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Os dias passavam como folhas caindo no outono, um de cada vez, vagarosamente. Um gotejar longínquo era sua única distração em meio a pensamentos conturbados. O corpo quebrado permanecia inutilizável, estirado na beirada do lago. Ana sentia sua pele enrugando-se cada vez mais pelo tempo prolongado na corrente de água, mas tentou ignorar o desconforto, já que era o menor de seus problemas. 

Sempre que se concentrava, podia sentir seus músculos se reconstruindo, mas temia que não fossem rápidos o suficiente; seus lábios rachados ressoavam com sua garganta seca, impedindo-a até mesmo de, com esforço, soltar seus resmungos ocasionais. Suas bochechas, cada vez mais magras, gritavam silenciosamente que os nutrientes necessários para a vida já estavam esgotados.

Em certo momento, começou a evitar abrir os olhos, não havia razão para gastar energia encarando a escuridão. O sono sem sonhos era cada vez mais extenso, e quando acidentalmente acordava, logo a garota voltava a extinguir qualquer pensamento, apenas querendo dormir mais uma vez.

Ana já sentiu dores antes, não foram poucas as vezes em que se machucou ou ficou doente durante o Grande Vazio. Ela sabia da dor e loucura que uma febre inesperada de um país da Ásia podia trazer, ou as feridas sinistras de ser picada por animais peçonhentos ao dormir em densas florestas tropicais. Sua carne já ardeu, seus pulmões já tossiram sangue negro por falta de conhecimento, e sua pele já ficou com grandes bolhas cheias de pus, mas o sofrimento de morrer aos poucos de fome era algo que nunca precisou sentir.

Cada respiração era um esforço consciente, cada batida do coração um lembrete de sua fraqueza. A sensação constante de vazio em seu estômago era um tormento que não a deixava em paz. Ana sabia que estava chegando ao limite, que seu corpo não aguentaria muito mais. Mas a mente, mesmo em sua fragilidade, ainda era resistente.

“Eu sei, também queria saber magia, mas faça como eu, não pense muito nisso…”, aos poucos, começou a ouvir coisas, vozes indistintas que sussurravam nos cantos. Eram reais ou apenas frutos de sua mente faminta e delirante? Não conseguia dizer, mas não se importava. Elas não eram frequentes e não incomodavam, então apenas as respondia.

Uma noite – ou seria dia? – enquanto se encontrava entre a consciência e a inconsciência, sentiu um estranho peso sobre seu rosto. Depois de muito tempo em inanição, abriu os olhos com dificuldade, mas logo se arregalaram de forma súbita. 

O que viu era similar a um rato, mas seu tamanho equiparava-se a um cachorro e sua forma mais grotesca e perturbadora do que um roedor comum. Seus olhos amarelados brilhavam na penumbra, e seus dentes afiados estavam a centímetros de seu rosto. Sentia as patas pequenas e frias da criatura sobre sua pele, se arrastando sobre ela, lentamente.

“É assim que vou morrer?”, pensou, seu coração batendo descompassado. O pânico inicial logo foi substituído por uma resignação fria ao sentir a criatura passar por sua face e começar a mordiscar seu braço. 

Inicialmente, foram mordidas fracas, acompanhadas por um sutil farejar de suas narinas rosadas, como se analisando o estranho ser que, apesar de vivo, não resistia, mas logo seus dentes pontiagudos começaram a arrancar pequenos pedaços de carne. A dor era intensa, mas havia algo ainda mais perturbador na sensação de ser devorada viva.

Ana observou a cena por um instante, ainda mais paralisada pela dor e pelo inesperado horror. A criatura parecia implacável, sua fome insaciável.

“Meu destino é virar comida para essa coisa?”, a ideia perturbadora a revoltou. 

O peso tornava difícil respirar, e o corpo do roedor fedia a restos de carne podre.

— Eu não vo… vou… ser devorada, desgraçado… — ela não podia aceitar esse fim, não assim. — ha… ha… hahahaha… hahahahahaha… hahaHAHAHA…

Com uma força que ela não sabia que ainda possuía, Ana começou a gargalhar. Por muito tempo ela sonhou com sua morte. Desde seus primeiros anos sozinha, quando pensou em se jogar do penhasco, antes mesmo de Gabriel aparecer pela primeira vez, até seus últimos anos, onde sentia que o mundo já não era o suficiente.

“Uma morte simples e elegante… ou uma morte dolorosa, para experimentar as muitas dores que não pude experimentar ainda… uma escolha tão difícil. Mas, devorada?”, seus pensamentos se perdiam em si mesmos, mas os risos roucos continuavam a sair. O monstro sobre seu corpo grunhiu, incomodado por estar sendo atrapalhado em sua refeição, mas não parou de comer.

“Não fode comigo! Eu sou quem vai devorar essa merda de mundo!”

Com um impulso final de adrenalina, abocanhou a parte de baixo do rosto distorcido que a consumia. Seus dentes perfuraram a pele do bicho, e o gosto rançoso e metálico do sangue invadiu sua boca. A criatura se debatia ferozmente, tentando se libertar, mas Ana não soltou.

A luta foi uma agonia prolongada. Cada movimento da criatura enviava ondas de agonia por seu corpo já debilitado. A criatura, que comia em seu próprio tempo, começou a rasgar sua carne violentamente, mas seus próprios dentes também se enterravam cada vez mais fundo no corpo do rato grotesco. 

O suor escorria por seu rosto, misturando-se com lágrimas de dor e frustração. Sentia-se à beira da loucura, mas algo dentro dela se recusava a ceder. Isso era vontade. Vontade de explorar, vontade de conhecer tudo. Vontade de não apenas sobreviver, mas de viver tudo o que o novo mundo podia oferecer.

Finalmente, com gritos que quase pareciam humanos, a criatura começou a perder forças. Seu corpo tremeu violentamente, e então simplesmente cedeu. Ana sentiu a vida deixando o pequeno corpo, e cada gota do líquido vermelho fluía como o suco da vida.

O momento foi quase divino. O sangue quente da criatura era um contraste com a frieza da água e a escuridão ao seu redor. O líquido viscoso cobria sua língua com um amargor intenso e repugnante, mas naquele instante, era o néctar da sobrevivência. Sentiu cada gota deslizar por sua garganta, aquecendo seu interior como um fogo renovador. 

Ana deixou a criatura cair de sua boca aos poucos, o corpo inerte despencando, meio no chão ao seu lado, meio sobre seu próprio rosto. Ela assimilou com prazer indescritível o gosto que preenchia seus lábios.

“Não é o suficiente”

Ana começou a devorar o corpo já sem alma. Cada mordida trazia uma nova onda de energia crua e primitiva, como se algo estivesse se infundindo em seu ser, despertando uma força há muito adormecida. Ela rasgava a carne com os dentes, com os restos escorrendo pelo queixo. 

O sabor e a textura repulsiva não a dissuadiram; ao contrário, alimentaram seu instinto de sobrevivência. A sensação era paradoxalmente purificadora e brutal, uma fusão de vida e morte que lhe dava um vislumbre de esperança. Com cada pedaço que engolia, sentia a existência retornar ao mundo, a clareza preencher sua mente.

A respiração aos poucos tornou-se mais fácil, o peito subindo e descendo de forma mais regular. Por um breve e precioso momento, sentiu-se conectada à essência da vida, a uma vontade que se recusava a ser extinguida. O choro de alegria se misturava com a dor de seus movimentos forçados para se alimentar, e a criatura, que antes a devorava, agora se tornava sua fonte de renovação. 

“Ainda não acabou”, pensou, sorrindo fracamente enquanto sentia a força retornar lentamente a seu corpo.

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