“O destino é realmente engraçado”, isso foi tudo o que Ana pôde pensar ao ver a mulher algemada à sua frente. Seus olhos eram exatamente como ela se lembrava; vazios, algo sem emoção. Olhos mortos.
A brancura de seus cabelos foi sobreposta por uma repugnante mistura de sujeira e sangue. Seus chifres, antes elegantes, eram agora apenas tocos quebrados de forma rude. As roupas não passavam de trapos desgastados e sua pele pálida estava cheia de hematomas.
— É realmente uma surpresa te encontrar por aqui. Principalmente neste estado… maravilhoso.
A Sombra levantou os olhos enevoados lentamente, parando ao encontrar Ana a encarando ironicamente. Por um momento, não pareceu a reconhecer, mas logo uma expressão surpresa substituiu a confusão.
— Você ficou mais afiada, mas não parece mais forte. Eu esperava mais, ainda não é o suficiente.
Seu rosto voltou a olhar para o vazio após algumas poucas palavras, mas ainda parecia estar prestando atenção na garota à sua frente.
— Bem, você não está errada — dando de ombros, Ana sentou-se em uma cadeira próxima a onde os novos escravos estavam presos. — Não que uma escrava possa vir falar sobre ser o suficiente para mim. Também não parece que você progrediu muito nesses últimos anos.
— Você é a culpada por essa situação. Vim aqui para treinar após falhar em meus deveres — disse a Sombra, sua voz saindo com certa resignação que não havia sido vista até o momento — Eu não imaginei que ficaria tão limitada ao chegar aqui. Esse lugar está quase seco.
“Parece que mana reversa também não flui bem no abismo”, pensou Ana, lembrando-se do pouco que sabia sobre o lugar.
Um suspiro profundo surgiu ao relembrar aos poucos do passado distante. A cantoria suave de Marina pareceu soar em seus ouvidos, e com as lembranças, a raiva.
— Você teve a chance de acabar comigo, a culpa é sua por ser uma incompetente! Além disso, se não tivesse matado minha maga genial, talvez eu não estivesse nessa porcaria de lugar!
— Se não me falha a memória, eu permiti que vocês fossem embora sem uma luta, mas minha bondade não foi bem recebida pelo seu pequeno bando.
Em meio a troca de culpas sobre infortúnios, Cassandra, que apenas observava de um canto, finalmente deu um passo à frente.
— Que interessante… vocês já se conhecem — disse a grande mulher, surpresa. — Adoraria saber que tipo de relação minha melhor gladiadora tem com esse pessoal bizarro.
— Tivemos nossos desentendimentos no passado, nada demais — respondeu Ana, desinteressada.
— Parece mais do que isso. Mas quer saber? Foda-se, isso torna meus planos ainda mais divertido. Estendam os braços.
As mulheres cessaram a discussão, se encarando por um instante. Ana parecia prestes a reclamar, mas uma aura opressiva emanou de Cassandra, fazendo-a estremecer levemente. Ela já havia contrariado a severa chefe da arena muitas vezes, e era sorte quando terminava somente com alguns ossos quebrados.
Com um abafado clique, uma estranha algema foi presa ao braço das duas escravas. A corrente possuía pouco mais de um metro e meio e emitia um brilho terroso sutil, como se algo fluísse por dentro dela.
— Ana, você será a mentora dela durante essa temporada. Torne-a uma atração, quero que meus escravos sejam o destaque esse ano — disse Cassandra, um sorriso ligeiro surgindo em seus lábios. — Por sinal, espero não encontrar minhas mercadorias se danificando sem um público para ver, então brigas não supervisionadas estão proibidas.
— Humpf… apenas cala a boca e me segue, vou mostrar tudo por aqui — disse Ana para a Sombra, tentando esconder sua frustração ao aceitar relutantemente a tarefa.
Não era a primeira vez que ela ficava a cargo de recém-chegados, e a realidade é que não havia um ressentimento tão forte entre ela e a mulher dos chifres quebrados, visto que a mesma a deixou viva, coisa que a própria Ana não faria. A sombra parecia perplexa com a situação, mas seguiu Ana com passos curtos.
O silêncio perdurou durante o tour pelo local, sendo quebrado apenas pelas eventuais explicações sobre o funcionamento de cada área, desde as celas até os campos de treinamento. Elas visitaram a área de alimentação, os alojamentos dos gladiadores e todas as áreas de prática.
Pessoas ferozes, mas cabisbaixas, passavam pelos corredores, ocupadas com suas tarefas. Escravos eram chicoteados por não terem feito um bom show e a comida rançosa das bandejas trazia um embrulho no estômago de quem a via pela primeira vez.
— Este lugar… é um inferno — murmurou a Sombra, ainda absorvendo o ambiente decadente que a cercava.
— Na verdade depende de quanto dinheiro você traz para a arena. Gladiadores amados pelo público vivem melhor do que os ricos da cidade. Claro, sem a liberdade de sair daqui, mas com todo tipo de luxo.
— E você está aproveitando esses luxos? Pelo jeito não é que não ficou mais forte, está ainda mais fraca do que quando te conheci.
— Acha que não tentei sair dessa merda de lugar? Me falta poder, e não tenho como ganhá-lo aqui dentro.
— Então a escolha foi viver obediente como a porra de um cachorro? — a voz da sombra parecia conter um riso contido, mas também se notava uma certa tristeza oculta entre suas palavras.
— Sim, mas um cachorro vivo — respondeu Ana, cerrando os dentes. — O que posso fazer é suportar, ganhar confiança de todos, lutar e ganhar. Assim, se eu tiver sorte, um dia vão confiar o suficiente em mim para que eu possa pisar nas ruas. Só então posso pensar novamente em como ir embora.
A caminhada continuou sem mais conversa, cada uma refletindo em seu próprio mundo pessoal. Após alguns minutos, finalmente chegaram ao galpão de Ana. Era um espaço amplo e cinza, como se exalasse uma melancolia própria. Alguns móveis simples decoravam as paredes e uma grande cama se encontrava no centro do local. A iluminação era fraca, mesmo com as lâmpadas acesas, o que tornava tudo ainda mais sombrio. Os lobos levantaram-se com um pulo ao ouvir a voz da garota, e se sentaram como grandes estátuas, apesar de uma leve tremedeira ser vista sob seus pelos espessos.
— Veja, essa é uma das minhas pequenas conquistas. Não é muito, mas privacidade é o maior benefício que podemos esperar com nossa hierarquia. — se aproximando dos monstros, Ana fez um carinho suave, o que não ajudou com o medo enraizado em seus corações.
— Qual o sentido de guardar criaturas tão fracas? — comentou a Sombra, com desdém.
— Tédio, talvez — respondeu Ana, suspirando. — Depois de tanto tempo aqui, qualquer coisa é melhor do que nada.
Não parecia que a garota de roupas gastas havia entendido, mas ela acenou em concordância.
— E sua arma, onde está?
— Ah, isso eu também gostaria de saber…
— Algo tão importante deveria ter sido mantido com mais cuidado — murmurou a Sombra, com um toque de decepção em cada palavra. — São poucos os símbolos que Ela nos deixou.
— Ah, já quase me esqueci que você faz parte daqueles lunáticos.
— Lunáticos?
— Sim, a maldita igreja do novo mundo.
Com um puxão forte das correntes, Ana se jogou de costas em sua cama, deitando-se em uma posição relaxada. A Sombra a observou por um momento, levemente irritada pelo movimento brusco em seu pulso, mas logo sentou-se em uma das beiradas do colchão.
— Não somos ligados, apesar de nossa adoração ser direcionada ao mesmo ser — respondeu a Sombra. — Pensei que você era o mesmo que eu na primeira vez que a vi, alguma vertente diferente que venera a Mãe, já que isso explicaria ter parte dela em suas mãos. Não é assim?
— Não, não é assim.
“Mas que droga é você, Gabriel”, refletiu Ana, decidindo deixar o assunto de lado por enquanto. O pequeno relógio sobre a cômoda fez um ruído sutil, anunciando a chegada das oito horas, e despertando Ana de sua divagação.
— Vamos, se terei que te aguentar ao meu lado, pelo menos temos que resolver esse cheiro repugnante antes de dormir. Os dias começam cedo na arena.
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