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Dellos avançava lentamente, como se aproveitando os gritos da multidão que rugia de excitação. O olhar de Ana acompanhava cada passo, fixo na criatura à sua frente. 

“De pé na arena, mais uma vez”, pensou, sentindo uma onda de familiaridade.

Sem armas e com poucas opções, a garota começou a circular, mantendo uma distância segura enquanto estudava os movimentos do panda. Cada perna era erguida de forma cuidadosa e calculada, seus sentidos em alerta máximo para contra-atacar qualquer ação inesperada.

Atendendo às expectativas da mercenária, Dellos lançou-se para frente sem aviso, as garras afiadas mirando em seu torso. Ela saltou para o lado, rolando na areia suja e se levantando em um movimento fluido. Seus olhos vasculharam a arena em busca de qualquer coisa que pudesse usar para atacar, mas não havia nada.

“Talvez eu esteja no lugar certo”, seu coração começou a bater mais rápido ao sentir a ânsia por sangue da platéia.

Com um grito de desafio, Ana correu em direção à fera, esquivando-se dos golpes desajeitados, mas poderosos, que a criatura desferia. Seus punhos encontraram o pelo grosso de Dellos repetidamente, mas era como socar uma parede de pedra coberta por uma camada de algodão. Cada impacto nos duros músculos enviava ondas de dor por seus braços, mas não causava dano visível ao urso.

“Aqui é onde me sinto viva. A adrenalina da luta, a dança da vida e da morte”, os arredores começaram a sumir de sua visão. Apenas ela e seu inimigo existiam naquele mundo.

Mudando de tática, pegou um punhado de areia e jogou nos olhos da fera. Dellos recuou momentaneamente, balançando a cabeça para afastar a irritação. Aproveitando a abertura, Ana deslizou pela lateral do grande corpo, desferindo uma série de socos rápidos no focinho da criatura. Ainda assim, o efeito continuou mínimo.

— Droga… não vou conseguir nada assim — murmurou, ofegante. Dellos rugiu, suas garras varrendo o ar em um arco amplo enquanto permanecia sem enxergar.

“Ainda assim, nesses momentos… é como se tudo se encaixasse”, o chão de terra batida que tocava sua pele trazia uma peculiar sensação de paz à mercenária.

Era o lugar onde sempre se sentiu mais viva, mais livre. Lembrava-se de todas as lutas, de todos os momentos felizes de êxtase enquanto seu próprio sangue se misturava com o sangue de seus oponentes.

“Mesmo sabendo que posso morrer aqui… é reconfortante.”, o suor escorrendo pelo rosto enquanto girava com graça sobre os calcanhares, desviando de mais uma investida, trazia um sentimento de familiaridade. Cada golpe que desferiu, cada esquiva, era um lembrete de todas as lutas que enfrentou no novo mundo.

A multidão aplaudia de pé a bizarra troca de socos entre um gigante monstro e uma pequena humana. A resistência de Ana baixava lentamente, e em um momento de descuido, a criatura acertou pela primeira vez um golpe, destroçando parte da carne de seu braço esquerdo.

A dor era excruciante, mas a brancura dos ossos que apareceram sob sua pele a trouxe uma clareza brutal, retirando-a de seus devaneios.

“Eu sou tão burra… Meu corpo sempre foi um dos meus pequenos orgulhos, quando passei a depender tanto de ferramentas externas?”

Em meio a pensamentos e resmungos, deu alguns saltos para trás, se afastando de Dellos, o qual observou a ação com um olhar quase zombeteiro. Ela olhou para as arquibancadas, notando a expressão feliz das milhares de pessoas, mas apenas o som de seu próprio coração chegava a seus ouvidos.

Um sorriso determinado surgiu em seus lábios. Uma decisão foi tomada ao colocar o braço ferido no chão de forma brusca, apoiando-se nele de uma maneira que qualquer outro consideraria suicida. Com um movimento preciso e doloroso, colocou o joelho sobre ele, impulsionando-se para baixo com toda a força. Um som nauseante ecoou pela arena quando uma fratura aberta rasgou o que sobrava de sua pele.

O osso quebrado de seu antebraço reluziu com o sangue que escorria incessantemente. Ana suprimiu qualquer tipo de grito e, com a nova arma em mão, se lançou novamente contra o panda. Usando sua agilidade, esquivou-se das grandes patas que vinham em sua direção e desferiu um golpe com a fratura óssea diretamente no olho esquerdo do monstro. Dellos urrou de dor, recuando alguns passos. 

A rainha mercenária aproveitou o momento de vantagem, atacando sem cessar, usando a lança improvisada para perfurar a criatura múltiplas vezes. O urso tentou retaliar, mas estava claro que o ímpeto da luta havia mudado. A garota, cada vez mais animada conforme o sangue permeava suas leves roupas de linho, manteve a pressão, obrigando a criatura monocromática a recuar cada vez mais.

Finalmente, em um movimento ousado, Ana saltou sobre o braço da criatura, escalando-a em dois movimentos e cravando o braço na nuca da besta. Seus ossos afiados do rádio e ulna se afastaram de uma forma anormal conforme atravessavam os músculos firmes, causando uma dor insuportável, mas ela não parou, atravessando a carne cada vez mais profundamente. Dellos estremeceu, sua enorme forma balançando antes de cair pesadamente no chão, já morto.

Ana caiu de joelhos, exausta, mas vitoriosa. Usando o que restava de sua força, se arrastou até a criatura tombada. Seus ossos rasgaram lentamente o peito do grande panda, e sua mão livre arrancou seu coração com uma forte puxada.

“Me desculpe, mas você é meu sacrifício”, pensou, mordendo o coração da fera.

Não foi uma ação consciente, apenas fruto do costume e memória muscular de seus longos meses na escuridão. Ela não havia comido carne de monstros desde que foi capturada, mas vendo o sangue fresco à sua frente, seu corpo se moveu por instinto, relembrando a inebriante e revigorante sensação da mana entrando em seu corpo.

Seus olhos se fecharam para sentir o pedaço mastigado de carne atravessando sua garganta. Sangue traçava padrões complexos em sua pele enquanto escorria dos cantos de sua boca e de seus ferimentos, misturando-se com a areia suja.

Ana ergueu a cabeça e viu a mulher musculosa que a havia comprado, observando com um largo sorriso, levantando um polegar de aprovação. Por algum motivo, gostou dela, não sentindo a mesma repulsa que sentia dos escravistas, apesar de saber que a situação não era muito diferente.

— hm hm… Hoje, nos despedimos de nossa antiga fera da boa-sorte — gritou o locutor, se recuperando da cena. — Uma nova era se inicia, e o primeiro sangue foi derramado!

Os espectadores, que haviam ficado em silêncio por um momento após a sucessão de acontecimentos chocantes, explodiram em aplausos e aclamações.

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Horas depois, Ana estava em sua cela, o silêncio pesado contrastando com o tumulto da batalha. Suas roupas estavam encharcadas de sangue seco e suor, e a dor latejava em seu braço quebrado, agora enfaixado de forma improvisada. Ela tentava limpar o sangue e a areia de sua pele com movimentos lentos e precisos.

A porta da cela se abriu, revelando a figura imponente da mulher musculosa que a havia comprado. Ela entrou, carregando uma bandeja com comida e uma expressão indecifrável no rosto.

— Você se saiu melhor do que eu esperava — disse a mulher, colocando a bandeja no chão e se aproximando da garota ferida. — Mas não pense que isso significa que terá vida fácil aqui.

Ana olhou para a bandeja, então para a mulher. Seus olhos brilharam com uma mistura de curiosidade e desconfiança. Lentamente, pegou um pedaço de pão da bandeja, mordendo-o com avidez. Fazia meio ano que não comia pão branco, o intenso sabor do trigo fez cócegas em sua língua.

— Qual é o seu nome? — perguntou a mercenária, entre mordidas.

— Meu nome é Cassandra. E o seu?

— Ana.

Cassandra assentiu, como se estivesse forçando-se a gravá-lo em sua mente.

— Você terá uma chance de sobreviver aqui, Ana. Mas terá que lutar, e lutar bem. Há muitos interessados em ver o quanto você pode aguentar.

Ana engoliu um gole de água limpa, sentindo a frescura descendo por sua garganta seca. Seus olhos encontraram os de Cassandra, e por um momento, uma compreensão silenciosa passou entre as duas.

— Por que me comprou? — perguntou ela, a curiosidade vencendo a exaustão.

A mulher deu de ombros, uma expressão pensativa cruzando seu rosto.

— Vi algo em você. Algo que me lembrou de mim mesma quando cheguei aqui. A diferença é que eu tive que lutar pelo meu espaço sem ninguém para apostar em mim. Você pode considerar isso uma sorte ou uma maldição, mas serei uma grande apoiadora por trás das arenas.

Ana assentiu lentamente, absorvendo as palavras. A determinação em seus olhos se intensificou.

— Você sabia que eu poderia ganhar? — perguntou, sua voz baixa, mas firme.

— É claro que não, o objetivo não era sua vitória. Mas sabia que você tinha potencial para uma briga que agradasse a plateia — As palavras saíram juntas a um meio sorriso, e logo prosseguiu cruzando os braços sobre o peito. — Claro, aqui o potencial não significa muito se não for bem aproveitado. Descanse agora, em breve irão vir aqui cuidar desses ferimentos. Amanhã, começa uma nova etapa de sua vida.

Com isso, Cassandra se virou e saiu da cela, fechando a porta atrás de si. Ana se recostou na parede fria, fechando os olhos por um momento. O silêncio voltou a reinar, mas desta vez, havia uma sensação de propósito no ar. Não era onde ela gostaria de estar, mas também ela não desgostava completamente deste destino.

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