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Capítulo 11: Noite Estrelada (Parte 5)

Será que eu era apenas um erro, uma falha irreparável dentro do destino? E mesmo que eu realmente fosse, como isso seria possível?

Fechei os olhos por um momento. Desta vez… era algo pessoal.

— Nunca me submeti a esses fios vermelhos. Durante toda a minha vida, recusei-me a seguir seus chamados. E quando finalmente reuni coragem para desafiar o destino, sou rotulado como um erro.

Com a ponta dos dedos, pressionei a membrana que separava a realidade desfocada. Concentrei ali todo o ódio latente, enquanto esticava aquela superfície.

— Vou dar um jeito, Vie — mesmo que não pudesse escutar, sussurrei minha promessa. Seus lábios se moveram em resposta, mas a barreira impedia qualquer som de atravessá-la.

Soltei a membrana elástica, sentindo suas ondas reverberarem por toda a sua extensão.

— Seu pedaço de lata. Eu vou esfregar sua lataria por todo esse véu e tirar ela dali.

Aquele enlatado de chorume, resolveu dar satisfação.

— Hunf. Finalmente decidiu mostrar suas garras, gatinho medroso?


Aproveitei a oportunidade para averiguar de relance o recinto. Os móveis estavam intactos, mas duvidava que fizessem algum arranhão nele. As garrafas quebradas poderiam ser úteis, mas era melhor deixar de lado, elas não iriam perfurá-lo.

Porém, uma ideia pulsava em minha mente, ecoando junto do gotejar do líquido que escapava dos recipientes estilhaçados.

“Bingo. A cachaça podre do seu Cícero mais as chamas desse fogão ambulante, seria uma ótima válvula de escape. Mas onde ele guardaria essas avarias?”, mesmo com o ‘plano B’ em mente, teria que efetuar ele em combate — que saco.

— Isso é o que minha amiga diria se estivesse no meu lugar. Por isso, faço dela minhas próprias palavras.

Estávamos a poucos centímetros de uma conexão. Meu parceiro estava clamando por uma mordiscada, enquanto meu oponente ajustava sua armadura.

— Então, faça sua aposta, garoto.

— Ela já está lançada.

As chamas dos fios se intensificaram, enchendo o ar com o cheiro acre de queimado, enquanto o clangor reverberado do embate ecoava por todo o ambiente. A bolsa amaldiçoou com sua mordida o braço revestido de meu oponente. Os dentes afiados perfuraram aquele material que rachou como vidro, enquanto o calor das chamas envolvia a cena em uma aura infernal. O cavaleiro se manteve firme, aproveitando o momento para desferir um soco contra minha face.

Fui lançado contra algumas mesas vazias, o impacto castigou minhas costas, deixando a sensação que elas estivessem prestes a se partir. Se continuasse arregaçando minhas costas assim, provavelmente iria ganhar uma carta opulenta1 de escoliose. 

A bolsa, usou meu colo para amortecer o impacto, ele detinha um pedaço considerável da braçadeira negra enrolada em sua língua, péssima decisão, a parte em questão estava pelando de quente, o cheiro de carne tostada fez ele engolir objeto de uma vez. 

— Queimou a língua? — murmurei, me recompondo da dor. Acho que esse pateta não me ajudaria tão cedo.

— Você tem uma arma e tanto. Admito, você foi o único ser perecível capaz de danificar minha armadura.

“Só pode ser brincadeira…”, um brilho incandescente refletiu em meus olhos, essa luz independente cobriu seu braço desprotegido.

Chamas carmesins nasceram da exposição em sua armadura, a intensidade era tamanha que transformavam o próprio ar em brasas. A realidade estava sendo incendiada, melhor dizendo, estava sendo descamada. 

Uma gota percorreu meu corpo demarcando um rastro quente, misturando-se com a poeira e a fuligem que se acumulavam na pele. Meu corpo estava começando a fervilhar dentro desse forno que um dia chamei de bar.

— Vou contar uma coisa, garoto. Dentre todos os Tecelões, eu sou o responsável por limpar toda merda feita por um zona de probabilidade — sua voz era distorcida, mas sua fala era nítida.

Modificador de Probabilidade: 11%

— Que sorte a minha — a euforia conduziu meus lábios — Vou ter o prazer de despachar um Tece-Desgraças.

Vie estava tentando encontrar uma saída na base do soco. Seus olhos imploravam por ajuda, lançando em mim sentimentos que eu jurara não reviver. Mas, apesar de seu apelo silenciado, minha atenção foi desviada para o desgraçado diante de nós.

Uma gota de ódio, impulsionada pela vingança, respingou em meu âmago, contaminando todos os sentimentos revividos nesta noite: o doce conforto, a amarga repulsa… Eu conseguia sentir todos como se estivessem na ponta da minha língua. Mas sabia que, a qualquer momento, esse recipiente iria transbordar.

 — Essa afronta… — um assopro anasalado veio em repulsa — Você não pode ser filho daquela mulher.

Eu não tinha chances.

Os fios flamejantes se enrolaram em meu antebraço. Procurei a todo custo me desvencilhar, mas estava enredado no próprio inferno.

— AHHHH! — Gritei, minha voz rasgou minha garganta.

Tentei arrancar aquela tortura com minha mão livre, mas ela foi detida pela chapa quente das mãos daquele ser infernoso2, restando-me apenas ouvir o crepitar da minha epiderme.

— Como diz o velho ditado, perecíveis burros não podem ter sorte.

Trinquei a mucosa das minhas bochechas, que estavam secas. Contudo, não pude conter o escarro carmim que arranquei da minha boca; meus pulmões pediam arrego. Meus olhos, agora áridos e opressivos, estavam sendo salgados pelas lágrimas.

— Vou botar juízo nessa sua cabeça — sua voz ressoou como um eco distante, misturando-se ao crepitar das chamas que devoravam tudo ao nosso redor.

Um grito estridente escapou de meus lábios quando o osso se quebrou. 

— Vamos ver quantas conexões você aguenta.

A verdade… é que eu nunca tive chance.

O punho flamejante incinerou toda a superfície da realidade ao desferir um golpe em mim. Aquele impacto gerou um rompimento no espaço, agravando seu efeito e me repelindo a uma velocidade descomunal. Atravessei todo o mar de escombros, dirigindo-me ao que restou das plantações, e, no instante em que adentrei, tudo foi incendiado.

A cada golpe, eu sentia a ardência do fogo consumindo minha pele, a dor lancinante cortando através de mim. Minha visão oscilava entre o fogo dançante ao meu redor e o vulto sombrio do cavaleiro, sua figura distorcida pelas chamas que o envolviam.

Tentei me esquivar, mas era inútil. Cada vez que eu pensava ter encontrado uma brecha para escapar, o cavaleiro ressurgia, queimando o véu da realidade, implacável em sua perseguição.

Sem ao menos ter a chance de perceber, havia voltado para o bar pelos golpes que recebi. Os cacos de vidro, as farpas, eu apenas via adentrar no que restou de minha pele, sem sentir mais nada; talvez eu estivesse tão ferrado que isso não fazia mais diferença.

— Vi… — não tinha mais forças para falar, o nome de minha amiga mais parecia um gemido sufocado. Tentei me arrastar em sua direção, mesmo parecendo um verme, eu não podia desistir.

Esvie estava desesperada quando percebeu meu estado; seus socos agora eram murros desajeitados, ela gritava e esperneava, mas de nada adiantava.

Então, garras metálicas romperam uma fissura surgida do nada, tão simples como abrir as cortinas de uma janela. 

“Aquele filho da puta retornou…”3

— Cinco? Você suportou cinco das minhas conexões e você ainda respira? — Ele desistiu de esperar uma resposta ao ver meu estado. — Bom saber que pelo menos aprendeu a se posturar.

Ele agarrou minha cabeça como se eu fosse um boneco de palha. A força que restava, estava concentrada em me manter vivo. Eu não conseguia nem me debater, apenas aceitei ser carregado até onde Vie se encontrava.

— Esfrie a cabeça, a protagonista dessa trama está prestes a chegar.

Com um estalar de dedos, o badalar foi ouvido. Sua ressonância contra a barreira interdimensional a fez se abrir. Eu fui lançado contra minha mais nova companheira de ‘cela’, fazendo ambos cair para trás. 

— Theo! Você consegue me ouvir?! Theo! — Sua voz, um clamor desesperado, era a única âncora que me mantinha acordado. Lágrimas doces banhavam meu rosto, como se pudesse curar minhas feridas com sua angústia, mas era apenas um conforto ilusório.

O sangue que respingava em minha tosse era a confirmação de que eu ainda estava vivo. Ela me envolveu em um abraço apertado, sem se importar com os meus ferimentos; a dor era insignificante diante do calor humano que emanava dela.

— Você está bem? Claro que não está! — Ela se contradizia, arrancando os cabelos em um gesto de desespero, como se pudesse arrancar a dor de minha carne. Ela estava perdida, mas pelo menos estava ali, ao meu lado…

“Estou tão cansado… eu não sinto meu braço esquerdo…”, meus pensamentos se dissipavam lentamente, minha consciência desvanecendo à medida que minhas pálpebras se tornavam mais pesadas… Quem estava fechando as cortinas?

Um borrão obstruiu parcialmente sua visão, eu via seus lábios mexendo e sua voz se tornava cada vez mais distante.

— Não é hora de dormir, Theo… 

Em contrapartida, quanto mais a escuridão consumia tudo, mais perto uma voz agressiva me buscava.

—… Eu te concedo uma fração do meu poder. E isso é tudo que você pode me proporcionar, pequena centelha?

Tentei lutar contra a sensação de desorientação que me dominava, lutando para manter minha mente clara em meio ao caos. No entanto, a voz parecia penetrar cada vez mais fundo em minha consciência, envolvendo-me em seu poder inexorável.

— Você é fraco, simplória centelha. Tão fraco… — Sua voz me dava calafrios. Um arrepio percorreu meu corpo, enquanto me cobria com a pele de cordeiro. — Mas mesmo assim, você será útil para mim.

— Vai me dizer que vou passar toda minha vida pós-morte com alguém que não posso ver?

Um feixe de luz rompeu a penumbra, ofuscando meus olhos, que arderam com a intensidade do brilho. Mesmo assim, não pude deixar de encarar o horizonte à frente — que conveniente.

No centro, uma escuridão profunda e impenetrável parecia puxar tudo em sua órbita, como as pétalas de uma flor que se curvava em direção ao seu núcleo. Ao redor, um turbilhão de gás e poeira dançava em padrões sinuosos, como os delicados filamentos de uma flor em plena floração. As pétalas, em vez de irradiarem cores vivas e vibrantes, absorviam a luz que eu irradiava, como se a própria noite florescesse ali.

Enquanto me aproximava, meus pés eram umedecidos por pequenas ondas daquele mar vazio. A suavidade sonora do recinto era como um murmúrio distante, como se o próprio espaço estivesse se desdobrando para aquilo, embora eu não soubesse ao certo o que era.

“Meu marco em minhas costas é idêntico a isso…”

— O que aconteceu? Você estava se saindo tão bem.

— Eu falhei. Eu não tinha… Não. Eu ainda não tenho poder o suficiente — enfatizei a minha fraqueza.

Um deboche ecoou por todo o recinto em sonoridade de gargalhadas que se originaram do vórtice.

— Pondere e reflita. Você jamais irá progredir com esses pensamentos perecíveis. A inexistência não cria, ela devora, e essa é a sua função: nivelar o mundo para a estaca zero.

— Do que adianta saber disso? Eu estou acabado.

— O que está insinuando, mera centelha?

— Me cure, me faça voltar e em troca lhe darei as minhas emoções.

Uma troca justa, meus sentimentos como seu alimento, sua cura em troca. A essa altura, faria de tudo para tirar Vie daquela situação.

— Suas emoções? Eu não faço nada de graça, sua vinda aqui foi apenas para eu me alimentar às suas custas. Afinal, eu ainda não posso deixar você transbordar.

Ele estava certo. Desde o momento em que cheguei, a aura luminescente que se esvaía de forma distorcida de meu corpo carregava consigo o ódio latente em meu interior.

— Esse seus olhos oblíquos e enevoados. São o reflexo de alguém disposto a perder tudo para alcançar seus objetivos, me diga pequena centelha. Pelo o que você vive?

— Para salvar Esvie, minha mãe e… — minha voz vacilou quando ele me interrompeu.

— Não estou interessado em discursos vazios. Posso ignorar aqueles que se deixam levar por impulsos hormonais frágeis ou por emoções passageiras. Mas você não, você tem que ser diferente. Então, por que insiste nessa mentira?

— Porque mesmo você tendo tomado os sentimentos de mim, eu me senti vivo ao lado de Esvie.

— Então é isso? Estou diante de um pássaro que persiste em permanecer numa gaiola aberta, simplesmente porque alguém se encarrega de colocar alpiste todos os dias?

Por tanto tempo ignorei a sensação de estar enclausurado nesta aldeia, mas agora compreendo que o único responsável por alimentar essa ideia era eu mesmo. 

Eu permanecia extasiado, entretanto um clamor sufocado conseguiu se sobrepor a toda essa introspecção.

— Theo! 

Era Vie, tinha que ser ela.

Meus pés, antes firmes, perderam a aderência sobre o mar estéril que me envolvia. As profundezas me arrastavam, e eu estava à mercê. As águas escuras e geladas engoliam meu corpo, mergulhando-me em um mundo de sombras. Mas então, uma luz brilhou na escuridão, rompendo a superfície do mar com uma intensidade avassaladora.

— A gaiola permanece aberta, mas o pássaro irá permanecer lá?

Ele me desafiou uma última vez antes que eu acordasse.

— Theo! Por favor… Por favor… — Ela clamava por mim, sua voz tremia como se estivesse sendo estrangulada pelos seus soluços.

Seu clamor era um lamento dilacerante, como se suas lágrimas fossem as cordas que me puxavam de volta à superfície, resgatando-me da escuridão do mar.

Meu braço latejava de dor, minha mão tremia enquanto eu me levantava do chão. As queimaduras marcavam minha pele, mas eu ignorava a dor, focado apenas em romper aquela barreira que separava as realidades.

Vie agarrou meu braço com força, seus dedos tremiam em hesitação. Seus olhos encontraram os meus, transmitindo uma súplica silenciosa. Ela queria me deter, mas eu já tinha tomado uma decisão.

Os fios vermelhos não podiam alcançar aquele lugar, mas Vie os teceu com desespero, como se tentasse costurar nossos destinos. Por um momento, hesitei, sentindo o peso de sua angústia em meu peito. No entanto, sabia que não podia mais adiar minha partida. Com um suspiro resignado, rompi os fios de nosso elo.

Eu sempre me vi como um ser livre, capaz de tomar minhas próprias decisões.

O pássaro na gaiola pode ver o mundo lá fora, mas teme voar para além de sua pequena prisão. Assim como eu, que tinha todas as oportunidades diante de mim, mas hesitava em agarrá-las.

— Eu quero ser livre.

  1. Similar a atestados médicos, são cartas que relatam enfermidades. ↩︎
  2. Gíria própria do Theo. Similar a demônio, ou alguém que atormenta ↩︎
  3. Obs: A língua mais conhecida deste mundo é o Portugês, palavrões de baixo calão como essa existem. ↩︎
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Olá, eu sou o Pixau!

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