— Esse cavalo está me deixando louco — reclamou Arthur, puxando as rédeas com mais força, tentando manter o controle do animal.
Ao seu lado, Lúcia montava seu lobo com destreza, lançando um olhar atento ao redor enquanto o vento frio da manhã batia em seu rosto. O jovem escudeiro que a acompanhava sofria para se ajustar no assento de um grande cavalo esverdeado de seis patas. O animal geralmente tinha uma figura arrogante, mas era obediente, porém hoje parecia mais inquieto do que o normal, mexendo as patas e sacudindo a cabeça de forma constante, dificultando a vida do inexperiente garoto.
— Para de reclamar, Arthur. Se continuar assim, vou acabar te dando outra surra.
O jovem riu, mas sua risada foi abafada pelo som dos cascos da montaria batendo no chão.
— Dúvido! Se continuar sendo tão briguenta o Henrique vai te dar mais uma bronca daquelas.
Lúcia revirou os olhos, lembrando-se das vezes em que o veterano responsável pelo treinamento havia ralhado com ela por ser impulsiva. Mas não podia evitar; o sangue fervia em suas veias sempre que via uma oportunidade de ficar mais forte, de provar seu valor.
— Vamos mudar de assunto — disse a garota, afastando as lembranças dos puxões de orelha. — Estou animada. É a primeira vez que saio da guilda desde que cheguei. Finalmente vou poder ver algo que não seja o maldito chão poeirento do campo de treinamento.
Arthur assentiu, mas sua expressão ficou séria.
— A Jasmim já deu novas notícias sobre sua professora?
Lúcia sentiu uma pontada de preocupação, mas a reprimiu rapidamente, não querendo deixar transparecer suas inseguranças.
— Ainda não, mas sei que ela está bem. A Ana é forte, se alguém pode sobreviver nesse mundo, é ela.
Antes que Arthur pudesse responder, os gritos de Henrique, que estava na frente do grupo, chegaram aos ouvidos da retaguarda.
— Prestem atenção! Estamos chegando ao acampamento. Se não ficarem espertos, vão morrer logo em suas primeiras batalhas!
A advertência do grande homem caiu sobre eles como uma pancada, a tensão nos soldados aumentando à medida que se aproximavam do local. O ambiente, antes marcado por excitação e expectativa, rapidamente se transformou em algo mais sombrio, uma lembrança de que não estavam ali para um simples passeio.
O lobo, sentindo a mudança no ar, ficou mais alerta, seus passos ficando mais firmes e calculados. Lúcia trocou um último olhar com Arthur, ambos conscientes do que estava por vir. Não era mais um treinamento, não era mais um teste. O que se aproximava era a crua realidade da guerra, e eles precisariam estar prontos para enfrentá-la, não importa o que acontecesse. O som distante de vozes e o ruído de armaduras ajustadas só aumentavam a sensação de angústia.
— Estamos prontos para isso, Lúcia? — Arthur perguntou, engolindo em seco, sua voz revelando uma apreensão sincera.
Lúcia virou-se para ele, tentando imprimir confiança em seu tom.
— Se tivermos sorte eles vão ser tão fracos quanto você.
Os Escudos de Petálas, a guilda de Jasmim, haviam sido incumbidos de liderar uma missão de “controle populacional” dos bestiais. Tais humanos corrompidos se reproduziam com uma rapidez assustadora, tornando-se o alvo ideal para um massacre justificado e sem represálias da população. A misteriosa morte recente de André, o rei desta raça emergente, criou uma oportunidade perfeita para atacar, e as cinco guildas principais de Barueri se uniram para eliminar essa ameaça, atendendo ao pedido do governador.
A força combinada somava aproximadamente seissentos membros, cada um com habilidades e estilos variados. Jasmim cavalgava ao redor dos caçadores de sua guilda, e percebendo a presença de Lúcia, se aproximou rapidamente.
— Garota, escute — disse a líder de guilda, sua voz calma mas firme. — Lute apenas se for necessário. O seu foco principal aqui é aprender. Observe tudo ao seu redor, absorva cada detalhe.
Após estas palavras rápidas, Jasmim ordenou em alta voz para que a guilda entrasse em formação. Os guerreiros começaram a se alinhar, seus rostos carregando expressões de determinação e, ao mesmo tempo, tensão.
— Boa sorte, Arthur. Vê se não morre — disse a garota, com uma tentativa de sorriso ao ver que em instantes tudo se tornaria um caos.
— Pra você também! — respondeu Arthur, tentando aliviar o medo com uma voz excessivamente animada.
O tom de camaradagem entre eles foi renovador, como se aquelas palavras fossem um lembrete de que ainda eram jovens e cheios de vida, uma promessa velada de que não podiam deixar tudo acabar ali.
Quando finalmente alcançaram a frente de batalha, a visão que os esperava era deprimente. Uma aldeia mal feita se espalhava diante deles, um amontoado de casas rústicas e tendas mal erguidas, sem qualquer sinal de muralhas ou defesas. O cheiro nauseante de carne apodrecida e restos espalhados pelo chão tornava o ambiente quase insuportável.
À distância, os bestiais observavam com olhos injetados de ódio e desconfiança. Suas figuras eram imponentes e ameaçadoras, mas também pareciam estranhamente assustados.
— Manipuladores, preparem-se! — ecoou a ordem pelo campo de batalha, puxando todos de volta à realidade.
E então, com o soar estridente de uma trombeta, o caos foi liberado. Manifestações de mana das mais diversas formas cortaram o ar, indo em direção aos inimigos selvagens. Explosões de luz, fogo, e sombras se mesclaram enquanto o confronto inicial se desenrolava.
Muitos inimigos foram obliterados pelo intenso impulso, mas seria impossível repetir tal ataque massivo quando seus companheiros estivessem lutando corpo a corpo. Infelizmente, um número considerável de bestiais conseguiu desviar, avançando com uma ferocidade renovada por cima dos corpos de seus companheiros caídos. O campo de batalha se transformou em um cenário onde sangue e poeira se misturavam no ar, e os humanos puros, mesmo em menor número, mantinham uma vantagem esmagadora.
Jasmim organizou seus guerreiros em uma sólida falange no centro da linha de combate. Inspirados na antiga tática grega, alinharam-se em uma formação quase impenetrável, escudos colidindo e lanças prontas para repelir qualquer avanço dos inimigos. Essa formação, apelidada de “Muralha de Prata”, bloqueava os ataques frontais e oferecia uma base estável para os manipuladores de mana que estavam posicionados na retaguarda, lançando feitiços menores, mas ainda destrutivos, sobre os que ousavam se aproximar.
À esquerda da formação, a Guilda dos Grifos executava a estratégia conhecida como “Vanguarda de Tempestade”. Inspirados na Blitzkrieg, eles combinavam ataques rápidos e intensos. Os membros montados em seus cavalos, verdadeiros “grifos simbólicos” segundo eles próprios, — já que “voavam” pelo campo de batalha — avançavam em velocidade devastadora, quebrando as linhas inimigas e desorientando-os.
Mais ao fundo, os Silenciosos usavam táticas de guerrilha. Pequenos grupos de assassinos e rastreadores se moviam rapidamente pelas sombras, emboscando bestiais isolados e desaparecendo antes que os inimigos pudessem retaliar. Eles atacavam e recuavam, usando o terreno a seu favor, transformando cada árvore e rocha em uma arma potencial.
À direita, os Brutos de Ferro, de forma muito semelhante aos Grifos, avançavam com uma carga de cavalaria pesada. Montados em poderosas bestas, seguiam em uma linha reta devastadora, esmagando tudo em seu caminho. Seus cavaleiros usavam armas pesadas, quebrando crânios e dilacerando carne com cada investida.
Enquanto isso, a guilda Ventos Livres praticava a “Tormenta”, uma estratégia inspirada nas táticas mongóis. Cavaleiros leves atacavam os flancos dos bestiais, disparando flechas e lançando pequenas manifestações de mana antes de recuar rapidamente para fora do alcance inimigo. Esse movimento constante deixava os bestiais confusos e vulneráveis, permitindo que outros membros do grupo explorassem essas fraquezas de outras direções.
Lúcia observava a batalha à distância, sentindo uma pressão familiar apertando seu peito. Seus olhos se fixaram nos escudeiros que apertavam as armas com desesperança. O medo era palpável, visível nos olhos arregalados e nas posturas tensas. Mas, para Lúcia, o que se erguia dentro dela não era esse pavor, mas uma raiva crescente e insuportável, alimentada pelas memórias do combate desesperado de seu vilarejo.
O problema é que o rosto de seus antigos conhecidos sobrepunha os rostos dos bestiais, não do seu exército aliado.
“Ana me daria uma bronca por ser idiota…”, pensou ela, notando que a missão necessária que todos diziam era apenas uma carnificina, puro assassinato de inocentes. A garota começou a ofegar pela frustração.
Foi então que, repentinamente, o que parecia ser uma vitória iminente começou a desmoronar. Os bestiais, mais organizados do que qualquer um esperava, se reuniram em um único ponto, lançando um ataque de pinça para romper a formação da linha de frente das guildas. Foi um movimento inesperado, e a defesa espalhada pela planície não conseguiu suportar. Com a vantagem tática, os bestiais se concentraram nos guerreiros mais fracos, aqueles que estavam posicionados na retaguarda para ganhar experiência. Era um massacre iminente, e Lúcia sabia que precisava agir rapidamente.
Seus olhos se fixaram em um grupo de caçadores de rank E, cercados por inimigos. Eles estavam paralisados de medo, suas armas tremendo em mãos inexperientes. A garota os reconheceu imediatamente; havia treinado com eles muitas vezes durante o último mês. Aqueles eram seus companheiros, e a ideia de perdê-los ali, como havia perdido tantos outros no passado, era insuportável.
Com um comando quase imperceptível passado pelo aperto de suas pernas, seu lobo entendeu sua intenção. Os músculos do grande animal se retesaram, prontos para o ataque. Em um instante, Lúcia se lançou para frente, sua mão firmemente segurando a lâmina que trazia consigo.
Quando se aproximou do grupo de caçadores, a menina soltou um grito de guerra, uma mistura de raiva e determinação. Com o lobo ao seu lado, Lúcia se lançou na batalha com uma ferocidade que incendiava o ar ao seu redor. Sua lâmina cortava o espaço em arcos precisos, e o primeiro bestial que se aproximou foi abatido com um corte profundo no torso, queimando de dentro para fora quando Lúcia ativou uma manifestação de fogo para cobrir a espada. O lobo, sincronizado quase que perfeitamente, mordia e rasgava, suas mandíbulas metálicas cravando na carne dos inimigos com precisão letal.
A jovem movia-se de um inimigo ao outro como uma tempestade. Em um movimento belo e fluido, apesar de arriscado, ela soltou as rédeas do grande animal e manifestou um chicote de água, que serpenteou no ar e envolveu o pescoço de um dos selvagens.
— Um guerreiro mágico, né? — resmungou para si mesma, lembrando-se de como Ana ficou empolgada com a possibilidade. Seu olhar vagou pelo campo de batalha, notando que podiam ser contados em uma mão os que adotavam um estilo de combate que mesclasse ambos os conceitos.
Era algo compreensível. Manifestações exigiam uma concentração profunda no que se queria trazer ao mundo, qualquer distorção de pensamento ou imaginação poderia fazer um resultado diferente do esperado surgir em sua frente. Isso, somado a tensão constante obtida em um combate corpo a corpo, fazia com que a maioria dos caçadores considerasse arriscado e pouco prático.
Deixando seus devaneios de lado, ela eletrificou o chicote, fazendo um grito rouco sair da garganta torrada de seu oponente. Ao mesmo tempo, invocou uma barreira de vento para bloquear um ataque surpresa, girando sua lâmina em seguida para golpear o atacante com força.
Os dois companheiros lutavam como uma unidade, desviando e atacando de toda direção. Os bestiais caíam um a um, e a brutalidade da batalha visceral impressionou a todos ao redor.
Porém, em meio ao caos, um oponente mais astuto atirou uma arma peculiar, uma estranha corda com pedras nas pontas, a qual voou pelos ares e se enrolou ao redor do corpo da menina antes que tivesse tempo de reagir, puxando-a com violência para fora do lobo. Ela caiu pesadamente no chão, o impacto arrancando o ar de seus pulmões e deixando-a momentaneamente vulnerável. Uma onda de bestiais corria em sua direção, vendo-a como uma ameaça significativa.
O lobo reagiu instantaneamente, suas garras cravaram-se no chão enquanto ele saltava em defesa da menina, seu corpo interpondo-se entre ela e lanças rudimentares que já viajavam em sua direção. Algumas eram quebradas ainda no ar por mordidas precisas de sua resistente prótese, mas outras acertaram seu flanco, fazendo-o soltar um grunhido de dor.
Lúcia lutava para se soltar da corda, e não pôde deixar de se sentir culpada pelo animal que se movia com uma ferocidade desesperada para a proteger. As mandíbulas da fera destruíam qualquer coisa em seu caminho, mas era impossível prestar atenção em todas as direções com seu grande corpo, e logo outra lança foi arremessada, desta vez acertando seu ombro, fazendo um rastro de sangue surgir por seu pelo negro.
“Ele está dando tudo de si por mim… Não posso falhar agora”, pensou, e então mesmo em meio a dor latejante que já começava a cobrar o preço de seus músculos, conseguiu se concentrar o suficiente para manifestar de forma precisa pequenas lâminas entre as cordas, as quais rapidamente destruíram a arma, apesar de muitos cortes também terem sido feitos em seu próprio corpo.
Finalmente liberta, agarrou sua espada e destruiu as hastes das lanças que pendiam no corpo de seu companheiro. As feridas teriam que ser tratadas mais tarde, mas precisava liberar seus movimentos urgentemente. Eles lutaram juntos, lado a lado, impedindo a aproximação dos que os cercavam. Quase que como se estivessem em uma telepatia, quando Lúcia desferia um golpe, o lobo protegia seu flanco, atacando com a mesma intensidade.
Durante a defesa, Lúcia viu à distância que os bestiais começaram a recuar, finalmente desmoronando sob o ataque coordenado dos humanos. No entanto, os líderes das guildas focaram em perseguir os inimigos em fuga, deixando os caçadores mais fracos, que ainda batalhavam na retaguarda, sozinhos na luta pela sobrevivência. O campo de batalha começava a se encher com os gritos desesperados dos feridos. O coração de Lúcia apertou-se, mas ela sabia que sua prioridade era sobreviver.
Quando voltou sua atenção para a luta à sua frente, não viu o golpe que se aproximava. Um bestial, mais rápido do que a maioria dos outros, desferiu um chute poderoso em seu estômago, lançando-a para trás. A dor era excruciante, e Lúcia sentiu o sangue subir em sua garganta antes de ser forçada a vomitá-lo. Tentando se levantar, ela percebeu que o lobo estava enfrentando um grupo de oponentes, incapaz de protegê-la dessa vez. Outro chute acertou a lateral de seu corpo, fazendo-a se chocar contra uma árvore bruscamente, e sem conseguir se mover, ela fechou os olhos, achando que aquele seria o seu fim.
— Idiota, não fica parada ai!
Uma mão firme agarrou seu braço, puxando-a para cima de um cavalo. Arthur chegou no último segundo para salvá-la, e juntos começaram a se afastar rapidamente. O ágil bestial que a atacara não estava disposto a deixar sua presa escapar, e os perseguiu com uma velocidade impressionante. Em meio a floresta cheia de obstáculos, a grande montaria não conseguia atingir uma velocidade adequada, estava claro que eles seriam pegos.
As garras do perseguidor já quase tocavam a nuca do escudeiro, quando, em um salto feroz, o lobo surgiu abocanhando sua jugular. A carne foi imediatamente dilacerada, e o corpo sem vida soltou um último suspiro antes de perder a força.
— Fuja! Agora! — gritou Lúcia, sua voz quebrada pela emoção, mas o lobo a ignorou, continuando a lutar contra os incessantes inimigos.
O cavalo corria o mais rápido que podia, mas a garota não conseguia desviar o olhar de seu companheiro de batalha.
— Me solta! Me solta, agora!
— Não! Você não pode lutar mais! Não nessas condições — respondeu Arthur, a voz trêmula, mas cheia de determinação enquanto lágrimas apareciam no canto de seus olhos ao notar o real desespero de sua amiga.
Ainda com sangue escorrendo pelos lábios, os olhos de Lúcia encontraram os do lobo mais uma vez. Ele parecia feliz, como se soubesse que havia cumprido seu dever, satisfeito por ela estar segura. Meio cambaleante, soltou um longo uivo de despedida e se jogou com tudo contra os novos bestiais que surgiam incessantemente, matando o máximo que conseguia para dar espaço para que ela se afastasse.
— Fique vivo, por favor… por favor… — sussurrou a menina, quase como uma prece silenciosa em direção a qualquer um que a escutasse, enquanto soluçava por sua impotência, com o som da batalha se desvanecendo à distância. — por favor…
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