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— Tudo foi um sonho?

Olhando pela janela de seu quarto, que preservava cada detalhe de sua antiga vida, Ana refletiu sobre a estranha realidade que agora enfrentava.

— Não, isso é real, as pessoas estão de volta — seu olhar caiu sobre suas mãos, os calos que representavam seus constantes esforços permaneciam em sua pele.

Desligando o despertador, um gesto tão mundano, Ana contemplou as ruas movimentadas. Pessoas riam e conversavam, jovens apressados manobravam com espadas penduradas em suas cinturas.

— Espadas? — questionou-se, confusa ao tentar reconciliar a cena com vagas lembranças do passado.

— Bom, posso pensar melhor sobre isso depois de…— sua audição aguçada captou baixas vozes vindas da cozinha, interrompendo seus pensamentos. Sua mão instintivamente puxou a faca presa em seu cinto, reflexo de séculos de solidão e autossuficiência. Ana não sentia medo, afinal não havia mais seres na Terra que pudessem ser uma ameaça, mas a estranheza da situação a fez ficar mais cautelosa do que o normal. 

Ao abrir a porta da cozinha, uma onda de emoções a inundou. 

“Como pude me esquecer?”, Ana não pode deixar de culpar-se, o coração pulsando em seu peito com uma mistura de alegria e dor..

Uma jovem mulher, de cerca de 18 ou 19 anos, estava sentada à mesa com uma torrada em suas mãos. Ao seu lado, uma mulher de meia-idade preparava café com um sorriso gentil, mas sutilmente severo, um sorriso que lentamente se transformou em lágrimas ao encontrar o olhar de Ana atordoada em frente a porta. 

A verdade é que Ana não se lembrava bem delas, em suas memórias não passavam de um borrão com rostos genéricos, desconhecidas de um passado que não existia mais. Mesmo assim, seu coração bateu forte e uma estranha palavra deslizou pela sua língua de forma pouco natural.

— Mãe… — a palavra escapou de seus lábios, embargada pela emoção, enquanto uma lágrima solitária traçava um caminho por seu rosto, desafiando séculos de autocontrole e solidão. Elas se abraçaram, um abraço que transbordava o alívio e o amor acumulados ao longo de décadas perdidas.

As mulheres ficaram nesta posição por um longo tempo antes do confortável silêncio ser quebrado. 

— Sabia que te procuramos em todos os lugares por um tempão? Você devia ter deixado um aviso em alguma das cidades! Mas não, você preferiu não dar notícias por 10 anos! 10 anos! — gritou Jasmim em um tom de repreensão. Seu rosto também estava molhado de lágrimas, mas exibia uma expressão de indignação. 

O inocente comentário de sua irmã fez a mente de Ana voltar à realidade com surpresa. “10 anos?”, pensou, enquanto olhava novamente para sua irmã. Jasmim, a gentil e fofa garota de 9 anos que ela conhecia, agora era uma esbelta jovem mulher. Seu cabelo preso em um rabo de cavalo destacava seu rosto confiante e sua armadura de couro semi-desmontada expunha seus fortes, porém delgados, braços. 

Com a mente ainda girando, o olhar de Ana voltou para Margareth, sua mãe, notando detalhes que não havia percebido no momento de emoção anterior. Ela estava claramente mais velha do que parecia em suas lembranças, mas indiscutivelmente muito mais saudável. Diferente de Jasmim, sua mãe não usava armaduras, mas em seu cinto era possível ver diversas facas e itens que Ana não conseguia entender, mesmo com todo seu conhecimento acumulado.

— O que está acontecendo aqui? — murmurou Ana, as palavras mal conseguindo capturar a complexidade de seus pensamentos. Ela tentava assimilar a nova realidade: um retorno ao lar que não era mais o mesmo, a um mundo que evoluiu sem sua presença.

Margareth, notando a confusão de Ana, ofereceu-lhe uma xícara de café, um gesto simples que carregava consigo uma tentativa de reconexão. Ana aceitou, reconhecendo que, apesar da estranheza da situação, aquele gesto representava um ponto de partida para reconstruir laços perdidos. Ana sabia que precisava falar algo, mas por onde começar? Como explicar séculos de solidão, auto descoberta e treinamento intenso para uma mãe e uma irmã que acreditavam que apenas dez anos haviam passado desde o “Grande Vazio”?

— Eu… estive procurando por respostas — Ana começou, lutando para encontrar as palavras certas. — Depois que todos desapareceram, eu me vi sozinha… ou melhor, quase sozinha… então eu treinei, explorei, tentei entender o que aconteceu.

As explicações vagas geraram mais perguntas nos olhos de Margareth e Jasmim, mas Ana percebeu que o momento exigia simplicidade, não revelações profundas.

— Você treinou? Explorou? — Margareth repetiu, parecendo incapaz de compreender totalmente as palavras de Ana.

— Sim, mãe. Eu treinei. Treinei todas as habilidades que pude, desde artes marciais até forja de armas. Eu… eu não sabia o que fazer, mas sabia que precisava me manter forte, encontrar um propósito — suas palavras pareciam fracas e inadequadas diante da magnitude de sua experiência.

— Isso é incrível, Ana! Você aprendeu a lutar? Então você se tornou uma caçadora, certo?! — Jasmim, por outro lado, estava mais intrigada do que perplexa. 

Ana forçou um sorriso para sua irmã mais nova, apreciando o entusiasmo genuíno em sua voz. Ela não entendeu exatamente o que Jasmim quis dizer com “caçadora”, então apenas continuou seu discurso. 

— Sim, Jasmim. Eu treinei muito, mas…

— Mas? 

— Mas nada disso importa agora — Ana disse, sua voz ficando mais firme ao decidir que não valia a pena mencionar seu desespero ao ser abandonada em um mundo vazio. — O importante é que vocês estão de volta. Por sinal, onde está meu pai?

Um silêncio pesado caiu sobre a cozinha, rompendo brevemente com a harmonia do momento e trazendo ao primeiro plano o pesar que pairava no olhar da mãe.

— As coisas não foram tão fáceis nos primeiros dias… 

 Ana respondeu com um aceno sutil de cabeça a frase embargada de emoção de Margareth, uma compreensão silenciosa refletida no brilho de seus olhos. Embora o laço com seu pai não fosse feito de inúmeras memórias compartilhadas, a indiferença não coloria seu coração; apenas a falta de lembranças concretas a impedia de sentir uma dor profunda.

Enquanto o aroma reconfortante do café fresco se mesclava com o burburinho distante da cidade despertando, um vislumbre inesperado de alegria e esperança aflorou em Ana. O futuro permanecia uma incógnita, porém, a monótona existência que ela conhecia até então parecia ter chegado a um ponto de virada decisivo. 

Com a emergência de uma nova vida no horizonte, era crucial para Ana desvendar as camadas de seu novo ambiente.

— Como eu disse, acabei ficando praticamente sozinha nos últimos anos… Jasmim, me explique melhor, o que são os caçadores? 

— Ficou tão reclusa assim? — Jasmim expressou uma surpresa genuína, mas sua expressão rapidamente transbordou de entusiasmo ao ter a chance de discorrer sobre um tema de evidente paixão.

Ela se inclinou para a frente, seus olhos cintilando com fervor juvenil enquanto mergulhava na explicação.

— Os caçadores são uma espécie de grupo de sobrevivência que se formou depois que as pessoas foram para Aurórea. Muita gente morreu nos primeiros dias depois do teletransporte, principalmente as que apareceram dentro das florestas, então rapidamente foram criados grupos para criar pontos seguros. Assim que tudo se estabilizou, as pessoas mais talentosas passaram a ser chamadas de caçadores, são a elite!

Ana assentiu, absorvendo as informações. Era fascinante para ela pensar que, enquanto ela estava sozinha, outros estavam lá fora, formando comunidades, adaptando-se a um mundo diferente.

— Hmmm… imagine como um vasto jogo, se preferir.. Muitas cidades foram erguidas das cinzas, e com o frequente aparecimento de monstros todos tinham que se juntar para sobreviver — Jasmim continuou, percebendo a atenção total de sua irmã. — Com o tempo, pessoas que pensavam de forma diferente foram se juntando, e para manter o mínimo de ordem foram estabelecidas as guildas. Existem guildas de todos os tipos, se você quer estudar magia, botânica ou criaturas, assim como se quiser simplesmente lutar, existirá uma guilda para você! 

Mordiscando sua torrada, ela não se deu por vencida em seu ímpeto de compartilhar.

— Tecnicamente, todos são denominados caçadores, mas só os de rank elevado realmente detém esse título. Claro, agora que estamos de volta, as regras podem mudar… mas a essência permanece.

— Você parece ter muito interesse no assunto 

— Claro! Eu me juntei a eles! — o sorriso confiante mostrava o quão orgulhosa estava de si mesma — Crianças se adaptaram muito melhor à magia do mundo novo, então, quando cresci e ouvi falar dos caçadores, percebi que era a oportunidade perfeita para mim. Mesmo que ainda esteja nos degraus iniciais… 

Sua expressão de orgulho rapidamente se misturou com frustração ao mencionar seu status inicial.

Aurórea? Magia? Monstros? 

Ana absorvia cada palavra, suas suposições sobre a nova ordem do mundo sendo moldadas pelas narrativas ouvidas. Sem perceber, o sorriso sereno de momentos atrás cedeu lugar a um sorriso faminto de conhecimento. 

A quietude que ela havia adotado ao longo de um milênio era uma máscara que a solidão havia esculpido. No fundo, Ana se orgulhava de seus feitos e ansiava vorazmente por desvendar os mistérios que ainda desconhecia. Uma sede insaciável de aprender começava a florescer em seu ser, uma ganância oculta que até então permanecera adormecida. Ana desejava conquistar esse novo mundo e observá-lo do vértice mais alto.


— Você também notou, não é, Jasmim? — os olhos de Margareth estavam carregados de intensidade enquanto acendia um cigarro com mãos trêmulas.

Ana havia se recolhido ao seu quarto, deixando as duas mulheres sozinhas na varanda, imersas em uma quietude contemplativa.

— Sim, algo não está certo — sua expressão grave refletindo a seriedade de sua mãe. Seu olhar perdia-se na imensidão do céu matinal, como se buscasse respostas nas nuvens passageiras.

— Não é só isso, Jasmim. Havia uma estranha ausência de mana nela

— Como pode ser? Tudo que respira neste mundo é permeado pela mana — Jasmim franziu a testa, confrontando o dilema que ambas evitavam. — Você acha… Será que ela se tornou uma sombra?

Um calafrio percorrendo a espinha das mulheres, apesar do vento frio de outono que já acariciava suas peles arrepiadas.

— Eu não sei, querida — A voz de Margareth falhou, um sinal de sua crescente dúvida e medo. — Ela parece ser minha filha, a menina que eu criei, mas agora… há um vazio em seu olhar, como se estivesse olhando para um abismo sem fim. Se for o pior cenário, podemos ser forçadas a matá-la — ela trincou os dentes, dando uma última e profunda tragada no cigarro antes de lançá-lo ao asfalto, seu brilho laranja extinguindo-se como uma última centelha de esperança.

Um silêncio espesso envolveu a varanda, cada uma perdida em seus pensamentos turbulentos, ponderando o peso de suas próximas escolhas. A conexão familiar que outrora as unia agora parecia suspensa em um fio delicado de incertezas e medo.


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