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— Lembra de nossas aventuras, Gabriel? Até mesmo você teve que admitir que gostou do nosso livro anatômico. Tão detalhado, tão artístico. Os animais são ainda mais interessantes por dentro do que por fora.

Sentada confortavelmente em seu ‘covil’, Ana folheava suas anotações do Grande Vazio. Esse era um dos poucos livros que sobraram depois do retorno, um desgastado caderno que sempre andava com a garota, sempre preparado para receber novas linhas de conhecimento. 

Embora seus olhos estivessem fixos nas páginas amareladas, suas palavras se perdiam nas paredes, ressoando nos cantos sombrios que nunca responderiam. 

Um toque sutil e hesitante na porta a liberou de seu estupor, trazendo seus olhos nublados de volta para a realidade.

— Entre, Maria.

Os passos lentos ressoaram no espaço até que a jovem parou diante de Ana, escondendo seus olhos sob a aba do chapéu, incapaz de encarar diretamente sua antiga conhecida.

— P-parabéns por se tornar uma rainha de prata… foi realmente rápido.

Oh, sim, obrigada. As notícias realmente correm rápido, não é mesmo? Me pergunto no ouvido de quantas pessoas isso já chegou.

O ar frio que entrava pela janela tornava o clima ainda mais pesado. As frases eram ditas de forma casual, mas os espinhos podiam ser sentidos em cada palavra.

— Você sabe, Ana… o mundo gira em torno do dinheiro, e eu ganho o meu com informações, é minha forma de sobreviver. Não pretendia te prejudicar, aceitei vir aqui para mostrar que estou arrependida. Ainda podemos ser parceiras…

Sem uma resposta às desculpas de Maria, Ana fechou o caderno com um baque surdo e o colocou sobre a mesa.

— Sente-se, não vamos conversar com você em pé. O que você acha disso?

Maria pegou o livro com as mãos trêmulas. Seus olhos percorriam as páginas em uma velocidade acima da média, e era notável que a jovem comerciante já era experiente em captar os principais pontos de um texto com apenas um olhar.

— É incrível, nunca vi um registro tão detalhado da fauna do nosso mundo original — falou com uma voz tensa, mas sincera.

— Sim, incrível, mas inútil desde que a grande maioria das espécies foi alterada pela mana — Ana se acomodou melhor na cadeira, pegando seu celular e colocando uma música suave para tocar, o que deu um tom surreal à conversa. — Apesar disso, esses registros me trazem boas lembranças. Planejo reescrever este livro, catalogando cada nova criatura que encontrar em minhas futuras excursões.

— Já tem bastante gente fazendo isso, não é mais fácil só comprar os estudos prontos? — Maria tentou aliviar o clima com uma brincadeira. Ela não entendia em que direção a conversa estava indo, mas a forte tensão no ar estava atiçando seus instintos.

— Pode soar um pouco presunçoso, mas confio mais na minha própria análise. Embora só tenha uma pequena parte dos registros originais, posso afirmar com orgulho que estudei profundamente todas as formas de vida da Terra.

— Não acho que isso seja possível…

— Você está certa, eu exagerei. Deixe-me corrigir, estudei a fundo quase todas as formas de vida daquela porcaria de Terra.

Ana se levantou e se dirigiu ao balcão próximo a fornalha. Ela parecia encarar as ferramentas que usava na forja, mas na realidade seu olhar estava perdido em pensamentos.

— Sabe, em minhas viagens, eu sempre tive um arrependimento. A cada novo animal dissecado, a cada novo desenho feito, sempre um fato me atormentava: meus registros nunca poderiam estar completos.

Abrindo uma pequena maleta médica, ela continuou.

— Claro, existiam livros com estudos anatômicos, mas tente me entender! Eu tinha minha própria coleção, fui de um lado a outro desse mundo aproveitando tudo que ele tinha a oferecer, você entende a minha angústia por não poder escrever justo sobre a espécie dominante deste mundo?

— Me desculpe…

— Desculpar? Você entendeu errado, não estou brava como você, afinal, você salvou minha vida vendendo as informações da missão para Natalya. Apenas não quero que isso se repita.

— Não vai, eu prometo.

— Bem, prefiro não dar sorte para o azar.

“A cabeça dela está totalmente fodida”, pensou Maria, vendo uma fina agulha de seringa vir em direção ao seu pescoço.

 Lágrimas começaram a escorrer incessantemente de seus olhos enquanto ela sentia um formigamento estranho percorrendo seu corpo, lentamente entorpecendo todo tipo de sensação. Maria não era estúpida, o rumo da conversa e as ações repentinas de Ana esclareceram o que o destino lhe reservava, mas, para sua surpresa, ela não desmaiou, e isso tornou tudo muito mais desesperador.


“O funcionamento das novas veias é incrível, quem diria que o fluxo de mana flui de forma tão diferente do nosso sangue”

No início de uma manhã fresca e luminosa, Ana estava ajoelhada diante de um pequeno pedaço de terra úmida em frente ao seu covil, o ar matutino impregnado com o aroma de terra e orvalho. Com as mãos enluvadas, ela cuidadosamente abriu pequenas covas na terra, onde depositava as sementes que havia escolhido para seu novo projeto. Suas ações eram acompanhadas por murmúrios cheios de explicações aleatórias para si mesma.

A noite anterior havia sido longa e cheia de estudos meticulosos. Ela havia passado horas analisando amostras biológicas sob a luz fraca de velas, comparando as estruturas alteradas pela mana com as descrições em seus antigos livros de biologia. 

— O que você está fazendo? — perguntou Alex, observando as fileiras recém-plantadas. A seu lado, Felipe observava com o mesmo misto de interesse e confusão.

— Vou começar uma horta própria. Estou curiosa sobre botânica contemporânea e quero aperfeiçoar minhas habilidades nessa área também, — explicou Ana, sem levantar os olhos do solo. Sua voz era calma, mas havia uma determinação firme em suas palavras, refletindo seu desejo de dominar mais um campo do conhecimento.

Felipe, espiando mais de perto, notou uma cruz rústica decorando o fundo do local.

— Mas que decoração mórbida para um jardim, hein? — comentou ele, com uma sobrancelha arqueada e uma nota de humor na voz.

Ana levantou-se, limpando as mãos no avental, e sorriu misteriosamente para o garoto.

— É bom ter algo que nos lembre da impermanência da vida enquanto cuidamos do crescimento, não é?

Os outros trocaram olhares, desconfortáveis com a resposta, mas percebendo que, como sempre, Ana tinha camadas em suas ações que frequentemente iam além do óbvio. Decidiram não pressionar por mais explicações, eles sabiam que Ana sempre teve um jeito peculiar de ver o mundo, e uma estranha sensação no ar dizia que era melhor deixar algumas perguntas sem resposta.

— Então, o que você pretende plantar aqui? Alguma planta estranha? — Mudando de assunto, Alex tentou trazer um pouco de leveza ao momento. 

Ana, satisfeita com a mudança de tema, começou a descrever seu plano para a horta. 

— Estou pensando em começar com algumas ervas simples, talvez algumas medicinais e outras culinárias. Com o tempo, quem sabe, posso começar a experimentar com espécies mais exóticas.

— Se precisar de ajuda com algo mais pesado para preparar a terra ou construir cercas, é só falar — Felipe sugeriu.

— Obrigada. Por enquanto, estou bem, mas definitivamente agradeceria a ajuda quando expandir o jardim. Mas me surpreende que tenham tempo para isso, não vejo o suor do treino nas suas roupas.

— Bem, sobre isso, não acho que estamos em condições ideais para treinar…

A visão dos jovens caçadores era de dar pena; Alex estava com grande parte de seu grande corpo enfaixado e gesso cobria seus dois pulsos esmagados, uma lesão que certamente não seria curada rapidamente. Suas feridas sempre voltavam a se abrir, deixando marcas rosadas em suas roupas. Já Felipe, apesar de não tão machucado, apresentava uma tez pálida, como se estivesse doente. Várias de suas costelas foram danificadas no confronto, e até mesmo respirar doía.

No entanto, um olhar severo apareceu no rosto de Ana, fazendo arrepios passarem pelas nucas dos garotos.

— Oh, acabei de me lembrar que ainda tenho pernas! Vou correr um pouco, até mais, chefe! 

— Eu vou… atirar em alguma coisa! — Felipe, decepcionado por ter sido abandonado pelo irmão, rapidamente foi para dentro do refúgio, procurando sua arma em desespero.

“Bando de preguiçosos”, pensou a mercenária, voltando a cavar a terra.


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Olá, eu sou o SandmanBored!

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