficiente.

— Santíssima Trindade. Que bosta você está falando? 

“Ele soltou uma palavra desse calão?”

— O poder que agora carrego em meu ombro, tirou quase toda a minha afeição por vocês.

— Já tivemos essa conversa antes. Não importa o que você tenha visto, ou o que tenha adquirido durante o badalar. Quando se trata de salvar vidas, não vou tolerar que você aja com indiferença.

— Mas você mesmo disse, eles estão prestes a morrer.

Uma dor incompreensível ressoou por meu rosto, de início era algo frio, mas logo se aqueceu como uma centelha em forro de palha. Minhas bochechas ardiam com o tapa de meu professor.

— De onde eu venho, a palma da mão ilumina a mente dos tolos de boa índole, mas as costas da mão são a sentença para os fracos desgarrados de fé.

Bata quantas vezes quiser, a única pessoa que eu me importo nesse momento é com a garota que não me permite ser apenas uma casca vazia. 

Eu não consigo mais compreender a importância da vida de vocês em comparação a de Vie, se precisar largar tudo para ficar ao lado dela, largarei.

— Você tem razão. Eu estava cego com o poder que adquiri que esqueci do juramento que fizemos.

Menti. Eu não queria prolongar essa discussão; bastava aceitar a punição e seguir em frente.

— Resolveu voltar à realidade? Ótimo — disse Marcius, cruzando os braços.

Mas… por que ainda sinto meu punho tremer tanto?

Por que estou me contendo tanto para não socar meu professor?

DEVORE O FIO!

24 de Dezembro, ano 774 a.R.

Redor Vilarejo Archi, Ástrea.

Todos os problemas da vida, menos afogamento podem ser resolvidos respirando fundo.

— Qual é o plano? — Perguntei sem perder a compostura.

— Antes de qualquer instrução preciso que entenda uma coisa. De todas as criaturas, apenas uma seria tão ardilosa para usar a noite a seu favor.

— Alastradores — soltei com ranço aquela palavra que tanto amargurava minha língua. 

— De fato. Me diga Theo, por que aquela matilha veio justamente atrás de vocês dois, ao invés de descer até as nossas ovelhas.

“‘Ovelhas?’”, pensei. Para alguém que acabou de perder sua utilidade, Marcius mantinha uma arrogância surpreendente, ou talvez apenas uma responsabilidade exacerbada. No entanto, sua atitude também revelava um ingrediente adicional: a babaquice.

— Sei lá, porque somos mais apetitosos? — Olhei de relance para Marcius.

Ele balançou a cabeça em negação. 

— Os lampiões de prana atraem seres que se alimentam da energia que a compõem, como um chamariz inconveniente. Os Tsé por exemplo. Estão rodeando há algum tempo essa luminária.

Tsé, é? Ah sim, a bolsa estava me oferecendo alguns. 

A barreira cruzada contabilizava eles como ameaça, por isso sempre permaneciam do lado de fora. Mesmo eu achando eles pouca coisa em comparação com as demais criaturas de prana.

Então, confirmei com meus olhos as diversas moscas de coloração alaranjada que rodeavam a luz. Seus bolsões traseiros estavam repletos de um líquido bege; possivelmente haviam extraído o fluido corporal dos outros insetos que jaziam ali no chão.

A bolsa aproveitou o lance, ela estava buscando com a língua cada um dos Tsé e os engolindo, poderia ser nojento, mas era desserviço deixar essas criaturas vivas. 

— O que você tá querendo dizer é que os alastradores estão usando a luz dos postes como guia? —  Indaguei, enquanto massageava meus ombros.

Um formigamento intenso tomou conta de meu ombro esquerdo, tão intenso que a bolsa quase caiu devido à falta de sensibilidade na região.

Resolvi trocar o lado da alça, mesmo eu sendo canhoto, acho eu, que o combate com a bolsa demandaria o manuseio de ambos os braços. Nah, eu improviso.

— Bela conclusão, mas como sempre nada precisa. Alastradores não enxergam, eles nos rastreiam pelo fluxo de prana do ambiente através de seu faro, são as únicas criaturas existentes que conseguem inalar o odor da prana — esse ar de autoridade nojento me incomodava às vezes. 

“Ele ta fazendo de novo”, franzi o cenho. Essa informação não está listada em nenhuma enciclopédia de criaturas.

Marcius estendeu seu braço na direção do poste, mas seu ombro o travou. O estalo ressoou pelo local, a leve tremedeira em suas mãos, o fez recuar com receio de piorar sua situação. 

Eu não sei porque continua insistindo em sua contusão. 

— Eu não posso ensinar isso a você… — seu tom baixo quase tornou sua fala um murmúrio. Ele mexia sua mão, checando a estabilidade de seu membro — Apenas sobrecarregue os postes com prana e então eles implodiram. 

— Coma — ordenei na esperança de testar minha autoridade sobre a criatura. Para facilitar, ainda apontei para a direção da fonte de luz.

De imediato, a bolsa se impulsionou com sua própria força. A princípio me assustei, mas a segurei com firmeza, sua vontade tremenda estraçalhou o poste com uma mastigada, entortando o que sobrou da coluna de sustentação.

— Ou você pode fazer isso. De todo o modo já perdemos muito tempo por aqui. Eu vou atrás de Halo no celeiro e aproveitar para desligar o filtro de prana que reabastece o vilarejo, isso deve dar um apagão generalizado nas casas. Após destruírem os postes, sugiro que encontre uma fonte de fogo no bar do velho Cícero.

Realizei uma saudação de dois dedos em resposta. 

Era uma plano de duas etapas. Tão simples que não seria um problema repassar para Vie. 

E por ser simples demais… Havia mais fé envolvida dentro do que fazer, do que os detalhes de como fazer.

É aquilo, um bom plano se faz com evidência.

“Falando em coisas evidentes… Será que ele também não sabe nada sobre essa criatura?” perguntei a mim mesmo, reajustando a bolsa em meu ombro.

— Marcius, você não achou estranho minha bolsa se transformar nesse ser do nada?

— Uma boa pergunta — ele respondeu, franzindo o cenho com estranheza — Lembro-me de você ser muito apegado a ela desde a minha chegada em Archi, mas nunca tive vontade de saber sua origem. 

Expirei o ar bem devagar.

“Mas que merda…” Ergui minha cabeça aos céus. A imagem da minha mãe ainda se destacava sobre a pintura improvisada, feita às custas daquelas mãos colossais.

Quanto mais me submetia a esses pensamentos, mais a deriva eu estava. Um náufrago em meio a todo esse mar de falsas sensações e escolhas.

Quer saber…

Dane-se.

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Olá, eu sou Pixau!

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