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“Engenharia Mágica: Um estudo das aplicações de mana em tecnologias emergentes”, o título parecia zombar de sua compreensão limitada do mundo atual.

Ana estava jogada na cama, mergulhando vorazmente nas meras 50 páginas à sua frente. Era um livro curto, mas surpreendentemente informativo, sendo possível entender de forma resumida e concisa a extensão das pesquisas humanas sobre a engenharia mágica até o momento. Não se tratavam apenas de próteses, o mundo estava sendo lentamente remodelado: estruturas que desafiam as leis da física, tecidos vivos que se regeneram e máquinas de todas as áreas cujo funcionamento se baseia em uma mistura rudimentar de componentes elétricos com manipulação da mana.

Com o livro firmemente preso em suas mãos, Ana olhou pela janela, agora com as ruas vistas sob uma nova luz. Cada lâmpada, cada pedra, pessoa e veículo, tudo parecia conter segredos à espera de serem desvendados.

“Eu preciso aprender, mas para isso, preciso de dinheiro”

A troca recente com Maria veio à sua mente. Reconhecendo que o dinheiro ainda movia o mundo, mesmo nessa nova realidade, ela olhou em direção ao centro da cidade, pensando se deveria ir de encontro com as guildas. A cada minuto que passava, Ana sentia que estava ficando para trás. 

“Era melhor eu ter conversado com a Jasmim primeiro”, seus pensamentos se perderam quando notou que que não havia feito esforço para entender a situação de sua família. Claro, ela havia conversado durante o reencontro, mas o que fizeram para sobreviver? Qual a guilda de sua irmã? Elas sofreram? Lutaram? Se divertiram? Ana não sabia. Ela não sentiu interesse real por tudo isso, logo não perguntou, apenas prestou uma leve atenção no que estava sendo dito sem se aprofundar mais. Era uma indiferença provinda da solidão prolongada, não algo que pudesse controlar.

Coincidentemente, ao mesmo tempo em que pensava na irmã, ela viu a garota sentada em um café do outro lado da rua. Jasmim parecia pensativa, mexendo o café em um ritmo lento, quando um grupo de jovens se aproximou. Por um breve momento, ela ponderou atravessar a rua e se juntar a eles, mas ao ver os sorrisos e a conversa animada que se iniciou, Ana sentiu que esse não era mais um mundo feito para ela.

— Não tenho motivos para esperar, preciso entender o mundo por mim mesma — murmurando sozinha, ela colocou a faca em sua cintura e lançou um olhar resignado para a armadura semi destruída enquanto saia do quarto, prometendo restaurá-la assim que possível. 

— Ana, bom dia! 

— Oi mãe, bom dia.

Diversas vasilhas, de todos os tamanhos e cores, estavam soltas pelo balcão da cozinha, fazendo um forte cheiro de ervas se espalhar pelo ar. Margareth usava um avental sujo e uma sutil luz azul estava presente em seus olhos, muito semelhante à habilidade utilizada por Maria.

— Mãe… o quê está fazendo? 

— Trabalhando, garota boba — respondeu ela com um meio sorriso — Sou uma herborista.

— Isso é incrível, não sabia que você tinha essas habilidades.

— Bem, eu também não sabia até que tudo isso começou — Margareth deu de ombros, a luz azul em seus olhos piscando enquanto ela concentrava sua mana em uma poção particularmente densa do líquido que manipulava. — Mas não passei os últimos anos parada. Tive que aprender e me adaptar.

Apesar da conversa aparentemente normal, Ana sentiu certa estranheza no ar. Os olhos de sua mãe vagavam das ervas em suas mãos para o rosto de Ana, a encarando profundamente com uma expressão que não condizia com o sorriso em seu rosto. Seus olhos brilhantes estavam tornando a cena cada vez mais perturbadora conforme estas ações se repetiam.

— E como isso funciona, você faz algum tipo de avaliação nas ervas? — perguntou Ana, indicando os olhos destacados com um aceno, movida tanto pela curiosidade quanto por uma tentativa de fugir do olhar incômodo.

— Avaliação? Ah, você notou os olhos? Na verdade, sou uma leitora.

— Leitora?

— Oh, sim, me esqueci que você não esteve nas cidades… — a menção das cidades parecia uma alfinetada sutil, a qual Ana ignorou — Leitor é um termo para aqueles que podem “ler” os fluxos do universo. É uma situação um pouco rara, mas ao invés de termos nossos corpos fortalecidos de forma sobre humana ou veias que permitem a manipulação da magia, nossos sentidos foram aprimorados ao limite. 

Margareth pausou, colocando de lado a poção com a qual trabalhava, e se virou completamente para Ana. Uma mão esguia foi deslocada para a arma oculta abaixo do balcão.

— Quando despertei, era como se eu estivesse conectada a tudo que existe. Eu passei a ouvir a pulsação silenciosa do mundo, sinto cada elemento da natureza como se fosse parte de mim mesma… a mana circulando por tudo ao meu redor, sejam objetos ou pessoas, se mostra voluntariamente quando a chamo.

“Ela sabe sobre mim”, percebeu Ana, intrigada com a descrição de sua mãe e surpresa com suas palavras claramente direcionadas a ela. Era um aspecto da magia que nunca havia considerado. A ideia de que cada elemento da natureza tinha uma sensação própria não era estranha, ela se esforçou para se conectar com as existências ao seu redor em seus anos de aprendizado, podendo sentir um tipo de “vibração” única para cada um deles, mas a ideia de que a magia poderia ser usada para entendê-los mais a fundo abriu novos horizontes em sua mente.

— É fascinante — se aproximando do balcão, a garota tocou a planta mais próxima, uma estranha espécie azulada que nunca havia visto. Pequenas raízes calorosamente enrolaram-se em seu dedo, a fazendo sorrir pela surpresa. — Eu pensei que às entendia bem, é uma pena que não possa senti-las como você. Parece que você encontrou sua vocação, mãe.

— Talvez eu tenha encontrado, — respondeu Margareth com um novo sorriso genuíno em seu rosto. A cena à sua frente fez com que a intensidade de seu olhar suavizasse um pouco. 

“Ela foi acolhida como família”, suas suspeitas não foram embora, sua filha era uma existência inexplicável que não deveria existir nesse mundo. Entre as milhares de partículas vivas fluindo de forma caótica, Ana era uma massa de escuridão, um ser macabro que trazia um medo instintivo.

No entanto, vendo a pequena planta se aconchegando em seu corpo como se fosse de sua própria espécie, Margareth sentiu, no nível do instinto, que Ana não era “algo” ruim.

— Você é tão fofa! — ainda com o sorriso no rosto, Ana puxou a raíz repentinamente, estourando-a sem muita resistência — Fico feliz que você não existia a alguns anos atrás, se não eu sentiria ainda mais inveja. Tanta vida! 

Arregalando os olhos de surpresa, a mente de Margareth ficou em branco com a reação bizarra que presenciou. Arrepios passaram pelo seu corpo e suas mãos voltaram a apertar firmemente a arma, desta vez, sem vacilar.


Com uma expressão sombria, Ana caminhou em direção ao centro da cidade. Seus olhos estavam fixos no caminho à frente, mas sua mente estava distante. 

“Fico feliz que ela não tenha tentado nada estúpido”, pensou a garota, acariciando o pomo de sua faca.

Ela não havia visto, mas pode sentir claramente a intenção de sua mãe em vários momentos da conversa. Quando sua posição fixou-se próxima ao balcão, Ana instintivamente se preparou para atacar. Ela se aproximou lentamente, vendo a reação que Margareth teria a cada passo dado, preparada para sacar a lâmina na menor ameaça.

Felizmente, tal situação não chegou. Ana pôde ver a clara baixa de defesas de sua mãe após ter interagido com a maldita planta azul.

“Preciso esclarecer algumas coisas com ela mais tarde, também não entendo o motivo de não ter mana”, ela não havia encontrado casos semelhantes ao dela na internet, então tentou entender a desconfiança de Margareth como algo natural em um mundo cheio de perigos a cada curva. 

“Ainda assim, uma conversa não resolveria isso? As pessoas são tão complicadas…” , seus pensamentos pararam ao chegar à uma das principais guildas da cidade. 

Barueri era um cidade comum, assim como muitas outras cidades vizinhas. Após a Terra e Aurórea se fundirem, uma curta região próxima ao centro continuou a existir de forma concreta, ainda mantendo prédios e pequenas construções quase intactas, sendo esta a região protegida pelos muros construídos recentemente. As demais partes da cidade se afastaram com a expansão de terreno, tornando-se ruínas abandonadas, o novo lar de criaturas misteriosas.

Desta forma, apenas 3 guildas tinham suas bases estabelecidas ali. Não eram guildas grandes, pelo contrário, seus maiores talentos não passavam de ranks C, mas já eram mais do que o suficiente para a maioria dos monstros das redondezas. 

O prédio à sua frente era grande e majestoso, sendo um dos edifícios vindos diretamente de Aurórea. Seus entalhes lembravam antigas catedrais, mas sua estranha decoração era rústica, tirando um pouco da elegância natural da construção e colocando no lugar uma animação moderna que, estranhamente, combinava muito com a atmosfera da região. 

Um grande brasão adornava a entrada. Sobre um fundo azul claro, um grifo majestoso estava em pleno voo, com as asas douradas abertas e as garras estendidas, pronto para agarrar sua presa. Acima do grifo, uma coroa de louros dourada reflete a honra e o respeito conquistados pela guilda. Uma grande placa anunciava o nome da guilda ao mundo: Guilda dos Grifos

“Mas que nome criativo”, riu ironicamente Ana ao analisar o detalhado brasão.

Ela observou o movimento constante de caçadores entrando e saindo, suas expressões variando de exaustão a triunfo. Respirando fundo, ela cruzou o limiar, determinada a se inscrever e começar sua jornada para se tornar mais do que um mero espectador deste mundo renovado.

O hall de entrada do prédio estava mais calmo do que o esperado. Alguns pequenos grupos murmuravam pelos cantos, funcionários ocasionais davam passos rápidos pelos corredores e caçadores solitários descansavam apoiados nas paredes. No centro, um balcão sem graça era monitorado por um recepcionista sem graça, um homem alto e magro com aspecto cansado que praticamente dormia apoiado em seus braços.

— Boa tarde! 

— Boa tarde. Como posso te ajudar? — dizendo as palavras lentamente e com clara má vontade, o balconista olhou para Ana. De relance a garota notou um crachá em seu peito, ironicamente em um tom animado que dizia “Bem vindo, aventureiro! Pode me chamar de Jorge!“

— Eu gostaria de me inscrever na guilda.

— Preencha os papéis e espere na fila — disse Jorge, entregando alguns formulários.

O espírito de Ana afundou um pouco. “Onde está a magia e a emoção que uma guilda de fantasia deveria ter? Me sinto renovando a CNH!”, apesar dos pensamentos aleatórios, os papéis foram rapidamente preenchidos e ela foi para o local onde aparentemente deveria estar a fila, apesar de apenas ela estar lá.

— Ótimo. O processo é simples. Seus dados vão ser avaliados internamente, não somos muito exigentes. Agora só precisamos apenas saber seu rank. Peço que coloque suas mãos sobre a esfera. — apontando para uma pequena esfera branca ligada a um computador, Jorge se levantou de sua mesa.

Ana aproximou-se da esfera com um misto de curiosidade e apreensão. A tecnologia e a magia fundidas de tal forma eram novas para ela. A esfera, lisa e fria ao toque, começou a emitir um brilho suave quando Ana colocou suas mãos.

Jorge observava o monitor atentamente, esperando que os dados aparecessem, mas sua expressão logo se tornou confusa. Ele franziu a testa, verificou as conexões do dispositivo e pediu a Ana que tentasse novamente. Após uma segunda tentativa, o mesmo resultado: a esfera permanecia inalterada, sem reconhecer presença significativa de mana em Ana.

— Reprovada — murmurou Jorge, batendo um grande carimbo vermelho no formulário de Ana. Notando a confusão da garota, ele continuou. — É um detector básico, podemos apenas ver de forma bem superficial se a quantidade de mana presente em seu corpo atinge os requisitos. Parece que você tem menos mana do que um caçador rank F, que é o menor nível detectado pelo dispositivo. O sistema a classifica como um civil sem capacidades de mana registráveis.

Ana já esperava algo assim, mas não pôde deixar de morder os lábios com certa raiva. Ela sabia que era forte, que havia treinado e lutado por séculos, mas esse mundo novo parecia regido por regras em que seu esforço era inútil.

— Lamento, mas sem a quantidade mínima de mana, não podemos aceitá-la como membro ativo da guilda. As regras são claras quanto a isso, para a segurança de todos os envolvidos.

— Existe algum outro tipo de teste?

O aceno negativo de Jorge foi resposta suficiente. Um longo suspiro saiu de seus lábios enquanto encarava novamente as ruas do centro. Ela nem mesmo se dirigiu às outras duas pequenas guildas, sabendo que chegaria na mesma situação. 

Uma guilda era necessária para buscar e aceitar missões legalizadas, sejam essas emitidas pelo governo ou por outros cidadãos, estar fora desse sistema significava navegar por um caminho solitário, criminoso e potencialmente perigoso.

“Se eu não posso me unir a eles do jeito tradicional, talvez exista outro caminho”, pensou ela. “Não é sempre assim nos filmes? Sempre existe uma rede de indivíduos talentosos no submundo. Só preciso encontrar.”

Ela procuraria por aqueles que, como ela, operavam nas sombras do sistema estabelecido, aqueles que talvez não se encaixassem perfeitamente nos moldes das guildas tradicionais. Mercenários, aventureiros independentes, ou até mesmo acadêmicos ocultos que pudessem ter interesse em suas habilidades para obter itens ilegais. Conhecimento era caro, e Ana não ligava para como iria pagar.


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