A sala estava mergulhada em uma atmosfera de descontração, onde o luxo das decorações complementava a rivalidade relativamente amigável entre os chefes de arena. Os copos cheios de vinho se esvaziaram rapidamente, e os olhares vez ou outra se desviavam para os vitrais, ansiosos pelo começo dos jogos.
— Então, Draven, vai lutar de forma pouco honrosa novamente este ano? — Cassandra lançou a pergunta com um sorriso irônico, seus olhos fixos no adversário.
O homem esguio estava sentado relaxadamente em uma poltrona amarela. Um ar sombrio o rodeava, e seus lábios sempre sorriam com um toque de malícia. Draven possuía olhos penetrantes, e uma cicatriz fina atravessava seu rosto, conferindo-lhe um aspecto perigoso.
— Se isso garantir que eu continue no controle, com certeza. A honra é para os fracos — apesar da clara provocação, ele respondeu com um tom calmo e confiante.
— Vamos ver se seu Colosso vai aguentar minha gladiadora esse ano. Acho que estamos todos interessados em ver como os seus ‘truques’ se saem contra verdadeiras habilidades — interveio Lysandra. Cabelos negros como a noite escorriam até o fim de suas costas, enquanto a garota de aparência comum e inocente se apoiava na janela, a qual simulava um belo dia ensolarado com pequenos painéis de led. Ela usava roupas simples, mas seu olhar revelava uma natureza cruel e seu sorriso sádico permaneceu durante cada palavra dita.
— Espero que sua Bruxa não traga mais problemas este ano. Algumas das suas manobras bizarras no último torneio ainda são comentadas pelos espectadores. Queremos gritos de emoção vindos da platéia, não vômitos intermináveis — disse Draven, inclinando-se ligeiramente para a frente.
— A Bruxa é um talento único. Se suas habilidades desafiam a compreensão comum, talvez seja hora de todos elevarem seus padrões ao invés de continuarem reclamando.
— Ou talvez devessem aprender a diferenciar talento de pura bizarrice — provocou Tiberius, rindo. — Mas não posso negar, ela torna tudo mais… interessante.
— Interessante é uma forma educada de colocar — murmurou Cassandra, tomando um gole de sua bebida ao concordar com o garoto.
Tiberius era o mais jovem dos quatro, sempre otimista e com um ar de determinação. Sua aparência robusta e sua expressão amigável contrastavam com os outros chefes mais experientes.
— Bom, mudando de assunto — continuou Draven — os novatos deste ano estão especialmente fracos. Vamos ter que contar muito com nossos gladiadores de elite para manter o espetáculo.
— Concordo — disse Lysandra, balançando a cabeça. — Os novatos não estão à altura. O que falta para eles é um pouco mais de chicote.
— Eu estou confiante nos meus — o radiante sorriso de Tiberius acompanhou sua frase, havia um toque de travessura em seu tom de voz. — Eles podem surpreender a todos.
Cassandra sorriu, seus olhos brilhando com um segredo.
— Também tenho uma surpresa para todos vocês. Vamos ver o que acham quando for revelada…
— Adoro esse otimismo! — Draven deu uma gargalhada, batendo com a mão na mesa. — Ouvi dizer que você recrutou alguns talentos interessantes, Cassandra. Está realmente confiante de que eles conseguirão se destacar?
— Com certeza! Achei que era meu fim quando meu Arpoeiro morreu ano passado, mas Ana está fazendo um ótimo trabalho o substituindo.
— Ana? Você diz a Glutona? Ela não serve só para exibição? — perguntou Lysandra, curiosa, enquanto tamborilava os dedos na mesa. — Para mim, alguém que não consegue manipular mana corretamente não deveria nem estar na arena, esse é o básico para viver no abismo!
— Ela é o suficiente para enfrentar os seus monstros de frente, não se preocupe com isso — retrucou Cassandra.
— Bem, não importa. A temporada de gladiadores é sempre imprevisível. Podemos nos preparar o quanto quisermos, mas o verdadeiro teste vem quando nossos gladiadores estão na arena, enfrentando o inesperado.
— Como aquele incidente com o basilisco no ano passado — lembrou Tiberius, rindo. — Quem diria que um erro logístico traria tanto entretenimento?
— Entretenimento mortal, mas sim, foi memorável — concordou Draven, seus olhos brilhando com a lembrança.
A conversa continuou com trocas de provocações e estratégias veladas, cada chefe tentando obter uma vantagem psicológica sobre os outros. Todos estavam cientes de que, no final, apenas um poderia reivindicar a vitória e o poder que ela trazia.
O apresentador tinha uma voz animada e imponente, se destacando mesmo entre as outras milhares de pessoas. Com sua voz amplificada ecoando pelo espaço, começou a falar.
— Bem-vindos, senhoras e senhores, à primeira etapa da temporada de gladiadores! Hoje, nossos duros competidores enfrentarão o desconhecido na escuridão total. A vitória será dada à equipe que trouxer mais orelhas esquerdas! Simples, não é mesmo? — uma risada acompanhou a animada voz, antes de prosseguir com a explicação. — Como de costume, apenas os sobreviventes vão ter as honras de serem apresentados, então, sem mais delongas, boa sorte a todos!
O público aplaudiu, ansioso pelo início da batalha. Quatro portões se abriram, em lados opostos da arena, dando um grande espaço entre cada dupla de gladiadores. As algemas não foram removidas, e a única explicação dada a eles foi a que acabaram de ouvir.
Ana e a Sombra estavam posicionadas em uma das entradas, uma estranha escuridão mágica começava a se espalhar pelo chão, lentamente. O som da multidão ao redor ecoava, mas dentro do isolamento obscuro, elas estavam completamente cegas. Era algo incrível, mas diferente dos participantes, o público ainda conseguia assistir quase que perfeitamente.
Os sons de rosnados e movimentos rápidos preencheram o ar. As mulheres podiam sentir as criaturas se movendo ao redor delas.
— Tem alguma ideia do que vai aparecer? — perguntou a Sombra, tentando ajustar sua visão no breu total, sem sucesso. Uma espada bastarda estava em sua mão esquerda, sendo o máximo que poderia manejar enquanto presa a sua companheira.
— Infelizmente não. Não foi uma das provas do ano anterior, mas bas… — Antes que Ana pudesse concluir a frase, um vulto passou por elas rapidamente, arranhando a espada da Sombra, que se defendeu por pouco.
— São rápidas demais! — exclamou a Sombra, frustrada por não ter nem mesmo conseguido identificar o que a atacou, mas então seus olhos se arregalaram ao olhar para as mãos de Ana.
Um felino semelhante a um tigre, mas com um corpo claramente muito mais leve, estava firmemente preso pelo pescoço na mão direita da garota. O som dos pequenos ossos cervicais se partindo com o aperto cada vez mais forte contrastava com o estranho silêncio que se seguiu.
— Hahaha… quem diria que eu teria tanta sorte… — Ana piscava os olhos repetidamente, como se não acreditasse no que estava vendo. Um sorriso macabro adornava seus lábios enquanto ela brincava com a orelha do monstro que segurava. — Apenas fique perto de mim e mantenha seus ouvidos atentos.
Mal completando a frase, seu pé esquerdo se levantou em um movimento amplo, baixando um momento depois diretamente no centro do crânio de outro gato que saltava em sua direção, o matando no mesmo instante.
— Essa vitória já é nossa! — exclamou a mercenária, já fechando seus olhos. — Aí vem um! giro amplo para a esquerda, agora! — gritou Ana.
Sem discutir ao notar que sua dupla lidava muito bem com as criaturas, a Sombra deu um grande e teatral giro, baixando a espada com força e cortando a criatura ao meio com precisão. Ana acompanhou o movimento em perfeita sincronia, e seu sorriso cresceu ao ver o corpo cortado perfeitamente em dois.
— Parece que você entendeu a essência da coisa! Vamos dançar um pouco.
Os movimentos fluidos seguiram incessantemente, com os corpos se entrelaçando como ceifadoras que eliminavam tudo que se aproximava, parando apenas para remover as orelhas dos felinos caídos conforme os corpos se acumulavam.
— Abaixe-se! — gritou a Sombra, ao ver um vulto diferente se aproximando rapidamente da cabeça de Ana.
A garota abaixou-se instintivamente ao mesmo tempo que a voz chegou aos seus ouvidos, sentindo o ar se deslocar próximo a seu rosto. Um salto rápido foi dado em seguida, já ajustando a postura e a longa adaga para um possível confronto.
Quando olhou para cima, se deparou com um homem de quase três metros, com uma estranha luz amarelada emanando de seu corpo. Seus cabelos pretos estavam bagunçados e ele ficou apenas parado, observando-as em silêncio, claramente surpreso por ter errado o ataque. Seu companheiro, um homem forte, mas muito menor, estava praticamente pendurado na algema, lutando para acompanhar o ritmo do gigante, suspirando pesadamente.
O grande homem ponderou por um momento, seus olhos vazios avaliando as duas. Sem uma palavra, ele se virou e se afastou, desaparecendo na escuridão.
— Quem era aquele? — perguntou a Sombra, recuperando o fôlego após a tensão repentina.
— O Colosso — respondeu Ana, respirando fundo.
— Esse cara é forte… as coisas não vão ser fáceis se ele decidir lutar.
— Para a nossa sorte, no abismo ele não é muito mais forte que um aventureiro rank C. Mas se esse cara ir para a superfície… não imagino o quão incrível ficaria. Levante a espada, corte limpo a direita!
— Pensei que ele era apenas um fortalecedor corporal, mas ver ele usando aquela estranha aura de terra… quem diria que um manipulador seria tão imponente — seguindo a orientação, outra criatura foi cortada, mas a conversa continuou.
— Você não deve ter estudado muito sobre o abismo. Por aqui a linha entre fortalecedores e manipuladores é muito mais tênue que lá fora. O baixo fluxo de mana faz com que seja possível que mesmo pessoas com veias estreitas consigam usar magia, apesar de que a força não é muito ameaçadora se não for usada de forma… criativa.
— Bom, eu ainda não consigo usar.
— É que você é a merda de uma Sombra, como vou saber o que você pode ou não fazer?
A garota pálida encarou Ana por um instante, mas logo balançou a cabeça, decidida a ignorar as palavras rudes ao notar o canto da boca da garota se torcer em uma risada contida.
Ocasionalmente ouviam as respirações pesadas e os gritos das outras equipes, se esbarrando em meio a intensos confrontos, mas logo todos se afastavam alguns metros para evitar confrontos desnecessários neste primeiro momento.
A luta perdurou por algumas horas, mas tão de repente quanto surgiu, a escuridão se dispersou no ar. A arena voltou à sua luminosidade normal, revelando o cenário de carnificina. Corpos de felinos estavam espalhados pelo chão, e os gladiadores, exaustos, seguravam os troféus de carne em suas mãos.
— Senhoras e senhores, temos os resultados da primeira etapa! Vamos contar as orelhas esquerdas e ver quem são os nossos líderes! — O apresentador voltou a falar, sua voz animada cortando o silêncio repentino.
Ana e a Sombra se entreolharam, suadas e com alguns machucados leves, mas com um brilho relaxado nos olhos. Enquanto esperavam os magros escravos que sairam dos portões para recolher as orelhas chegarem, Ana sorriu.
— Você foi bem, é exatamente disso que o público gosta. Uma verdadeira gladiadora!
— Espero não ter que lutar como uma palhaça pelo resto da vida — respondeu a Sombra, revirando os olhos com o elogio.
Após as palavras descontraídas, seus olhares foram atraídos para os outros participantes. A primeira coisa que chamou atenção foram os dois novatos de Tiberius.
Dois corpos esguios estavam sentados no chão, um de costas para o outro. Seus rostos, ambos cobertos por máscaras vermelhas, não demonstravam com clareza seu sexo. Apenas pequenas manchas os rodeavam, sem nenhum corpo das criaturas, mas ainda assim um pequeno monte de orelhas pairava em suas mãos.
Mais afastado da posição que estavam, o Colosso estava parado imponentemente. Em sua algema pendia um braço destroçado, mas não havia sinal do resto de sua dupla.
Por fim, indo ao canto direito, viram uma mulher completamente coberta de sangue, de aparência perturbadora. Seus olhos brilhavam com uma intensidade maníaca, e seus cabelos desgrenhados estavam encharcados de líquido viscoso. Ela usava roupas rasgadas e parecia se deliciar com a visão da carnificina ao seu redor.
— Quem é essa? — perguntou a Sombra, franzindo o cenho.
— A Bruxa de Lysandra — respondeu Ana, com um tom de respeito misturado a cautela. — Ela é conhecida por suas táticas bizarras e brutalidade extrema. Parece que teve um bom desempenho hoje.
A Bruxa estava de pé, rodeada por poças de ossos, pelo e sangue, uma mistura macabra que fazia os observadores desviarem o olhar. Aos seus pés jaziam várias orelhas esquerdas ensanguentadas, e sua dupla, uma mulher que seguia o estereótipo padrão de uma mercenária, estava apenas sentada no chão, cobrindo os ouvidos em um profundo medo. Ela se movia com uma graça sinistra, e ao perceber o olhar das duas, acenou de forma quase amigável, embora seus olhos não transmitissem nenhuma gentileza.
— Também vamos torcer para não termos que enfrentá-la tão cedo — comentou Ana, voltando a atenção para o apresentador, que agora se preparava para anunciar os resultados.
A multidão estava em silêncio, esperando ansiosamente pelo veredito. O apresentador sorriu amplamente, segurando um pergaminho em suas mãos.
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